sexta-feira, 24 de abril de 2020

Com quantas tariscas se faz uma gaiola ?


O velho Andrelino  trepava o finalzinho da  ladeira tortuosa  dos setenta, com fôlego de menino presepeiro. Duro como beiço de tacho. Ainda cuidava dos muitos afazeres do sítio: o gado, o engenho, as roças, os carneiros, as galinhas. Tinha lá seus assessores, já não tantos quando  o inverno da vida lhe chegou à porta. Muitos escaparam para a vila de Matozinho, tangidos pela seca ou atraídos pelas facilidades aparentes das ruas e das lojas. Outros tantos tinham descido pra São Paulo, na busca de uma terra prometida, mas jamais ofertada na sua plenitude. Entre eles, seus três filhos que , mal criaram penugem, voaram para o ardiloso sonho sulista.  Dedé, como era conhecido, carregava com os poucos moradores,  nos ombros,  a dura labuta naquelas brenhas, um trabalho hercúleo a cada dia e que, como o Sisifo, repetia-se a cada manhã. Na juventude reclamara da aspereza da vida, das incertezas do sustento em meio à instabilidade climática. Quando o inverno da existência bateu-lhe à porta, porém, já o encontrou resignado: embalado por inércia, todas as agruras do dia a dia ganharam uma calda adocicada e sentia-se feliz. Talvez porque o trabalho terminou por preencher o vazio dos dias e das horas, como se enevoasse a estrada estreita à frente encobrindo a visão do precipício. O certo é que na casa da fazenda haviam restado apenas ele e a esposa:  D. Julieta. Dedé no eito e ela nos também intermináveis trabalhos domésticos. Parecia até , para a dona de casa, que todo sentido da passagem terrestre se resumia em sujar, lavar e enxugar pratos. O casal , já arrefecido o fogo juvenil, ficara mais próximo, talvez porque Andrelino já não tivesse forças nas pernas para saltar cercas e D. Juju entendesse que os ciúmes agora eram supérfluos como os muros dos cemitérios.
                                   A monocórdica alternância dos dias , de repente, estilhaçou-se. D. Julieta caiu doente. Um reumatismo tomou-lhe as juntas e quase a impedia de andar. Acordava entrevada, sem quase conseguir se mexer até que o sol esquentasse um pouco. Durante o resto do dia, arrastava-se pela casa, com grande sofrimento, como um animal baleado. Depois do trabalho do rezador Quinqulê, sem melhora maior, Andrelino a levou para  Matozinho, onde o boticário Janjão a  atendeu e receitou umas meizinhas . Juju seguiu todas as orientações: cataplasmas com pirão quente, arnica, massagens com  goma fresca misturada com enxofre. D. Julieta, no entanto, só piorava e nem mais conseguia  sair  da cama. Andrelino desesperou-se. Janjão orientou que era melhor levá-la para capital, procurar doutor formado, os recursos médicos em Matozinho tinham chegado ao seu limite. Dedé , desesperado, resolveu seguir a orientação do boticário. Mas surgiu um problema. E a fazenda, quem cuidaria ? O engenho, os bichos, a lavoura ? Quem gerenciaria os trabalhadores ? Juju apresentou a única opção à vista. Podiam pedir ao seu irmão, João Cacheado, para ficar tomando de conta do terreno, enquanto estivessem fora. João morava pertinho , em Bertioga, sobrevivia de rolos e nunca foi de muito trabalho ( suor seu curava Covid-19, no dizer do povo dali) . Andrelino não gostava muito do cunhado, justamente por conta das muitas tretas dele, algumas delas, inclusive, já o haviam vitimado. Juju, por outro lado,  adorava o irmão e , se pudesse, teria entrado com um processo de canonização do meliante.  O certo é que , sob contrariedade grande de Dedé, por inteira falta de alternativas menos traumáticas, convocaram Cacheado e a esposa D. Gorbelina, no que foram prontamente atendidos.
