sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

66





                                                Há que se admitir que o veículo já não tem a pressão no turbo nem dele  se espera o desempenho no motor de tempos atrás quando foi fabricado.  Já algumas peças precisaram ser trocadas, alguns parafusos arrochados, porcas  substituídas. A pintura tem o esmaecimento inexorável do tempo, a pintura metálica perdeu um pouco o brilho, tem arranhões e alguns descascamentos,  não se pergunta pelo ano de fabricação: cuida-se do estado de conservação. Fosse possível puxar a folha corrida do calhambeque ver-se-ia que a bandeirada já deu cangapé, derrapamentos aconteceram em algumas curvas, abalroadas verificaram-se em alguns cruzamentos e um ou outro capotamento desavisado em estradas sinuosas que, afinal : nem só de  planícies e de highways se constroem as veredas da existência.
                                               O certo é que cá chegamos na extrema curva do caminho extremo, como diria de lá nosso Bilac. Os desenganos vão conosco à frente e as esperanças vão ficando atrás , como , do lado de cá, gritaria o Pe. Tomaz. Animadores de neto, iscas de assaltante e descuidistas, substituímos os lazeres cotidianos por tours em farmácias, laboratórios e hospitais. Saltando da fase produtiva da vida , entramos no limbo dos pré ou quase falecidos, aqueles que precisam provar junto à previdência , periodicamente, que mantêm o acinte de continuar vivos, apesar do olho de seca pimenta do governo estabelecido. Nossas teses, ultrapassadas, serão vistas sempre como primeiros sintomas do Alzheimer pelos familiares mais jovens. Até alguns direitos básicos como estacionamento privativo e gratuito,  prioridade em filas são engolidos a seco  pelas gerações atuais e motivo de revolta nos legislativos municipais. É que ao  mundo não interessa o passado, o vivido, o produzido: laranja chupada , bago no lixo !
                                               Carrego, no entanto, a serenidade dos que não guardam muitos fantasmas e esqueletos no matulão.  Sei que não trilhei sempre o caminho tido como correto na concepção pré-estabelecida pela sociedade. Abalroei algumas barreiras na minha corrida de obstáculos, vezes por descuido, vezes intencionalmente. Pus , a maior parte das vezes, minha sensibilidade, minha intuição e meu sentimento contrapondo-se com as frias veredas da razão. Neguei-me , sempre, a guardar muitas tralhas no meu baú, cinicamente, tentei colecionar o indispensável. Busquei , intensamente, encontrar uma força superior que , por acaso, dirigisse meus passos nas encruzilhadas pantanosas que , inevitavelmente iria encontrar. Infelizmente, nunca consegui me deparar com essa luz incandescente e transcendente, tive que usar a chama bruxuleante de minha filosofia parca e pênsil, para decidir em que prato  colocar os pesos na balança. Minha vida profissional foi, até aqui, uma extensão de  uma ética pessoal que tem fundamento   na minha formação alicerçada no judaico-cristianismo, mas , principalmente, nos livros laicos que, umbilicalmente, me têm sido íntimos companheiros de trajetória. Pelos erros e acertos posso dizer sem remorsos : “I Did It My Way “.
                                               Sempre tentei carregar o fardo da existência, com uma leveza mínima, não me faltou o bom humor em todo o meu caminhar. Não poderia levar muito a sério um filme , tragicômico, em que o ator protagonista morre no final.  66, assim, é uma idade mais que significativa. Dizem os amigos que indica por si só o presente que devo esperar dos familiares , meia-meia: o famoso par de meia lupo. Alguns outros adiantam que  o 66 não é uma idade, mas uma profecia, matematicamente, a metade da metade, restar-me-ia, assim uns 25% do bolo, com muita sorte,  para   usufruir daqui para frente.
                                               Feito o balanço da viagem , até este momento, sinto-me como o menino que degustou todo o pudim de leite e sabe que este doce lhe preencherá a existência mesmo que o futuro lhe traga o amargor e o fel das folhas outonais. Como se saltasse de um trapézio, sem rede de proteção, a essência de tudo está no voo efêmero mas mágico. Pouco importa que, do outro lado, um dia, as mãos dos parceiros não consigam sustentar as do trapezista voador. A vida é o que acontece entre o salto e o baque. Chegando a 66, só peço aos amigos e companheiros de jornada que evitem, daqui por diante, me dar os meios sentimentos, os risos pela metade, os afetos de meia. Isso acrescentaria mais um meio ao meu 66 e aí , apocalipticamente, eu viraria 666, o número da besta. E já basta ! Já temos um chegando no governo e o Brasil não suportaria dois dragões de sete cabeças !

