sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

PRISMA

A nuvem negra no horizonte, o trovão de estralo, o relâmpago que trinca os céus trazem sinais anunciatórios de tempo bom ou de temporal ? Péssima previsão para os que sonham com a praia no dia seguinte; ótimos augúrios para o nordestino que se prepara para semear a terra. Alimenta-se a vida dessa relatividade simples, clara, cristalina. A morte do animal,  que entristece a natureza hoje,  é a mesma que , como esterco fertilizante, produzirá a seiva nutritiva que fará eclodirem nas árvores próximas, as flores e os frutos vindouros.
                                               Uma simples gotícula, suspensa na nuvem mais banal,  tem a capacidade de, como prisma, fazer resplandecer no horizonte o milagre do arco-íris. Pasmos, estupefatos, observamos a arcada celeste multicolorida: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Qual a mais bonita delas ? Alguém preferirá o azul, aquele outro o amarelo, você talvez o violeta. Por vezes alguns podem dizer detestar uma ou outra tonalidade. Não haverá nunca um consenso. O desejo, este animal arisco, está  escondido no olho de quem observa. Mas basta um pouquinho de sensibilidade para se entender que a beleza do arco-íris não se concentra nesta ou naquela coloração, o que o faz belo, inesquecível, radiante, é, na realidade, a diversidade de seus matizes. Você não detestaria o amarelo ou amaria o violeta, se não existissem o laranja, o verde, o vermelho. E, antes de mais nada, é preciso nunca esquecer que todo encanto que nos arrebata os olhos precisou do negro que se pariu assim  para que todas as outras gradações e degradés saltassem nítidos e diversos nas nossas retinas.
                                                 Se assim é na física, assim o é na vida e nas nossas selvas e abismos interiores. Negros, brancos; pobres, ricos; feios , bonitos; sadios , doentes; cidadãos , estrangeiros; esquerdopatas, destromaníacos, somos todos nuances , tons e semitons de um mesmo arco-íris. Reflexos múltiplos de uma mesma imagem na sala de espelhos deste mundo. Eu não existo sem os meus diferentes. Somos todos o cômputo de um feixe  branco e incandescente  que nos criou ,  meros produtos da sua refração. Podemos até imaginar que o branco é insípido e sem graça, insulso, mas é ele quem ilumina toda a Criação, de onde brota toda a Energia e nós somos meros estilhaços de fótons e fortuitos grãos de estrelas .  É deste mesmo feixe branco e incandescente  que se irradia a Luz que nos banha desde o Gênesis e que não nos faltará quando soarem as trombetas do Apocalipse. Este talvez seja o pote de ouro que todos pensávamos encontrar no fim do Arco-Íris.