                                   Uma semana antes da data prevista da viagem, o irmão e a cunhada de Juju chegaram. Andrelino fez uma preleção, dissecando passo a passo os extenuantes trabalhos do sítio que começavam, em geral, com o cantar dos galos e terminavam com o arrulho dos tetéus. Dedé aproveitou a semana para fazer um working-shop com o cunhado. O grande entrave é que João só demonstrava um maior vigor na hora do café, do almoço e do jantar. Enxada para ele parecia instrumento de tortura. Não sabia montar, não tinha jeito com as criações. Dedé ainda reclamou com Juju, mas essa fez cara feia, andou intrigada uns dois dias: não admitia alguém tocar na honra e na idoneidade do irmão. Dedé, então, fechou os olhos: Seja o que Deus e o diabo quiserem! -- pensou.
                                   O certo é que partiram na sopa desbotada do velho Zé Odimar, em procura da capital e da saúde de Juju. E por lá ficaram uns dois meses, sob os cuidados do Dr. Fulgêncio Távora que prescreveu uns remédios à base de mercúrio, massagem com sebo de canela de veado  e uns banhos de luz para Julieta. Foi como se tivessem colocado óleo singer nas juntas dela ! As dobradiças enferrujadas e gripadas tomaram tento ! O casal, feliz, resolveu voltar à Matozinho depois dos cuidados e desvelos do esculápio.
                                   Ao chegarem na fazenda, rápido Andrelino teve que engolir seco. João, o novo capataz, tinha vendido a maior parte das criações e praticamente zerou todo o estoque do paiol. Milho, arroz e feijão: passou tudo no cobre ! Segundo ele, o preço de mercado estava bom  e não quis perder a oportunidade. O grande problema era apresentar o dinheiro arrecadado. Cacheado enrolava, enrolava, prometia e a verba nunca apareceu. Como era de se esperar, terminou num arranca rabo terrível entre o capataz e o proprietário. João e Gorbelina voltaram para Bertioga enraivados, com cara de injustiçados e Dedé, bufando de raiva, acabou brigando com Julieta e quase apartaram os teréns.
                                   O tempo passou, a poeira foi sentando, o casal voltou a dormir na mesma cama... Cacheado virou assunto proibitivo e o prejuízo passou a ser colocado , sorrateiramente, sob a guarda de Santo Expedito: aquele das causas impossíveis. As coisas estavam calmas, o cotidiano novamente tomou conta das almas e não mais lhes deu margens para assuntos extracurriculares. Até uns seis meses depois, quando o poeta mais popular de Matozinho, Emílio Alves Ferreira, divulgou, de boca em boca, um versinho. Era uma carta aparentemente escrita por Andrelino para Cacheado, desculpando-se e pedindo que ele voltasse para tomar conta da fazenda que tinha tão bem administrado.
                                  