Crato, 21/12/18

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O Camelo e a Agulha






Adélio Timbaúba  nasceu e cresceu em Matozinho. Filho de carpinteiro, aprendeu o ofício com  o pai : Seu Milão, criando-se entre tábuas, dobradiças, parafusos e polcas. Menino taludo, já ia substituindo, aos poucos, o pai que se viu quase que imobilizado  por uma congestão que lhe paralisou o lado direito e o deixou com a voz meio engrolada, como se vivesse, eternamente, comendo mingau de aveia Quaker.  Desarnado,  ainda adolescente, o garoto  já tomava conta da movelaria, recebendo encomendas de gamelas, baús, guarda-roupas, mesas e tamboretes. E foi nesta atividade que passou a sustentar os pais já velhinhos e , logo depois, a sua própria família. Adélio enrabichara-se de uma morena quartuda, de peitos estufados e insolentes como se recém calibrados a trinta libras na borracharia da esquina.  Em meio àqueles relevos e acidentes geográficos íngremes e perigosos da Luzia,  terminou fazendo derrapar os pneus do seu coração.  Os filhos se foram sucedendo, em escadinha, e, de repente, viu-se Timbaúba com um time de futebol de salão em casa. Os amigos resumiam fácil a vida do marceneiro:  De dia na Movelaria e de noite na Luzia !  
                                   Se os filhos multiplicavam-se a olhos vistos, a empresa do nosso carpinteiro não prosperava na mesma intensidade. É que  , de repente, começaram a surgir, no comércio local,  peças pré-fabricadas de plástico, de madeira prensada, a custo bem mais acessível. Tinham um certo frescor de novidade, de modernismo , o que acabava por torná-las mais palatáveis. Perdiam, porém, no quesito perenidade. As peças de Seu Milão e de Adélio passavam de avós para netos, serviam como itens de disputa em inventário. Mas quem mais se importava com perenidade ? As coisas todas passaram a ter a importância de uma garrafa pet, prontas a serem lançadas no monturo logo depois do primeiro uso. Em um determinado momento, Adélio viu-se apertado como pinto no ovo. Considerou, então, ter sido um milagre de Deus, quando Idelfonso Queiroga, o então  presidente da Câmara de Vereadores, o procurou para encomendar o mobiliário da nova sede do legislativo municipal.
                                   Era uma empreita de porte vultoso, naqueles dias bicudos: estantes, cadeiras para o plenário, mesas diversas, parlatório. Queiroga, falante como camelô de feira, informou que o projeto estava pronto e a verba disponível. Pediu, então, que Timbaúba apresentasse, o quanto antes, um orçamento detalhado. O certo é que nosso marceneiro, alegre como galo campina em apanha de arroz, providenciou tudo no fim de semana e na segunda feira procurou o presidente do sodalício matozense, ainda pela manhã. Demonstrou tudo , detalhadamente, orçando toda a obra em torno de vinte e cinco mil reais. Queiroga achou pouco a mão de obra de apenas dez mil reais e pediu , para a surpresa do carpinteiro , que a elevasse  para trinta mil.  Timbaúba quase viu as boticas de seus olhos saltarem das caixas. Logo depois, no entanto, o presidente informou que era preciso, também elevar a parte do material , que inclusive já estava previsto em folha, para cem mil. Explicou, então, a Adélio que aquela era a base das obras no estado e que não podiam fugir às regras estabelecidas por lei. Disse que não haveria problemas maiores e afirmou que bastava ele assinar uns papéis e recibos que tudo correria às mil maravilhas.
                                   O certo é que depois daquela obra, as coisas melhoraram para Adélio. Logo depois foi contratado como assessor político de Idelfonso. De repente, o carpinteiro tornou-se pessoa importante na cidade, com casa própria no centro, carro novo , os filhos riscavam a cidade montados em motos e  D. Luzia , teria ido à capital, e  já fizera umas reformas nos acidentes geográficos que começavam a sofrer erosões por conta da gravidade. Andava, ainda, com os vestidos e adereços das mais finas grifes.
                                   Os matozenses , diante de tão acintosa prosperidade, não conseguiam explicar como a carpintaria de Adélio virara mina de ouro. Pelo sim, pelo não, apresentavam teorias conspiratórias as mais diversas para tentar chegar perto dos segredos daquele fenômeno.
                                   Semana passada, os vereadores acordaram com a serenata  das sirenes  da polícia em suas portas. Sete foram levados em cana, sob acusação de desvios de dinheiro público. Segundo o processo, teria havido superfaturamento nas obras da nova sede da Câmara Municipal e os assessores dos vereadores eram obrigados a devolver metade dos salários para seus chefes, sob alegação de que estavam ajudando-os em futuras campanhas.  Queiroga e os demais vereadores, ouvidos, foram soltos no mesmo dia. Jogaram a culpa toda nos seus assessores que, segundo eles, formaram uma quadrilha para roubar as parcas posses do município. A defesa deles foi a mais veemente tese advocatícia já pronunciada em Matozinho:
                                   --- Seu juiz, fomos enganados ! Não compensa a gente confiar nas pessoas ! Desculpa, viu ?
                                   Os assessores estão presos e incomunicáveis. Adélio, diz-se que avisado por Queiroga, que soubera da operação  através de um juiz amigo, no dia anterior, fez um pernas-pra-que-te-quero fenomenal. Ninguém sabe por onde anda.
                                   Dez dias depois, o prefeito Sinderval Bandeira e o presidente da Câmara, Idelfonso Queiroga,  foram   agraciados, na capital, pelo Ministério Público, com o Prêmio Asa de Águia, pelo seu empenho no combate incessante à corrupção. Dizem os matozenses  que, no quintal da repartição, enquanto a solenidade transcorria com toda sua pompa, dois personagens conversavam e riam alegremente, trepado cada um na sua árvore . Um deles, de barbas longas, comia uma goiaba e falava de coisas celestiais; o outro, enquanto chupava uma laranja meio azeda, fazia caretas e dizia que o companheiro da outra galha se equivocara : é mais fácil uma agulha entrar no fundo de um camelo do que um rico entrar no céu !

Crato, 14/12/18    
                                  

sábado, 8 de dezembro de 2018

De calça justa e camisa de força










O pior governo é o mais moral.
Um governo composto de cínicos
 é frequentemente mais
tolerante e humano.
Mas, quando os fanáticos
 tomam o poder, não há
 limite para a opressão”.


