sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Parto da Princesa




                                               Dentre os três poderes , aquele que deve estar mais próximo da população, e ser reflexo básicos dos seus anseios,  é o Poder Legislativo.  O Executivo , alçado ao Olimpo, mantem-se, em geral ,distante do povaréu, preocupado com a administração pública e seus entraves. O Judiciário investe-se, sempre, de um ar um tanto divinal , mantendo distância regulamentar do cidadão comum e vê-se , muitas vezes, como senhor do céu e da terra.  O Executivo sente-se deus, o Judiciário seu filho e, o Poder Legislativo, tem uma capilaridade maior com as criaturas mais simples, como se representasse os santos,   a quem nos dirigimos para as nossas necessidades mais prementes, para que intermedeiem nossas demandas com os outros poderes constituídos.
                                   O grande problema é que no Brasil os vereadores  e deputados rápido apostatam. Ganham salários nababescos para o pouco trabalho que executam e mordem até os salários dos seus assessores.  Eleitos, fazem uma relação de compadrio com os outros poderes, colocam  seus interesses acima dos  que os elegeram. Vivem em eterno leilão, esperando benesses , cargos para apaniguados e propinas para aprovarem os  mais  simples projetos. A  representatividade republicana quebra-se , as balanças que mantêm o equilíbrio da democracia  são rapidamente violadas. Qualquer prefeitinho compra a maioria na Câmara com a mesma facilidade com que adquire um quilo de tripa no açougue. A função de Vereador, assim, limita-se, quase sempre, a duas reuniões semanais , em que assinam embaixo todas as demandas encaminhadas pelo Executivo, sem discussão e sem polêmica. Os raros e meteóricos  projetos que por acaso venham a apresentar quase sempre é para tolher algum direito do povo, ou para beneficiar as classes mais privilegiadas.   A única autonomia que têm limita-se a dar nome a ruas da cidade e títulos de Cidadania.
                                   Mesmo essas funções tão resumidas e limitadas , salvo algumas raras exceções, são endereçadas para alimentar os mitos das nossas elites econômicas e sociais. Poetas, beatos, místicos, boêmios, aqueles que fazem a alma da nossa cidade,  são esquecidos. Não existe uma rua com o nome de “Zé de Matos”, de “Noventa”, de “Canena”, de “Jéferson da Franca”, de “Maria Caboré”, do “Beato Zé Lourenço”.  Títulos de Cidadania , por sua vez, são oferecidos , facilmente, a figuras que não têm qualquer relação com o Crato. De repente, vemo-nos conterrâneos de personalidades que sequer desconfiam onde fica a cidade, indicados com o mero intuito de tentar incensar carreiras políticas abortadas já em início de gestação. Recentemente , o Crato, historicamente tão revolucionário e libertário,  viu-se na obrigação de adotar um novo filho que carrega consigo um ideário medievalesco : discurso homofóbico, apologista do estupro , incentivador da violência contra a mulher, do armamento desenfreado da sociedade, da tortura e da pena de morte.
                                   Sempre é bom lembrar que a Câmara Municipal foi perfeitamente eleita pelos cratenses. Fomos nós que  escolhemos os vereadores como nossos representantes e, imagina-se, eles deviam estar diretamente antenados com  a vontade popular. Eles decidem , por todos nós, que rumos precisamos ter na Saúde, na Educação, na Segurança e, também, quem  carrega o mérito de receber comendas e honrarias.  Nós assinamos para eles este cheque em branco e, agora, se pressentirmos que há estelionato no processo, temos dois caminhos: pressioná-los demonstrando nossa insatisfação e prestar muito bem a atenção para quem vamos passar nossa procuração nos próximos pleitos.
                                   Nos anos 80, o então vereador Jósio Araripe já protestava contra a quantidade de títulos de cidadania oferecidos pelo legislativo cratense: “Basta de tantos filhos ! O Crato tem que fazer planejamento familiar, deve tomar anticoncepcional ! -- Bradava ele. Pelas teratologias que anda parindo ultimamente, com tantos parteiros incompetentes e desajeitados, anticoncepcional só não basta: é melhor providenciar logo uma Histerectomia.