Crato, 14/12/17   

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

As malas, os Malas e as Mulas

A SOLASMADECE -- Sociedade Organizada de Ladrões , Sequestradores e Malacas  Derivados,  do Ceará --  realizou seu Congresso anual , no último fim de semana. O Crato sediou o evento,  numa chácara na Serra da Minguiriba, onde foram discutidas as estratégias para a consecução dos seus trabalhos, em 2018, aqui na nossa cidade.  O lema do Congresso estava estampado numa faixa logo na entrada do casarão : “Bandido que se organiza em quadrilha , um dia chega a Brasília !” . Abriu as atividades Pedro Salamargo, também conhecido como “Chute-nos-Quiba”, que expôs as maiores dificuldades do banditismo no Brasil. Segundo ele, os ladrões de grosso calibre, os malas das malas, casavam e batizavam e ficavam soltos; já os médios e pequenos afanadores , para serem afastados da concorrência,  iam em cana, comiam o pão que o diabo amassou, aquilo não era justo: Queremos Isonomia! -- vociferou Salamargo  ! Falou ainda das principais preocupações porque vinha passando a categoria, além da concorrência dos tubarões da ladroagem. Preocupava-se com o aumento absurdo no valor das propinas que tinham que repassar  para policiais, agentes prisionais, membros do judiciário. Aquilo era um achaque! Numa crise dessas,  quando já tem larápio roubando larápio, quebrando todas as regras éticas da profissão ! Era preciso , sim, estabelecer uma Tabela Nacional, única e reajustada, anualmente, de comum acordo com todos os interessados, nos Congressos da SOLASMADECE.  
                                               O Congresso se prolongou de sexta, até o  último domingo de novembro. As mesas todas foram bastante concorridas, principalmente as que envolveram os temas mais atuais : “Sequestro Relâmpago, como se livrar do  Raio !” ; “Vem pra Caixa Você Também ! Socializando o dinheiro dos Bancos 24 H”; “Prisão não foi feita pra ladrão : Quanto custa o Habeas Corpus ?”.
                                               Na culminância do evento, “Chute-nos-Quiba” convocou o especialista em estratégia da SOLASDEMACE, “Esprito-de-Porco”, para traçar junto com os malacas cratenses, as estratégias criminosas para o Crato, em 2018. Solicitou, também, que o representante da cidade, um trapaceiro conhecido por “Farta-de-Fôlego” ficasse de olho, com fins de indicar se havia algum empecilho para a ação ser executada naquela data. “Esprito-dePorco” então pediu que todos se levantassem para ouvir, antes, o Hino Nacional. Terminada a execução, passou, imediatamente, a traçar a Agenda/ 2018.
--- Em Janeiro, proponho a gente assaltar o BIC Banco e o Banco Caixeral !
“Farta-de-Fôlego” , rapidamente, posicionou-se:
--- Num dá , mermão ! Não tem mais BIC, nem Banco Caixeral no Crato !
“Esprito-de-Porco”, estranhou mas continuou:
--- Proponho, então, que a gente mande uns discuidistas para a fila do cinemas , pra pegar a carteira do povo!
“Farta-de-Fôlego”, mais uma vez protestou:
--- Mermão, como ? Num tem mais nenhum Cinema no Crato !
O estrategista, mais uma vez, tentou consertar:
---- Vamos, então, em janeiro, fazer um arrastão no SESI, no dia do pagamento dos salários !
“Farta-de-Fôlego” mais uma vez o desilidiu:
--- Não tem mais SESI no Crato, não ! Já faz é tempo, ó !
“Esprito-de-Porco” começou a se impacientar:
--- Pois vamos tentar, na Prefeitura, invadir o Paço Municipal no dia do pagamento !
Lá atrás, em coro, os representantes cratenses, gritaram:
--- Num dá, a administração do Crato ainda não assumiu !
--- Pois vamos tentar uma onda de assaltos contra os funcionários da Receita Federal aqui do Crato ou sequestrar os alunos da Faculdade de Medicina, os boyzinhos são todos filhos de papai !
---- Aqui não tem mais Receita Federal, meu brother ! E a Faculdade de Medicina, é como o saci Pererê: todo mundo fala dele mas nunca existiu !
“Esprito-de-Porco”, então, colérico, gritou:
--- Que diabos de políticos são esses aqui desse inferno de cidade? Só no Crato, mesmo !  Nem pra  achacar mais isso presta ! Que diabos eles tão fazendo ? Já que não fazem nada, num é melhor chamar pra eles irem fazer estrupício  junto com a gente, não ?
Lá de trás, o coro dos representantes do Crato, tirou  suas últimas  ilusões:
----    Já tão !