                                           Os sintomas e sinais parecem evidentes. Pela mortandade exagerada de símios é possível prever os prenúncios da  Febre Amarela.  Nem o governo eleito assumiu ainda o barco à deriva, entregue por um timoneiro bêbado, percebemos, claramente, que o trocaremos por um outro em que faltam vários cabos e parafusos na caixola. De bravata em bravata, de arroubo em arroubo, já causaram ferimentos no corpo diplomático mundial, como se tivessem quadruplicado a insanidade do Adélio. O que vem aí, parece-nos uma Frenocracia: o governo dos loucos. Já cutucaram, com vara curta, o Estado Palestino, os Judeus, Cuba, Venezuela  a Rússia e a China, antes mesmo de terem subido a rampa do Planalto. Dão ordem explícita para a polícia executar  a quem designar, por seu livre arbítrio, como bandidos e, claro que junto, terminarão por ser abatidos também inocentes que serão, rapidamente, tidos como meros efeitos colaterais do remédio aplicado. A maior parte dos ministros escolhidos ( arrancados do nosso  BBB : Bíblia, Boi e Bala)  e divulgados na mídia com estardalhaço como futuros combatentes da Corrupção pátria,  não passaria no rastreio de RH de qualquer firma privada, principalmente por conta da Folha Corrida que teria que apresentar.
                                               No último surto, o futuro governo pôs-se a esculachar os cubanos  o que terminou por redundar na saída de mais de 8000 médicos que aqui trabalhavam no Programa Mais Médicos desde 2013, geralmente estabelecidos em zonas paupérrimas, nos grotões do Brasil e em áreas indígenas e de acessibilidade quase que impossível. Rápido, noticiou-se na mídia amestrada que mais de 90% das vagas tinham sido rapidamente ocupadas por médicos brasileiros, como se as equipes de Cuba estivessem tomando o mercado de trabalho dos profissionais tupiniquins. Aos poucos, no entanto, se foi percebendo que o buraco era muito mais embaixo do subsolo. Desistências foram aparecendo, lugares inóspitos e distantes continuam sem pretendentes e prevê-se que dos quase quatrocentos médicos, cubanos na sua grande maioria, que cuidavam da saúde indígena, 90% ficarão sem subsitutos. 
                                               Temos, no Brasil, quase 450.000 médicos, se distribuídos harmonicamente país afora, inexistiria a grave crise de assistência médica com que convivemos. O grande problema é que desde o período colonial há gravíssimas distorções de distribuição. 60%  destes médicos estão concentrados  nas Capitais que , juntas têm uma população próxima a 50 milhões de habitantes. Os outros 40%  apenas estão  no interior do Brasil que possui uma população três vezes maior de 160 milhões de habitantes. No Ceará são quase 10.000 médicos residindo em Fortaleza contra três mil fixados em todo o interior que tem uma população três vezes maior que a beira mar. O programa Mais Médicos foi uma das primeiras tentativas exitosas, em toda nossa história, para tentar minorar um pouco esta calamidade. Segundo o prof. Drauzio Varella:  O Mais Médicos foi o programa de interiorização de maior alcance e duração. 
                                               Quais as causas de tamanhas distorções?  São multifatoriais! Passam pela própria formação médica voltada para a superespecialização. Apenas 1% dos estudantes procuram, hoje, residência  em Saúde Pública.  Médicos formam-se, no Brasil,  para tratar quem pode pagar pelo tratamento. A maior parte das novas escolas são particulares, com mensalidades que variam entre R$ 5.000,00 a 12.000,00. Isso representa um investimento grande na carreira que muitas vezes, com a pós-graduação, pode chegar a 12 anos. Frequentemente, os estudantes tomam empréstimos bancários para  pagar as universidades, empenhando por muitos e muitos anos sua vida profissional. Por outro lado, existem graves problemas de estabilidade no emprego oferecido pelas prefeituras , além do não oferecimento de condições mínimas de trabalho. O salário é apenas uma pequena parte desta equação. Tirante isso, existem ainda questões ligadas à própria filosofia de vida, ao deslocamento do profissional com suas famílias para locais sem infraestrutura   mínima para uma sobrevivência mais digna. Entidades médicas propõem que talvez se estabelecêssemos uma carreira de estado para médicos do PSF, com salário digno, dedicação exclusiva e possibilidade de ascensão, como os juízes, haveria condições de ao menos minimizar esta tragédia cotidiana. Como, no entanto, financiar esta carreira, se só no Ceará necessitaríamos perto de 3000 profissionais só para o PSF, em tempos bicudos, de governo de sensibilidade social embotada e com congelamento nos orçamentos por 20 anos ?
                                               A saída dos Médicos Cubanos trará um agravamento surpreendente num holocausto histórico que já se vinha arrastando secularmente. Mas isso importa? A quem ? A elite brasileira já fez sua boa ação do milênio quando chorou e protestou pela morte da cachorrinha do Carrefour. Os que sofrerão e padecerão são a escória da escória do país: pobres, negros, índios, flagelados , nortistas e nordestinos. Devem  estes parasitas é morrer logo, para deixar de envergonhar o país, não é mesmo ?  Bandido e pobre , os bons, lembrem, devem estar mortos ! Bom dia , amigos ! Vocês ainda têm aquela panela velha e a colher de pau ? Vou ali tomar o meu bromazepam e ver se compro minha calça justa e minha camisa de força para as solenidades de janeiro !

Crato, 07 de Dezembro de 2018   

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Pirotecnias de Vaga-lumes



J. Flávio Vieira


                                  


Faz tempo que para pensar
 sobre Deus, não leio
 os teólogos, leio os poetas.”