Crato, 24/11/17                            

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Uma questão de classe




                        A tolerância é a melhor das religiões.
                                                                                            Victor Hugo

                                               Vivemos , nos últimos meses, sombrios tempos, tintos de intolerância. Cidadãos, que se querem respeitáveis,  saem à rua pedindo o fim da democracia e a intervenção militar. Manifestantes gritam o nome de  político de extrema direita, defensor declarado da pena de morte sem julgamento, da homofobia, da violência contra a mulher, plataforma que , nas pesquisas, contempla mais de 15% do eleitorado. Igrejas de viés pentecostal  tomam de assalto templos de religiões de raiz afro e os destroem, depois de agredir sacerdotes. Na rua , vozes gritam contra o aborto, ao mesmo tempo que -- vá lá entender ! --  pedem a instituição da pena de morte, num país em que a justiça está nas esquinas fazendo trottoir. As Redes Sociais, dia após dia, se vêm repletas de agressões e racismo puros contra nordestinos, negros e os que não tiveram o mérito suficiente para achacar os cofres públicos. Escritora de renome internacional é agredida selvagemente ao vir discutir , no país, questões de Gênero. Obras de arte são vilipendiadas sob a alegativa de imoralidade. Louvam muitos a volta do trabalho escravo, do trabalho infantil, da cassação dos direitos trabalhistas, da aposentadoria a se perder de vista. Direitistas cospem fogo pedindo diminuição da maioridade penal como solução salvadora para a violência urbana.
                            Neste retorno às trevas, algo atônitos, não conseguimos entender esta guinada aparentemente repentina rumo à selva. Onde estavam todos esses intolerantes dois anos atrás? Escondiam-se em catacumbas ? Reuniam-se em cavernas ? Hibernavam à espera de tempos propícios? Por incrível que possa parecer, eles simplesmente circulavam por entre todos os outros mortais, travestiam-se de avançados  e modernos, metamorfoseavam-se por trás de discursos algo dúbios, mas com laivos de compreensão e benevolência, ajoelhavam-se piedosamente nos templos e oravam pela paz mundial. Aguardavam o momento da emboscada, a degola da democracia, quando de conspiradores passaram, imediatamente, a opressores e, munidos de impunidade política e jurídica, invadem as ruas e vielas perpetrando toda espécie de atrocidades. Atropelado o Estado de Direito, cada um passa a ter a desfaçatez de criar suas próprias leis e executar suas sumárias penas. Havia mais  legalidade e ordem nos tempos de Hamurabi.
                            Interessante é que a intolerância da Casa Grande  é extremamente seletiva. Tolera-se a corrupção desenfreada que enlameia todas as esferas dos três poderes. Permite-se, sem um pio, que um presidente compre, com dinheiro público, abertamente, todo o Congresso para que não seja sequer  investigado. Baixa-se a cabeça, contritamente, para o vilipêndio do corte absurdo de direitos trabalhistas; do estrupo das regras de aposentadoria; da dispensa gigantesca de dívidas tributárias de bancos, do agronegócio, de grandes empresas brasileiras. A mesma turma elitizada que se horroriza com o nu na obra de arte, admira a venda, em promoção, de todo patrimônio público brasileiro, num queima de proporções planetárias.
                            O avião, sem as duas asas, despressurizado, está caindo vertiginosamente. As madamas, na Classe Executiva, no entanto, implicam com alguns pés rapados da Classe Econômica, enquanto chacoalham suas joias.  Que se dane a companhia aérea, elas perfumadas e chiques não têm nada a ver com o acidente! O avião, simplesmente, não lhes pertence! Vai ver que foram os esfomeados, da farinhada, que deram azar ! Que se lasquem ! A culpa é deles !

Crato, 17/11/17
                               

                                    