                                   “Tu partiu tão de repente!
                                   Depois de tão bem cuidar
                                   Da fazenda, meu gerente,
                                   E nem pude te agradar !”

                                  

                                  Nem deu tempo de acertar
                                   A venda do mi , dos zebu
                                   E eu pensei, se for oiá ,
                                   Deve ter troco pra tu !
                         
                                 Volta, João , pro teu cunhado !
                                   A coisa aqui tá mió
                                   Se vier te dô meu gado
                                   E a chave do paiol !”

                                   Até ontem, D. Julieta estava esperando um encontro com o poeta de Matozinho para ele aprender com quantas tariscas é que se faz uma gaiola. A informação é que Emílio viajou para Wuhan : lá estaria muito mais seguro!

                                                                                                   Crato, 24/04/2020

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A Essência e a Máscara





Zé Ideia  chegou na Siqueira Campos meio cabreiro, olhando de um lado para o outro,  cabeça em feitio de ventilador. Parecia cubar a chegada de possíveis cobradores, tão frequentes nos últimos tempos. Nem isso ! Na cidade,  em isolamento social, por causa da epidemia, quase não se via viv’alma por perto. Um ou outro velho teimoso, desses que não acatam decretos de governo nem ordens de filhos, espalhavam-se , em mínimas rodinhas, pelos cantos da praça. Quem um dia podia imaginar uma loucura daquelas ? Aquilo, imaginou Zé, era pior do que a doença. Afinal,  a praça sempre foi a difusora local das notícias. Como , agora, se abalizar das fofocas de pé de ouvido e de beira de alcova: Quem com quem ?  Quem quebrou ? Quem adormeceu e não amanheceu ? Quem foi contemplado com a peruca de touro ? Quem anda fazendo falso à bandeira nacional ? Quem acaba de ensebar o capim ? Quem está com a burra amarrada na porta, esperando a viagem derradeira ? Estas novidades não saem nos jornais e nem nas rádios. Divulgam-se nas rodinhas de praça, de língua pra orelha, sempre se mantendo o sigilo das fontes, é claro !
                                   Zé Ideia chegou rápido à conclusão , olhando para a praça devastada, que aquela se fazia uma das maiores consequências desse tal de Coronavírus. Pior que o medo da doença e da morte. Trancados em casa, as pessoas metiam-se em túmulos, antes de adoecerem. Atormentadas, esperando por um inimigo invisível que podia entrar pela fresta da porta ou pela réstia do telhado. O medo entranhava-se pelos poros, quebrando o cotidiano das criaturas, impedidas de viver, algemadas em seus porões,  pagando por um crime que não lembravam terem um dia cometido. Lojas fechadas; boticas entreabertas; botequins lacrados; feiras que eram livres, agora enclausuradas; até as igrejas de portas batidas: nem com Deus e os santos era possível confabular e dividir as angústias e apreensões!
                                   Zé Ideia aproximou-se de três jogadores de dominó, únicos interlocutores possíveis naquele deserto, e, enquanto peruava , aproveitou para divulgar um pouco sua filosofia, ao som das pedras do dominó que aos poucos , número por número, sequenciavam-se no tabuleiro. Para Zé , a possibilidade de dor e sofrimento era apenas uma das faces da epidemia. Pondo em risco a sobrevivência, ela arrancava das pessoas o único significado da existência: a possibilidade de dividir com os outros passageiros a alegria e os prazeres da viagem. Zé Ideia , em meio ao chacoalhar das peças do jogo, mostrou os amigos, alguns meio mal amanhados em suas máscaras, que o governo errou, redondamente,  em determinar os serviços essenciais que podiam permanecer abertos.
                        --- Os bares não podem ser fechados , dá pra suportar essa vida sem anestesia ? Onde diabo os pinguços e os aposentados vão sobreviver sem seus Samu´s ? Os cabarés, também, precisam ficar escancarados ! São serviços essenciais !  Onde os carentes desse mundo vão poder adquirir uma nesgazinha de amor, uma jura falsa, um elogio tabelado ? Rezadores e meizinheiros também precisam ter suas bancas abertas e regulamentadas ! Eles são os prontos socorros, as Uti´s  dos pobres desse mundo! Se D. Regina, Maria Raio X  e Quinquelê curavam até espinhela caída,  que dirá um vírus velho desse que parece mais um caroço de mamona ! As fofoqueiras da cidade, por outro lado, precisam receber o auxílio do governo ! Estão impedidas de trabalhar! Tirante uma ou outra confusão de vizinho, já não têm assunto para debulhar! Como pode uma cidade viver sem escândalos meu Deus ? Que graça tem ? Adivinhadores de Pule de Jogo do Bicho, também, não podem ser impedidos de trabalhar! São essenciais ! Vendem o sonho e sem ele não dá pra viver, principalmente em tempos de tanto pesadelo !
                                   Pedras e carreirões ,na mesa,  tentavam se encaixar, partida após partida. Como as ideias de Zé !  Os homens mascarados continuavam aguardando  tempos melhores para que pudessem colocar as outras máscaras que tinham deixado, por enquanto, confinadas em algum lugar nas suas casas.

Crato, 17/04/20