                                               O Cariri amanheceu diferente, neste finalzinho de novembro. De repente, as fontes , estendendo-se em levadas serra abaixo,  começaram a entoar cânticos que pareciam  canção de ninar. Os piquizeiros vestiram vestidos de um verde esfuziante, no arisco e na chapada, como se preparando para um  precoce réveillon. Os ipês amarelos  apressaram-se em espalhar suas flores pelo chão , como que estendendo um tapete dourado para a chegada de um distante e  misterioso viandante. Rolinhas fogo-pagô, nas galhas dos candeeiros,  pareciam esforçar-se para deixar seu canto menos dolente e menos tristonho. O  Grangeiro, coleando as margens da serra, como uma cobra corredeira, juntou águas novas e translúcidas, colhidas de chuvas de caju, preparando-se ,religiosamente,  para uma cerimônia de lava-pé. Soldadinhos, saltitantes na mata ciliar, cantavam com patente de general. E as cigarras, trinando cantos de amor, buscavam atrair parceiros para seus voos nupciais, mas , percebia-se claramente, pela vertiginosidade de seus agudos,  chamavam a atenção para as bodas da terra e do céu. As formigas de roça traçavam retilíneas  e límpidas autopistas, atapetadas de pedacinhos de folhas,  sem ajuda de teodolitos, naquele dia, didaticamente, indicavam que o destino final mostrava-se um mero detalhe e o essencial era sempre a travessia. Vaga-lumes, de noitinha, acendiam seus pisca-piscas, nas moitas de mufumbo, antecipando árvores de natal. Tudo , de repente, embebera-se numa delicadeza leve, sutil, como se luvas de pelica protegessem mãos de crianças. De ríspido,  apenas um cavalo-do-cão que, vez por outra, fazia voos rasantes, com suas asas crispadas, trazendo um contraponto na balança da natureza.
                            Por que toda cumplicidade do tempo , do mundo e da vida ?  Qual a razão da epifania ?  A volta do Cristo, como profetizam os evangélicos ? O advento da Conspiração de Aquários como preveem os esotéricos ? O fim dos tempos como querem os milenaristas ?
                            Que nada ! Toda a criação está em festa porque hoje Abidoral Jamacaru faz 70 anos. Poeta, músico, professor,  compositor, ambientalista, ele é o Menestrel do Cariri. A natureza criou o  Vale para que Abidoral pudesse reinventá-lo. Nosso poeta ficou  nas mãos com a chama do fiat lux primal. Esse dia será comemorado como nosso menestrel sonha : com  voos rasantes de mangangás,   pífaros de pássaros, paradas militares de zabelês e embuás, malabarismos de beija-flores , retretas de sabiás e pirotecnias de vaga-lumes. A vida celebra a vida ! Parabéns Abidoral Jamacaru !

Crato, 28/11/2018             

                                              



sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Continência !


Astrolábio  Cafinfim  era uma das figuras mais populares de Matozinho . Desde novinho, todos notaram, rápido, ele viera com parafusos de menos ou, talvez, cabos e conexões em demasia. Crescendo, corria como cachorro, em tempos de lua nova e rangia os dentes,  nos quarto minguantes, crescentes e na lua cheia. Na escola, apesar da doidice, sempre fora um aluno bem acima da média. Num relance súbito, muitas vezes, resolvia intricados problemas matemáticos. Tempos por tempos, no entanto, começava a delirar, dizia-se uma reencarnação de Cristo, botava para fazer milagres a granel. Noutras, travestia-se de um lorde, envergava roupas militares e traçava planos mirabolantes para resolver a questão indígena no Brasil. Quando lhe perguntavam o nome, era enfático e rígido :
                   --- Marechal Rondon ! Continência, cabra !
                            Astrolábio , assim, transitava livremente pela vila, transformara-se quase numa preciosidade de Matozinho. Uma figura, como a lua, apresentando muitas fases, destoava do mesmismo da maioria das pessoas, sempre iguaizinhos, dentro da mesma caixa de sapatos. Cafinfim, por outro lado, tinha, como Pessoa, muitos heterônimos. E tinha tiradas de gênio, muitas e muitas vezes. Dias desses, pedreiros estavam cavando uma cacimba, próximo ao açude do Sabugo. O buracão já ia com mais de trinta metros de fundura. Os cacimbeiros pararam um pouco porque encontraram um grande cano de uma adutora que passava justamente no caminho da escavação cacimbal. Pois num é que Saturnino Codó, um magarefe da vila, passando por ali, caiu inadvertidamente, dentro do cacimbão ? Queda feia, braço quebrado, ferido, ficou morre não morre lá dentro. Não conseguiam tirá-lo, pois Codó não tinha como sustentar uma corda, devido à fratura. Todos imaginavam que morreria ali, sem socorro. Pois num é que Cafinfim matou a charada ! Pediu para um dos pedreiros descer no cacimbão, com uma marreta e quebrar o cano da adutora. Todos riram com a aparente solução  louca de Astrolábio. A água ia jorrar e afogaria os dois. Cafimfim, então, fechou o firo :
                   --- Deixem de ser aruás ! Joguem uma câmara de ar de caminhão para  Codó e o pedreiro. A água jorra, enche o buraco e eles sobem até a boca da cacimba !
                   Todos ficaram tontos com a solução que, rápido, trouxe nosso Codó de volta à superfície para pronto tratamento. Alguém, então, perguntou, meio confuso :
                   -- Oxe ! Cafinfim ! Como pode ? E tu num é doido não, é ?
                   -- Doido eu sou ! E não arredo pé disso ! Agora o que eu não sou é burro !
                   Astrolábio carregava satisfeito e orgulhoso este título honorífico de mais pirado de Matozinho. Imaginava, extrapolando o seu mundo, que talvez, em todo o universo não houvesse um outro biruta mais varrido do que ele. Semana passada, passando na praça, andava plantando bananeira. Explicava que para um mundão desse às avessas só dava para viver de ponta cabeça também. Ele parou defronte a uma televisão pública instalada pela prefeitura. Num jornal televisivo apareceu, de repente, um presidente recém eleito , de olhos esbugalhados, cuspindo brasa e tossindo lagarta de fogo, dizendo que ia transferir a embaixada brasileira de Telavive para Jerusalém , e cortaria relações diplomáticas com Cuba e Venezuela e nem interessava  que retaliação a china poderia tomar. Astrolábio, observando tudo de bunda canastra,   comentou , entredentes :
                   --- Meu Deus ! E eu pensando que era o mais doido deste mundo ! Já vi ! Esse aí caga rodando, viu ? Brigar cum bicho manso como  árabe ...  Catucar  marimbondo de chapéu feito  Chinês ... Sei , não ! E depois o doido  sou eu, é  ? Ainda bem que sou só doido ...   Continência !