Crato, 08 de Dezembro de 2017



sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Parto da Princesa




                                               Dentre os três poderes , aquele que deve estar mais próximo da população, e ser reflexo básicos dos seus anseios,  é o Poder Legislativo.  O Executivo , alçado ao Olimpo, mantem-se, em geral ,distante do povaréu, preocupado com a administração pública e seus entraves. O Judiciário investe-se, sempre, de um ar um tanto divinal , mantendo distância regulamentar do cidadão comum e vê-se , muitas vezes, como senhor do céu e da terra.  O Executivo sente-se deus, o Judiciário seu filho e, o Poder Legislativo, tem uma capilaridade maior com as criaturas mais simples, como se representasse os santos,   a quem nos dirigimos para as nossas necessidades mais prementes, para que intermedeiem nossas demandas com os outros poderes constituídos.
                                   O grande problema é que no Brasil os vereadores  e deputados rápido apostatam. Ganham salários nababescos para o pouco trabalho que executam e mordem até os salários dos seus assessores.  Eleitos, fazem uma relação de compadrio com os outros poderes, colocam  seus interesses acima dos  que os elegeram. Vivem em eterno leilão, esperando benesses , cargos para apaniguados e propinas para aprovarem os  mais  simples projetos. A  representatividade republicana quebra-se , as balanças que mantêm o equilíbrio da democracia  são rapidamente violadas. Qualquer prefeitinho compra a maioria na Câmara com a mesma facilidade com que adquire um quilo de tripa no açougue. A função de Vereador, assim, limita-se, quase sempre, a duas reuniões semanais , em que assinam embaixo todas as demandas encaminhadas pelo Executivo, sem discussão e sem polêmica. Os raros e meteóricos  projetos que por acaso venham a apresentar quase sempre é para tolher algum direito do povo, ou para beneficiar as classes mais privilegiadas.   A única autonomia que têm limita-se a dar nome a ruas da cidade e títulos de Cidadania.
                                   Mesmo essas funções tão resumidas e limitadas , salvo algumas raras exceções, são endereçadas para alimentar os mitos das nossas elites econômicas e sociais. Poetas, beatos, místicos, boêmios, aqueles que fazem a alma da nossa cidade,  são esquecidos. Não existe uma rua com o nome de “Zé de Matos”, de “Noventa”, de “Canena”, de “Jéferson da Franca”, de “Maria Caboré”, do “Beato Zé Lourenço”.  Títulos de Cidadania , por sua vez, são oferecidos , facilmente, a figuras que não têm qualquer relação com o Crato. De repente, vemo-nos conterrâneos de personalidades que sequer desconfiam onde fica a cidade, indicados com o mero intuito de tentar incensar carreiras políticas abortadas já em início de gestação. Recentemente , o Crato, historicamente tão revolucionário e libertário,  viu-se na obrigação de adotar um novo filho que carrega consigo um ideário medievalesco : discurso homofóbico, apologista do estupro , incentivador da violência contra a mulher, do armamento desenfreado da sociedade, da tortura e da pena de morte.
                                   Sempre é bom lembrar que a Câmara Municipal foi perfeitamente eleita pelos cratenses. Fomos nós que  escolhemos os vereadores como nossos representantes e, imagina-se, eles deviam estar diretamente antenados com  a vontade popular. Eles decidem , por todos nós, que rumos precisamos ter na Saúde, na Educação, na Segurança e, também, quem  carrega o mérito de receber comendas e honrarias.  Nós assinamos para eles este cheque em branco e, agora, se pressentirmos que há estelionato no processo, temos dois caminhos: pressioná-los demonstrando nossa insatisfação e prestar muito bem a atenção para quem vamos passar nossa procuração nos próximos pleitos.
                                   Nos anos 80, o então vereador Jósio Araripe já protestava contra a quantidade de títulos de cidadania oferecidos pelo legislativo cratense: “Basta de tantos filhos ! O Crato tem que fazer planejamento familiar, deve tomar anticoncepcional ! -- Bradava ele. Pelas teratologias que anda parindo ultimamente, com tantos parteiros incompetentes e desajeitados, anticoncepcional só não basta: é melhor providenciar logo uma Histerectomia.


Crato, 24/11/17                            

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Uma questão de classe




                        A tolerância é a melhor das religiões.
                                                                                            Victor Hugo