sábado, 11 de novembro de 2017

Cospe-Brasa




                                Matozinho vivia dias difíceis , os matozenses andavam mais apertados que pobre em final de mês. O começo da tragédia tinha começado com a morte inesperada de do prefeito “Ursulino do Caixete” , um boticário do município, numa capotagem de carro na ladeira da Serra da Jurumenha. O grande problema é que os sucessores naturais : Petronildo  Carimbó, o seu vice;   e o presidente da Câmara, “Cricri do Rolo”, pereceram no mesmo acidente. Vinham de uma reunião política, em Serrinha, segundo a versão oficial  e de uma provável  pescaria, com garotas de programa arrebanhadas na capital, segundo o afiadíssima língua do povo. O certo é que Matozinho,  que já vivia acéfala há muito e muito tempo, teve suas condições pioradas ( ninguém imaginou que desgraça, como surrão, não tem fundo!) e que o péssimo que se está vivenciando tem sempre a possibilidade de piorar ainda. Simplesmente, não ficou ninguém na linha de sucessão: não existia juiz na época em Matozinho. O esperado era que novas eleições fossem convocadas. Após o funeral, no entanto, a oposição arrebanhou correligionários rapidamente e, na Câmara,  decidiu, às caladas da noite, que Asfilófilo Currimboque, deveria assumir um mandato tampão, completando o  do seu antecessor. Ele  era um arrivista, chegara na cidade há alguns anos e ali vivia como mascate, vendendo quinquilharias de porta em porta. Como diabos pôde nosso contrabandista ser alçado ao cume do poder ? A grande questão é que por trás de  Asfilófilo existia toda uma voraz classe política pronta a açambarcar as verbas municipais  e o nosso muambeiro fazia-se a pessoa mais que perfeita para essa plataforma de governo: não possuía escrúpulos maiores, entendia todas as manobras imagináveis das falcatruas , das sonegações , das trapaças e ilusionismos  e, com espírito nômade, na hora do pega para capar, anoiteceria e não amanheceria em Matozinho.
                                               Asfilófilo assumiu a prefeitura   e seguiu o roteiro predeterminado. Demitiu em massa funcionários e colocou no lugar seus apaniguados. Dizia-se que , em Matozinho, quem não fosse currimboque não fazia faísca. Passou a cobrar impostos extorsivos  dos pequenos  ambulantes da cidade e a dispensar os impostos dos grandes fazendeiros e comerciantes. Sabendo-se político de um só mandato,  caiu , sem quaisquer escrúpulos, em cima das verbas municipais, distribuindo-as , abertamente, com todos aqueles que o ajudaram na subida.  Ademais, com o aval da Câmara, passou a vender todo o patrimônio de Matozinho : prédios, casas, terrenos, escolas, postos de saúde, sob a alegação de quem eram dispendiosos e  não tinham função. Algumas pessoas mais esclarecidas recorreram juridicamente dessas decisões a desembargadores da capital. O processo porém não andou e percebeu-se que Asfilófilo , esperto, deveria estar molhando a mão de alguns figurões de beca. Incrivelmente, os matozenses permaneceram quietos diante do estupro, as únicas reações aconteciam através da língua de peixeira amolada do povaréu,  nas Redes Sociais do interior : a praça e as janelas.
                                               Próximo ao fim do mandato, Asfilófilo , já sem opções, usou seus últimos cartuchos : pôs  à venda o prédio da Prefeitura e da Câmara Municipal, segundo ele decrépitos demais e com risco de ruírem. Prometeu que construiria, com o arrecadado, um Centro Administrativo. Estava a seis meses do fim do seu mandato ou pilhagem. Como conseguiria com o tempo tão curto que lhe restava?  Naquele momento abrira-se, já,  o processo eleitoral na cidade. Os cúmplices de Asfilófilo, aos poucos,  se vão afastando dele, Temendo contaminarem-se com sua popularidade em subsolo. Os antigos correligionários de Ursulino arregimentam-se para tomar de volta as rédeas do poder, apresentaram um candidato popularíssimo , o velho Capistrano, já eleito anteriormente e afinadíssimo com os mais pobres e humildes. Do outro lado, os que se beneficiaram com o governo pirata de Asfilófilo já apontaram seu candidato: um velho cabo da polícia de Matozinho, chamado Aderaldo Cospe-Brasa.  Metido a brabo, zuadento, tido por justiceiro,  tinha fama de fazer desaparecerem supostos bandidos,  em passeios turísticos pelas bibocas de Bertioga. Vivia a urrar nos bares e nas praças que cadeia para bandido tinha que ter pelo menos sete palmos; que cura para viadagem era peia no lombo; que lugar de mulher é na cozinha ou na cama e que a desgraça do Brasil aconteceu quando a tal da Princesa Isabel ( só podia ser uma mulher mesmo !) botou na cabeça oca que preto é gente e não macaco.  Tem uma récua de partidários o Aderaldo, acreditam que para resolver a bandalheira deixada por Asfilófilo, só mesmo um mão-de-ferro. Ficam irritados quando alguém lembra que eles, definitivamente, não são bons de escolha nem de memória: teriam sido os principais atores da tragédia chamada: Asfilófilo Currimboque.
                                               Semana passada,  apareceu um escândalo na cidade: descobriu-se que “Cospe-Brasa” , quando na ativa, vivia chantageando os organizadores do jogo do bicho e recebendo propina para manter os olhos fechados. D. Vitalina, uma língua de veludo de Matozinho, jura de pés juntos que às vezes Aderaldo não Cospe-Brasa, e lembra que ele viveu,  maritalmente  , num longo romance com uma Rainha Negra do “Maracatu Estrela Cadente” que se chamava , nos folguedos, Marivalda. Na vida real, no entanto, a rainha, não tinha nada a Temer : tirado os adereços,  trabalhava como vaqueira e atendia pelo  nome de Valdemar. Afe !


Crato, 10/11/17