Crato, 09/11/18


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Via Pulveris






                                               A vida é um grande séquito fúnebre em que seguimos, cabisbaixos, à espera de inumar nossas paisagens interiores. Nosso corpo físico sobrevive a estas exéquias intermináveis, inconsolável muitas vezes, aliviado, outras tantas, enquanto aguarda a hora terrível em que saltará no abismo junto com a história.  O ávido Buraco Negro  está bem ali na nossa frente, esperando o momento único e inexorável em que tudo volta à essência energética original.
                                   Mas são muitos os velórios a seguir, precedendo este último e definitivo funeral. Antes, levaremos ao túmulo o menino que um dia fomos e que , aos poucos, viu-se travado e congelado pelas intempéries da vida. Junto com ele, enterramos um sem número de ilusões, de sonhos, de ambiguidades. Pegaremos ainda na alça do caixão dos nossos amores que carregavam consigo uma intangível aura de eternidade e que, sabe-se lá como, viram-se aos poucos corroídos pelos cupins do cotidiano. Acompanharemos, ainda , o féretro de muitos amigos, que impávidos e aparentemente inquebrantáveis, foram pouco a pouco, tombando às margens do caminho e, com eles, testemunhos vivos da nossa viagem,  vemos evaporar boa parte das folhas do nosso diário de bordo. Os nossos pais e avós, únicos advogados insubstituíveis no nosso percurso, partirão antes de nós e seremos nós os anfitriões em suas exéquias. O cenário da nossa existência será pouco a pouco substituído, mudado o figurino, alterado o script, até que chegue o momento único em que percebemos que já não temos o que fazer no palco e devemos sair de cena, sorrateiramente.
                                   Morrer será apenas o somatório das muitas mortes que irão acontecendo ao longo da nossa jornada. O desaparecimento físico configurará apenas o último ato de uma tragédia longa, em que, paulatinamente,  os personagens vão saindo de cena e, de repente, vê-se o ator demente no proscênio, sem maquiagem ou adereços, sem luz, sem texto, sem outros saltimbancos para contracenar e, mais: já sem plateia.  
                                   No fim, será o fim a última verdade. Os protagonistas da hora extrema silenciam: As velas apagam-se, as flores secam, as lágrimas estancam, as orações perdem sua magia, os epitáfios ficam pífios. Acalanto e incelença são duas partes de uma mesma canção, assim como a estrela e a cruz fazem parte de uma mesma constelação : a Via Pulveris.

Crato, 01/11/18

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A Besta, o Dragão e o Cordeiro







                                               Noé Crisóstomo , desde pitototinho, viu-se assoberbado de um sem número de superstições. Todas  as contínuas vicissitudes que lhe foram surgindo durante a vida, não diferente de qualquer um dos mortais, imputava, imediatamente,  ao seu rol interminável de crendices. Para ele , a vida estava, desde o seu início, predestinada e a maneira de auscultar o futuro e prevê-lo devia ser , necessariamente, através de sinais esparsos que o destino ia disseminando pelo caminho. O diabo é que a maioria dessas explicações não tinha valor prospectivo, apenas eram buscados e encontrados depois que a casa já havia sido roubada. Sofrera uma batida no carro ? Crisóstomo, imediatamente, lembrava que, noite anterior, encontrara um gato preto no jardim; levara uma topada e arrancara o chamboque do dedão? Só pode ter sido aquele guarda chuva que abriu ontem dentro de casa !  Havia, claro, os bons e os maus sinais espalhados nas margens dos caminhos da vida do nosso Noé. Deliciava-se quando a palma da mão coçava, imaginando que receberia uma bolada de dinheiro nos próximos dias e tinha imagens de  elefantes  espalhados por toda casa, na certeza de que atrairiam bons fluidos.
                            Nosso Crisóstomo, por outro lado, devotava uma predileção toda especial pelo número 13. Tinha a absoluta certeza de que sempre lhe trouxera sorte, mesmo nas sextas feiras mais tenebrosas. E teria sido por isso mesmo que acrescentou o Noé ao seu nome original na certeza de que junto com as outras dez letrinhas do Crisóstomo, alcançaria, por fim, o número numerologicamente perfeito. Noé era farto em exemplos : Cristo escolhera doze apóstolos justamente porque, com ele, somariam 13; o décimo terceiro salário não era a alegria maior de cada fim de ano ? Qual a passagem da Bíblia mais poética, mais bonita e mais coração? -- O Coríntios 13, dizia um Crisóstomo mais que enfático !  
                            Nestes dias, o nosso Crisóstomo pareceu mais capiongo e com cara de quem andou chupando groselha estragada. Os colegas da repartição notaram a mudança meio súbita, aquele sobressalto de alguém que ouvira o alarme do tsunami. Imaginaram que o nosso Nostradamus tropicara em algum sinal novo de tragédia anunciada. Abordaram um Noé de olhos esbugalhados e perguntaram-no o que havia acontecido. Ele apenas disse com olhar distante e fixo.
                            --- São exatamente 13 Horas !
                            Abriu uma Bíblia surrada que tinha em cima da mesa e pediu, leiam aqui ! Esse é o Capítulo  13 do Apocalipse. Os colegas pegaram o livro sagrado e alguém leu em voz alta para os outros :