                                               Vivemos , nos últimos meses, sombrios tempos, tintos de intolerância. Cidadãos, que se querem respeitáveis,  saem à rua pedindo o fim da democracia e a intervenção militar. Manifestantes gritam o nome de  político de extrema direita, defensor declarado da pena de morte sem julgamento, da homofobia, da violência contra a mulher, plataforma que , nas pesquisas, contempla mais de 15% do eleitorado. Igrejas de viés pentecostal  tomam de assalto templos de religiões de raiz afro e os destroem, depois de agredir sacerdotes. Na rua , vozes gritam contra o aborto, ao mesmo tempo que -- vá lá entender ! --  pedem a instituição da pena de morte, num país em que a justiça está nas esquinas fazendo trottoir. As Redes Sociais, dia após dia, se vêm repletas de agressões e racismo puros contra nordestinos, negros e os que não tiveram o mérito suficiente para achacar os cofres públicos. Escritora de renome internacional é agredida selvagemente ao vir discutir , no país, questões de Gênero. Obras de arte são vilipendiadas sob a alegativa de imoralidade. Louvam muitos a volta do trabalho escravo, do trabalho infantil, da cassação dos direitos trabalhistas, da aposentadoria a se perder de vista. Direitistas cospem fogo pedindo diminuição da maioridade penal como solução salvadora para a violência urbana.
                            Neste retorno às trevas, algo atônitos, não conseguimos entender esta guinada aparentemente repentina rumo à selva. Onde estavam todos esses intolerantes dois anos atrás? Escondiam-se em catacumbas ? Reuniam-se em cavernas ? Hibernavam à espera de tempos propícios? Por incrível que possa parecer, eles simplesmente circulavam por entre todos os outros mortais, travestiam-se de avançados  e modernos, metamorfoseavam-se por trás de discursos algo dúbios, mas com laivos de compreensão e benevolência, ajoelhavam-se piedosamente nos templos e oravam pela paz mundial. Aguardavam o momento da emboscada, a degola da democracia, quando de conspiradores passaram, imediatamente, a opressores e, munidos de impunidade política e jurídica, invadem as ruas e vielas perpetrando toda espécie de atrocidades. Atropelado o Estado de Direito, cada um passa a ter a desfaçatez de criar suas próprias leis e executar suas sumárias penas. Havia mais  legalidade e ordem nos tempos de Hamurabi.
                            Interessante é que a intolerância da Casa Grande  é extremamente seletiva. Tolera-se a corrupção desenfreada que enlameia todas as esferas dos três poderes. Permite-se, sem um pio, que um presidente compre, com dinheiro público, abertamente, todo o Congresso para que não seja sequer  investigado. Baixa-se a cabeça, contritamente, para o vilipêndio do corte absurdo de direitos trabalhistas; do estrupo das regras de aposentadoria; da dispensa gigantesca de dívidas tributárias de bancos, do agronegócio, de grandes empresas brasileiras. A mesma turma elitizada que se horroriza com o nu na obra de arte, admira a venda, em promoção, de todo patrimônio público brasileiro, num queima de proporções planetárias.
                            O avião, sem as duas asas, despressurizado, está caindo vertiginosamente. As madamas, na Classe Executiva, no entanto, implicam com alguns pés rapados da Classe Econômica, enquanto chacoalham suas joias.  Que se dane a companhia aérea, elas perfumadas e chiques não têm nada a ver com o acidente! O avião, simplesmente, não lhes pertence! Vai ver que foram os esfomeados, da farinhada, que deram azar ! Que se lasquem ! A culpa é deles !

Crato, 17/11/17
                               

                                    

