sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Os Muros da Felicidade

 


Qualquer um de nós, ao adentrar os umbrais deste mundo, chegamos um pouco como  imigrantes. Precisamos, rapidamente, nos adequar a verdades que vieram se consolidando por séculos. Por todos lados há placas de sinalização, indicando caminhos que podem ou não ser percorridos; cercas e valas que limitam nosso caminhar. Há marcos culturais, penais, civis, códigos de conduta e postura, determinações políticas e econômicas que nos são ofertados como verdades absolutas. Rapidamente, como cães amestráveis,  somos colocados nos trilhos pela família, pela escola, pela religião, pela universidade. Traçam-nos, rapidamente, a trajetória única a seguir, afora isso nos são apresentados outras únicas estações possíveis:  o descarrilhamento e o desastre. Este prato feito que nos é servido, sem possibilidade de escolha, para uns pode parecer saboroso e confortável, para alguns poucos, indigesto e intragável. Há espíritos libertários que não aceitam andar por trilhos fixos e contemplar as mesmas paisagens infinitamente. Sabem, intuitivamente, que verdades novas precisam ser reconstruídas para novos tempos e que o mundo precisa ser reformado e refeito à chegada de cada geração. Erros passados precisam ser abolidos,   novas picadas precisam ser abertas, novos marcos mais modernos precisam ser fincados. Estes revolucionários , profetas de tempos melhores, visionários de novos costumes e de leis mais modernas e igualitárias, nadando contra a corrente, correm sempre o risco de serem engolidos pela enxurrada.

                                               Perdemos, ontem, um destes idealistas utópicos. O cratense José de Brito Filho entrou comigo na Faculdade de Medicina em Recife em 1972. Espírito irrequieto , já era funcionário do Banco do Brasil e foi impossível conciliar as duas atividades. Já casado precisava manter a família e teve que optar pelo trabalho. Em plena atmosfera de chumbo da Ditadura Militar sofreu implacável perseguição. Líder estudantil, politizado, pôs-se tenazmente contrário ao regime ditatorial vigente, à censura, à prisão e morte de adversários políticos dos militares que amordaçaram o país a partir de 1964. Olhando bem adiante do vidro do seu aquário, Zé de Brito sonhava e lutava por um mundo mais respirável, mais justo e igualitário. Podia ter sido exterminado como tantos outros que também estrebucharam e não se ajoelharam aos pés dos coturnos. Sobreviveu mas sacrificou, certamente, um pouco do seu futuro profissional quando optou por seus ideais em detrimento da estrada asfaltada e larga que lhe ofereciam. O tempo lhe ofertou, em troca, a placidez dos mosteiros. Poeta inspirado, com fortes e inquebrantáveis vieses sociais, pareceu sempre feliz, alegre, irreverente e divertido. Conseguia discutir calmamente com adversários políticos, sem que estes se tornassem, imediatamente, seus inimigos. Endureceu os ideais e as juntas  sem perder a ternura. Como vinho de boa safra, não avinagrou no tonel de carvalho. Mesmo quando o inverno da existência chegou com seus rigores, Zé mostrou uma resiliência impressionante. Degustou a vida , com prazer, até o último gole. Ontem o farol apagou, mas a estrada à frente, para os novos imigrantes dessa terra, continua iluminada pela sua luz.

                                               Zé de Brito , nos últimos anos, deve ter se angustiado com o retorno dos mesmos fantasmas que o assombraram na juventude. O ódio, a fúria, o terror, a cólera , a malquerença voltaram a ser, novamente, os temperos de um tempo que já parecia ter sido sepultado. Ele partiu nas vésperas de uma nova aurora possível e sonhada. E ele bem sabia que essa nova alvorada nunca nasce de parto normal, depende de cada um de nós no uso do fórceps.  Quando o sol brilhar novamente, quando as nuvens tenebrosas da tormenta se dissiparem, quando o sorriso voltar a ser possível e espontâneo é sempre bom lembrar da luta de Zé, que foi imensa e valorosa simplesmente porque buscava uma felicidade que saltava para muito além dos muros do seu quintal.

Crato, 30/09/2022  

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

A Aranha real

 