                            E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.
E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.

E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem poderá batalhar contra ela?
E foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois meses.
E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua, e nação.
E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.
                                     Se alguém tem ouvidos, ouça.

                            Após a leitura, os colegas de trabalho entreolharam-se algo pasmos. Crisóstomo tinha os olhos vidrados na parede ! Sussurrou apenas palavras soltas:
                            --- A Besta ferida...Poder sobre toda tribo e Nação...o dragão que dá à besta o seu poder...Blasfêmias... quarenta e dois meses: quatro anos... !
                            No domingo, Noé sairá para  a seção eleitoral. Visionariamente será como se fosse construir uma segunda arca. Levará consigo o número mágico, aquele mesmo que recebeu quase como predestinação desde o nascimento e que digitado, cuidadosamente,   terá o poder -- quem, sabe? -- de subverter as profecias e impedir a imolação contínua do Cordeiro,  que se arrasta desde a fundação do mundo.

Crato, 26/10/18  

sábado, 20 de outubro de 2018

Fogos


J. FLÁVIO VIEIRA

                                               A corrida de obstáculos começa cedinho, mal a cidade tira a remela dos olhos. Carros e  carros amontoam-se pelas vias obstruídas, logo cedinho,  como se previssem  o enfarte futuro dos ocupantes  dos bólidos. Homens de cara amarrada , manietados no trânsito caótico, desesperam-se,  vendo-se escoar pela ampulheta a substância irretornável : o tempo. Motos, em ziguezagues, costuram as vias entulhadas de veículos, num estranho crochê matinal. Os cabine-dupla apresentam um ar de superioridade, quase que nobiliárquico, engolindo os pequenos espaços que vão surgindo, como se num PAC-MAN gigantesco,  na clara convicção de que existe um Código de Trânsito específico para a realeza. Meninos sonolentos, nos bancos de trás, não parecem demonstrar preocupação maior com o atraso na sala de aula: bocejam ininterruptamente. Os carros , hermetizados  pelos insulfims  e  ar-condicionado,  aparentam a tranquilidade de quem se encontra totalmente isolado do mundo que freme do outro lado dos vidros.  Sons ambientes são abafados pelo bate-estaca das buzinas nervosas.  Cada Sísifo carrega consigo seu 13º Trabalho de Hércules do dia: a consulta, a fábrica, o escritório, a escola, o laboratório, a lojinha, o hospital...  Todos , a seu algum modo, revoltados  com a praga um dia lançada  quando as espadas flamejantes nos expulsaram do paraíso para o leste do éden. Adiante , os veículos, em continência, param diante da imposição do sinal vermelho, no cruzamento.
                                   Dois pardais  pousam, obedientemente, sobre os olhos rubros do semáforo,   e saltitam de um lado a outro do curto campo disponível, tilintando como crianças no playground. Enquanto a realidade urra ao derredor,  ensinam lições de alegria e distanciamento. O pássaro fugirá do azáfama. No alto,  dançará  sobranceiro, sobre os fogos, mesmo sob a dura perspectiva da abertura próxima da temporada de caça,  como se as luzes semafóricas fossem apenas os holofotes estonteantes da boate.  A vida rege-se na ciclicidade do verde, do amarelo , do vermelho, comandada por uma longa mão invisível que apaga ou acende aleatoriamente seus sinais.


20/10/18

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Lobo no Espelho



O Brasil, último país a acabar com a escravidão,
 tem um perversidade intrínseca na sua herança,
que torna a nossa classe dominante
enferma de desigualdade, de descaso.
Darcy Ribeiro


                                               Este período eleitoral desvendou  uma face do país bem diversa daquela que vimos apregoada por nossos mais famosos sociólogos e antropólogos. Como entender que a nação mais cristão do mundo, em pleno tempo do Papa Francisco, se veja com ganas de cão hidrofóbico,  com ataques sistemáticos , com a aparente catarata da autoridades constituídas, às eternas minorias de gays, pobres, negros, nordestinos ?  Onde ficou guardada a Bíblia, em que gaveta se esconderam  os rosários e os crucifixos? Observando , friamente, as hostes bárbaras ao nosso derredor, parece que estamos vivendo uma reprise alemã dos anos 20-30, com milícias armadas aterrorizando as ruas; com discursos inflamados  tomando de assalto as mídias televisiva e social, pregando, sem nenhum pejo e pudor: o assassinato sistemático de adversários políticos. Adiante vê-se o armamento aberto e despudorado de uma população totalmente despreparada para portar sequer uma baladeira; o assalto a todos os direitos da população trabalhadora; a ameaça de fechamento do Congresso e do retorno à Cortina de Chumbo dos tempos ditatoriais; o abandono do grosso da população brasileira, a miséria, à fome, à doença e ao extermínio; a substituição de fatos e  notícias  por fofocas cabeludas disseminadas pelos Gobbels de plantão. E o mais insensato e incompreensível em tudo isso, como na Solução Final, do Nazi fascismo, com o beneplácito  da população burguesa, mas, incrivelmente, com enorme respaldo também naqueles que, logo mais,  estarão diante do pelotão de fuzilamento. Poderemos ter -- tempos loucos ! -- uma ditadura mascarada, ao arrepio da Constituição dita cidadã,  instalada com o respaldo das urnas, sob a eterna justificativa ( aí a receita sempre se repete) de combate à corrupção, ao ateísmo, às distorções morais. Falta apenas, no nosso projeto de Fascismo  tupiniquim, o exacerbado patriotismo , antes tão prevalente nas casernas, mas, agora, incompreensivelmente,  substituído por uma lúbrico e desbragado entreguismo. Sempre é bom lembrar que se a porta de entrada para tempos ditatoriais aqui poderá ser pelo voto, a saída sempre faz-se demorada, penosa, aberta com golpes de baioneta e, a história tem mostrado, com muitas baixas do lado daqueles que não portam as armas de guerra.
                            Temos que conviver, neste Brasil, em pleno Século XXI, com discursos  pré-iluministas. A Escravidão passa a ser novamente perfeitamente justificável; as questões ecológicas são mero atravancamento ao progresso humano; os pobres , como os índios, merecem seu sofrimento e extermínio por conta da preguiça desenfreada; os Caldeirões, os Canudos são novamente resolvidos com rajadas de metralhadoras . Onde escondeu-se, envergonhada , a propalada cordialidade do brasileiro, um dia apontada pelo nosso Sérgio Buarque ? O elogio à nossa miscigenação, como pedra de toque da nossa grandeza humana, que tanto nos fez pábulos , nas palavras de Gilberto Freyre, como escafedeu-se tão sorrateiramente ? Por que . agora, de manhã acendemos uma vela aos santos e, à noite, como lobisomens , saímos  para nossos rituais satânicos ?
                            Faltam poucos dias para que, definitivamente, aclare-se esta bipolaridade que invade nossa alma. Somos um projeto de Nação, com o longo caminho a ser percorrido ainda, em busca de acolher toda a população como irmãos, sob o manto da liberdade e da cidadania ? Ou apenas um mero aglomerado humano, cuja sobrevivência se rege pela lei do mais forte e do mais poderoso, sem rumo, sem alfa, nós selváticos e selvagens : chacais e lobos de nós mesmos ?

Crato,  11/10/2018

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

A Senda



Toda a invenção é memória. (...)
 Quem nos arranja os materiais é a memória.
As tais coisas de que a gente não fala
e aparecem nos livros,  de maneiras desviadas.”

                                                                                                    António Lobo Antunes

                                                               A história de uma vila, de um bairro, de uma nação não se faz apenas com os fatos épicos que  locupletam os livros didáticos. O sangue das batalhas, as grandes jogadas da política, o heroísmo dos homens da Arte e da Ciência são apenas uma pequena notícia de rodapé na verdadeira odisseia da humanidade. A saga de um povo ou de uma cidade passa pelos pequenos gestos desapercebidos da maioria dos mortais, do dissipável sabor das nossas  mais simples relações cotidianas, do fragor mudo da mãe solteira que batalha pela sobrevivência da ninhada, do heroísmo imperceptível e cotidiano da grande massa de trabalhadores e operários , da lágrima que rola no escuro da alcova, do sorriso monalísico esboçado pela criança que se agarra à côdea de pão. A grande História narrada nos livros , uma aventura de amplos gestos e de gigantescas atitudes, temperada com um quantum considerável de ficção, é um mero arcabouço da inteira história de uma civilização. Tentar reconstituir o passado faz-se sempre o árduo ofício de alguém que coloca as mínimas e incompletas  peças do quebra-cabeças no tabuleiro e, tenta, deduzir dali o colorido mágico da aquarela que um dia existiu. São esses fragmentos desiguais e esparsos dos ladrilhos da memória afetiva, sentimental coletiva que , inseridas , pouco a pouco, por múltiplos memorialistas possibilitam-nos entender um pouco do bordado do passado e tentar depreender, por simples projeção, os rumos das novas aquarelas que pouco a pouco irão sendo debuxadas pelos novos tempos, como afrescos, mas que são simplesmente pintadas com as mesmas tintas com que um dia nossos antepassados grafitaram as cavernas mundo afora.  A memória de um povo é o seu DNA, o núcleo da sua existência. Sem o filme, mesmo incompleto, da nossa trajetória, somos mera projeção de imagens dadaísticas, vazias e estroboscópicas, sem início , meio ou fim.
                                   O Instituto Cultural do Cariri faz 65 anos, neste 4 de outubro. Instituição pobre, órfã de governo, como tantas outras neste Brasil, conseguiu, com o empenho de visionários desenhar o melhor painel que se conhece da História Regional do Sul cearense. Nenhuma outra instituição pública, acadêmica e científica conseguiu delinear um bordado mais  próximo de uma realidade almejada e perseguida e o fez com os cuidados típicos de mentes iluminadas e iluministas.  Irineu Nogueira Pinheiro, Padre Antonio Gomes de Araújo, J. Alves de Figueiredo Filho, Joaryvar Macedo, Plácido Cidade Nuves, F. S. Nascimento, Manoel Patrício de Aquino, Antonio Teodósio Nunes , Pe Antonio Vieira, para citar apenas alguns desses pioneiros, bosquejaram a mais bela tela  memorialística do sul cearense de que se tem notícia. Mentes críticas podem até  inferir que eles colocaram holofotes nesse ou naquele ladrilho , que carregaram nas tintas nessa ou naquela pecinha a seu bel-prazer, atitude típica de qualquer artista que deseja enaltecer algumas nuances da sua obra. Mas é preciso reconhecer que a estes artistas devemos a cola que une nossos incontáveis fragmentos e que faz com que unos possamos nos apresentar como únicos: um povo com uma cultura própria embebida em valores indígenas, afros, lusitanos: valente e guerreiro quando preciso, místico e beato quando necessário.
                                   As sessenta e cinco velinhas que hoje fincamos no bolo  do Instituto Cultural do Cariri  são representativas da fúlgida luz  que a instituição projetou sobre o nosso passado. É  ela mesma que, reflexa,  se  esparrama pelo infinito caminho  à nossa frente, delineando rotas, aclarando veredas, guiando outros magos por novas , benfazejas e messiânicas   sendas.