Na última semana,  o mundo inteiro assistiu ao interminável velório da Rainha Elisabeth II. Os séculos se sucedem, mudam os tempos e os costumes mas perdura na alma dos homens aquela indissolúvel e inconformada certeza quanto à impermanência. Impossível para a raça humana que subverteu toda a cadeia alimentar e ganhou ares e ufanismos de eternos vencedores, conformar-se com o retorno ao pó,  à substância inicial , alicerce  de todo o universo: o Nada. E quanto mais graduado e importante socialmente seja a pessoa, mais difícil compreender essa verdade única e indissipável: o retorno ao Reino Mineral. Os faraós construíam suas pirâmides gigantescas como tumbas reais; o Taj Mahal  foi erguido pelo Imperador Jahan, na Índia, para perpetuar a memória da sua esposa; os Incas e egípcios mumificavam seus entes queridos para preservar os corpos pelos séculos. No fundo, todos, de alguma maneira, lutavam, bravamente, contra essa inconsolável regra da natureza: no fim os pós se misturam: de reis, de plebeus, de insetos, de mamíferos, de cactos, de pedras. A tumba majestosa do rei e a vala comum do mendigo guardam as mesmas cinzas impossíveis de se diferenciar, quer pela classe econômica, pelo sangue azul ou vermelho, pela vaidade, pelo orgulho, pelas posses, pela beleza, pela elegância. O velório é o vestíbulo do pó, torna-se, assim, o derradeiro instante em que é possível demonstrar a todos que somos mais importantes, mais inteligentes, mais poderosos do que aqueles que conosco conviveram. O extremo estrebuchar da vaidade contra a insignificância, a ruína, a destruição.  Criam-se , assim, narrativas épicas e fantasiosas sobre os finados, todos os que estão deitados no ataúde eram bons, caridosos, humildes, generosos perfeitos. A morte cobre a todos com uma capa impermeável de super-herói, o defunto é um ser funereamente inimputável.

                                    O funeral da rainha em pleno Reino Unido, que já não detém a aura gloriosa do passado, fez-se um momento de revisitar aquele período dourado quando, lá, o sol nunca tinha crepúsculo, talvez porque impedisse a aurora no resto do mundo. As cerimônias se arrastaram ad nauseam , milimetricamente planejadas, com uma simbologia marcante e pesada, dignas de um Ramsés II. Percebia-se que junto às homenagens havia o intuito de firmar ao mundo um Conto de Fadas monárquico, cujo final seria sempre o “E foram felizes para sempre...” em tempos em que a Monarquia, mesmo politicamente de fachada como a inglesa, carrega um cheiro de mofo de um baú que não se abre há muitos anos. Como sempre sói acontecer, as celebrações de morte de entes queridos são, em verdade, um culto à vaidade dos parentes que ficaram para providenciar o velório.

                                    Na  solenidade, na Abadia de Westminster, com a presença de inúmeros chefes de estado, um fato fortuito e quase imperceptível talvez tenha sido aquele que melhor simbolizou  as exéquias reais. No centro da Abadia estava o caixão de Elisabeth coberto com a bandeira do Reino Unido e resguardado por coroas de flores colhidas dos jardins do Palácio de Buckingham. Junto,  um cartão escrito pelo Rei Charles III: “Em memória amorosa e dedicada!”. Do lado o cetro e a coroa da monarca.  De repente, uma aranha sem roupa de gala adequada,  de pernas longas e tortuosas, escalou tranquilamente o cartão real, sem preocupações com rituais, com o som lamuriento das gaitas e os soluços contidos dos presentes. Depois, enfurnou-se, novamente, entre as flores. Talvez porque soubesse, de alguma maneira, que, naquele momento, ela era o personagem mais importante no esquife real. Entre as flores cortadas dos galhos, as mensagens com palavras vagas e vazias, os rituais repetitivos e bolorentos ao redor e o conteúdo do caixão, a aranha de pernas longas sinuosas arrastava-se com  a mais brilhante das qualidades: Ela era a única que tinha vida !

 

Crato, 23/09/22

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O Rei Dom Qua-quá Primeiro

 


L
udovico Sestrino da Conceição tinha um pequeno empório  de bugigangas e  atavios em Matozinho. Recentemente  enveredou pelo ramo de importados chineses , com uma Loja de 1,99, a famosa “Lá se faz, aqui se paga !”. Passara por alguns amancebos , mas agora vivia como colibri, beijando uma flor aqui e ali,  e sem pouso certo.  Com um nome pomposo, com tantas possibilidades de apelidos, era conhecido, estranhamente,  como Quá-Quá. As razões do epíteto estavam guardadas nos baús do povo de Matozinho. Ludovico ficara conhecido como gabola e vivia, nas rodinhas de praça, exagerando sobre sua performance sexual, dizia-se imbrochável, incansável e múltiplo, uma verdadeira metralhadora de orgasmos. Os amigos, claro, desconfiavam de tamanha garanhice, todos já passados na plaina dos sessenta, sabiam que Ludovico , instintivamente um ás do marketing, descobrira que a versão é mais importante do que o fato. Ao menos não era essa a história que, a boca miúda, debulhavam suas ex. A última, inclusive, afirmara categoricamente que Sestrino se assemelhava mais a um prato de mingau de Aveia Quaker. Num qui-qui-qui lascado, quando a história chegou na praça, começaram a chamá-lo de Quá-Quá, uma menção à famosa iguaria tão apreciada pela turma do cipó mole. Ludovico aceitou de bom grado o apelido, até porque não conseguia saber bem de onde ele viera.

                               A fortaleza declarada aos quatro ventos por Quá-Quá, aos poucos,  começou a ver caírem seus muros de contenção. De repente, sem mais nem menos, o atleta sexual passou a apresentar uns desmaios esquisitos e imprevisíveis. Deu uma pilôra um dia em plena missa, na hora da comunhão; de outra vez na praça, quando verbalizava suas lorotas; uma outra vez na procissão. Resolveu ir fazer uma consulta na capital e retornou com um diagnóstico estrambótico. O doutor , segundo ele, disse que seu coração estava saltando de marcha, fora do ritmo e desafinando. Falaram na necessidade de colocar um marca-passo que ele explicou aos amigos  era um tipo de novo motor de arranque, uma troca das velas que estavam entupidas. Quá-Quá ficou de voltar no mês seguinte, mas foi enrolando. As pitingulas começaram a ficar mais frequentes e , para cobrar sentido, foi demorando cada vez mais.  Até que semana passada, como se já vinha prevendo, depois de umas doses no Bar do Giba, Ludovico deu um gemido e caiu de fiofó lacrado. Correram com ele, desfalecido, para a Botica de Janjão que tentou de todas as maneiras trazer o homem de volta: botou fumo de Arapiraca para ele cheirar; colocou Ludovico debaixo de uma bacia grande de bateu por mais de quinze minutos; deu chá de jalapa  e... nada ! Depois de todas essas manobras milagrosas de reanimação, sem o efeito esperado, Janjão concluiu: infelizmente Quá-Quá tinha batido as botas, ensebaria o capim logo mais.

                               O anúncio  espalhou-se rapidamente como acontece com toda notícia ruim.  Quá-Quá já não estava aqui entre nós !  Podia ser até imbrochável, mas não era imorrível, coisíssima nenhuma !  Amigos e familiares mais próximos providenciaram o caixão e o velório começou ainda pela manhã na casa do falecido. Dividiam-se as turmas entre  as mulheres que se espremiam em choros e gemidos convulsivos mesclados com as incelenças de praxe:

“ ô mamãe eu vou pro céu,

Dois anjinhos vão me levando, ô mamãe,

De tudo vou me esquecendo, ó mamãe!

Só de Deus vou me lembrando...

 

Do outro lado da salinha, os homens que conversavam animadamente, contando lorotas, lembrando das peripécias e mentiras do falecido que era um cabra bom e , como todo defunto, não tinha defeito. Degustavam uns litros de cana e tomavam, de vez em quando, um copo de caldo de carne servido pelos organizadores do evento.  Como sempre acontecia em Matozinho, os enterros aconteciam sempre no mesmo dia, pois o cemitério era distante, fora construído numa epidemia de febre amarela, muitos anos atrás e, temendo contaminação, instalaram o campo santo a  mais de uma légua da vila. No início da tarde os dois coveiros, Zé Inácio e Seu Pio, se juntaram aos outros pinguços, na sala, e ajudaram a derrubar mais cinco litros de pinga que ninguém é de ferro!

                               Uma três horas da tarde , por fim, saiu o cortejo em procura do Cemitério de N. Sra. da Caridade. Em cada rampa ficavam pelo menos dois bêbados acocorados, sem condições de prosseguir. Em cada curva, um outro pedia penico. Ainda bem que o estoque era grande e variado.  Chegaram já de tardezinha na beira da cova que Pio e Inácio tinha cavado antes de irem para as comemorações finais na casa de Quá-Quá. Os dois  já o esperavam para o trabalho derradeiro. Depositado o caixão na beira da cova, Jojó Fubuia, então, antes que procedessem à decida do féretro, pediu a palavra e, com voz pausada e pastosa, como se estivesse comendo geléia,  falou:

                               --- Meus amigos ! Perdemos hoje o cabra mais  imbrochável de Matozinho! Um amigo, um irmão ! Tinha essa cara feia de quem se prepara pra fazer cobrança, mas era legal e divertido. Só num gostava de pagar as contas, mas quem é que gosta ? Vai com Deus! Que a cama que tu vai se deitar agora seja tão mole como tua virilha : Mingau de Aveia Quaker !

                               Nesse momento, sabe-se lá como, a tampa do caixão se abriu e pulou de dentro um Ludovico ariado, sem saber o que estava acontecendo. Foi uma debandada geral. Ficaram ali apenas os coveiros pelo profissionalismo necessário. Quá-Quá, olhando ao redor, compreendeu a situação e avisou a Inácio e Pio: foi só um desmaio, eu estou vivo! Não morri não, eu juro ! Nisso um Pio cambaleante o empurrou para dentro da cova:

                               -- Que conversa é essa, seu Quá-Quá! Tu tá mortinho da Silva ! Quer saber mais do que Janjão da Botica, é ?

                               Desesperado , Ludovico tentava escalar as paredes da cova, enquanto Zé Inácio jogava, com a pá , terra por cima dele e foi logo avisando:

                               --- Marr menino ! Se aquiete aí ! Num quer se enterrar não, é ? Num tô dizendo ! Um pé rapado desse ! Tu só que ser a Rainha Elizabeth ?!

 

Crato, 16 /09/2022