Crato, 03/10/18  
                                      

sábado, 29 de setembro de 2018

sábado, 22 de setembro de 2018

PRÓXIMA SEXTA FEIRA !

IMPERDÍVEL !



sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Desordem sem Regresso


Alguns dias atrás, assistimos aflitos,  ao incêndio que consumiu em chamas o Museu Nacional, uma instituição de mais de duzentos anos e o baú que acolhia os documentos mais importantes da memória brasileira. Em meio ao burburinho e às faíscas, procurando lacrar a porta depois de perpetrado o furto, começamos a compreender a enormidade da perda e enxergar possíveis culpados na tragédia que nos batia à porta. Governistas lançavam seus dardos envenenados no governo anterior, derrubado num golpe político-judiciário, sem nem reconhecer que com isso levaram ao poder a maior excrescência política desde que por aqui aportaram as caravelas lusitanas. A oposição entregou o troféu abacaxi nas mãos do atual desgoverno, já assoberbado de medalhas mil: maior entreguista, maior demolidor de conquistas sociais e trabalhistas e líder inconteste das malas de dinheiro espúrio.  Em quem deve cair a carapuça ?
                                   O grande Darcy Ribeiro dizia que  a má qualidade da educação no Brasil não é mero acaso, mas um projeto planejado, azeitado e executado meticulosamente geração após geração. Que interesse teriam nossos pútridos governantes em educar a população, acordá-la da sua letargia se isso, imediatamente, faria com que não mais elegessem seus opressores ? E o pior é que este projeto é autossustentável e se retroalimenta.  Péssimas condições da escola pública, baixo salário dos professores isso é um programa milimetricamente calculado com fins de eleger as mesmas classes dominantes e manter a população mais desfavorecida  do país na obscuridade. “Pobre só precisa aprender a consertar fogão !” -- afirmou , recentemente, um  dos candidatos a presidente.  Com a Cultura não é diferente. Ela, como a Educação, tem essa capacidade libertária, essa possibilidade de cortar amarras e quebrar grilhões. Povo educado, povo culto é totalmente avesso a cangas, vacinado contra qualquer tipo de cabrestos.
                                   O incêndio criminoso do Museu Nacional não é uma mera fatalidade, um corriqueiro acidente. Ele faz parte do projeto elitista de destruir o país, de incinerar a memória de genocídios como o indígena, o da escravidão, o de Canudos. Passado incinerado, as mesmas hecatombes de outrora podem se repetir agora sem remorsos. Um outro objetivo  é fazer apagar tudo aquilo que possa se consubstanciar como identidade nacional. Fica , assim, mais fácil entregar ao capitalismo mundial nossa indústria, nosso petróleo, empresas estratégicas como a EMBRAER , a EMBRATEL,  a Base de Alcântara.
                                    E o problema não se restringe ao  que foi o Museu Nacional. As muitas entidades culturais brasileiras estão sendo jogadas na mesma sucata. Teatros fecham, salas de cinema se reduzem aos shoppings, que são imunes à pobreza. Basta ver aqui em Crato a situação do nosso Museu Vicente Leite fechado há vários anos, sem nenhuma perspectiva de reativação, com um valiosíssimo acervo que incluiu quase que a pujança das artes plásticas caririenses do Século XX, em risco iminente e continuado de degradação. Nosso  teatro municipal , que nunca mereceu esse nome, está fechado desde a gestão anterior, sem nenhuma previsão  de reabertura. O Centro Cultural do Araripe , na REFESA, encontra-se paralisado há anos, sem programação estabelecida, vivendo de esparsos e raros eventos. Duas salas de cinema prometidas com alarde, com verba federal liberada, nunca chegaram sequer a ter suas paredes levantadas  em toda a “fenomenal” administração anterior e nem nessa que herdou , aparentemente, a mesma apatia e letargia.
                                   O Brasil, em marcha ré,  está prestes a voltar a ser uma Pindorama, só que agora já sem o pau brasil, o ouro, os diamantes, a cana de açúcar. Um mero aglomerado de  povos díspares, sem identidade nacional, aculturado, sem nenhum sentido de nação. No pendão nacional a frase positivista deve ser substituída por : “Desordem sem Regresso”. Nosso futuro é uma arma quente.

Crato, 21/09/2018