sábado, 11 de novembro de 2017

Cospe-Brasa




                                Matozinho vivia dias difíceis , os matozenses andavam mais apertados que pobre em final de mês. O começo da tragédia tinha começado com a morte inesperada de do prefeito “Ursulino do Caixete” , um boticário do município, numa capotagem de carro na ladeira da Serra da Jurumenha. O grande problema é que os sucessores naturais : Petronildo  Carimbó, o seu vice;   e o presidente da Câmara, “Cricri do Rolo”, pereceram no mesmo acidente. Vinham de uma reunião política, em Serrinha, segundo a versão oficial  e de uma provável  pescaria, com garotas de programa arrebanhadas na capital, segundo o afiadíssima língua do povo. O certo é que Matozinho,  que já vivia acéfala há muito e muito tempo, teve suas condições pioradas ( ninguém imaginou que desgraça, como surrão, não tem fundo!) e que o péssimo que se está vivenciando tem sempre a possibilidade de piorar ainda. Simplesmente, não ficou ninguém na linha de sucessão: não existia juiz na época em Matozinho. O esperado era que novas eleições fossem convocadas. Após o funeral, no entanto, a oposição arrebanhou correligionários rapidamente e, na Câmara,  decidiu, às caladas da noite, que Asfilófilo Currimboque, deveria assumir um mandato tampão, completando o  do seu antecessor. Ele  era um arrivista, chegara na cidade há alguns anos e ali vivia como mascate, vendendo quinquilharias de porta em porta. Como diabos pôde nosso contrabandista ser alçado ao cume do poder ? A grande questão é que por trás de  Asfilófilo existia toda uma voraz classe política pronta a açambarcar as verbas municipais  e o nosso muambeiro fazia-se a pessoa mais que perfeita para essa plataforma de governo: não possuía escrúpulos maiores, entendia todas as manobras imagináveis das falcatruas , das sonegações , das trapaças e ilusionismos  e, com espírito nômade, na hora do pega para capar, anoiteceria e não amanheceria em Matozinho.
                                               Asfilófilo assumiu a prefeitura   e seguiu o roteiro predeterminado. Demitiu em massa funcionários e colocou no lugar seus apaniguados. Dizia-se que , em Matozinho, quem não fosse currimboque não fazia faísca. Passou a cobrar impostos extorsivos  dos pequenos  ambulantes da cidade e a dispensar os impostos dos grandes fazendeiros e comerciantes. Sabendo-se político de um só mandato,  caiu , sem quaisquer escrúpulos, em cima das verbas municipais, distribuindo-as , abertamente, com todos aqueles que o ajudaram na subida.  Ademais, com o aval da Câmara, passou a vender todo o patrimônio de Matozinho : prédios, casas, terrenos, escolas, postos de saúde, sob a alegação de quem eram dispendiosos e  não tinham função. Algumas pessoas mais esclarecidas recorreram juridicamente dessas decisões a desembargadores da capital. O processo porém não andou e percebeu-se que Asfilófilo , esperto, deveria estar molhando a mão de alguns figurões de beca. Incrivelmente, os matozenses permaneceram quietos diante do estupro, as únicas reações aconteciam através da língua de peixeira amolada do povaréu,  nas Redes Sociais do interior : a praça e as janelas.
                                               Próximo ao fim do mandato, Asfilófilo , já sem opções, usou seus últimos cartuchos : pôs  à venda o prédio da Prefeitura e da Câmara Municipal, segundo ele decrépitos demais e com risco de ruírem. Prometeu que construiria, com o arrecadado, um Centro Administrativo. Estava a seis meses do fim do seu mandato ou pilhagem. Como conseguiria com o tempo tão curto que lhe restava?  Naquele momento abrira-se, já,  o processo eleitoral na cidade. Os cúmplices de Asfilófilo, aos poucos,  se vão afastando dele, Temendo contaminarem-se com sua popularidade em subsolo. Os antigos correligionários de Ursulino arregimentam-se para tomar de volta as rédeas do poder, apresentaram um candidato popularíssimo , o velho Capistrano, já eleito anteriormente e afinadíssimo com os mais pobres e humildes. Do outro lado, os que se beneficiaram com o governo pirata de Asfilófilo já apontaram seu candidato: um velho cabo da polícia de Matozinho, chamado Aderaldo Cospe-Brasa.  Metido a brabo, zuadento, tido por justiceiro,  tinha fama de fazer desaparecerem supostos bandidos,  em passeios turísticos pelas bibocas de Bertioga. Vivia a urrar nos bares e nas praças que cadeia para bandido tinha que ter pelo menos sete palmos; que cura para viadagem era peia no lombo; que lugar de mulher é na cozinha ou na cama e que a desgraça do Brasil aconteceu quando a tal da Princesa Isabel ( só podia ser uma mulher mesmo !) botou na cabeça oca que preto é gente e não macaco.  Tem uma récua de partidários o Aderaldo, acreditam que para resolver a bandalheira deixada por Asfilófilo, só mesmo um mão-de-ferro. Ficam irritados quando alguém lembra que eles, definitivamente, não são bons de escolha nem de memória: teriam sido os principais atores da tragédia chamada: Asfilófilo Currimboque.
                                               Semana passada,  apareceu um escândalo na cidade: descobriu-se que “Cospe-Brasa” , quando na ativa, vivia chantageando os organizadores do jogo do bicho e recebendo propina para manter os olhos fechados. D. Vitalina, uma língua de veludo de Matozinho, jura de pés juntos que às vezes Aderaldo não Cospe-Brasa, e lembra que ele viveu,  maritalmente  , num longo romance com uma Rainha Negra do “Maracatu Estrela Cadente” que se chamava , nos folguedos, Marivalda. Na vida real, no entanto, a rainha, não tinha nada a Temer : tirado os adereços,  trabalhava como vaqueira e atendia pelo  nome de Valdemar. Afe !


Crato, 10/11/17

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O Violino e o Reco-Reco

                                                                                 J. Flávio Vieira




                               No  último dia 27 de setembro ,  a pedido do Conselho Federal de Medicina, o juiz federal Renato Borelli expediu liminar impedindo os enfermeiros, em todo o país , de prescrever remédios, solicitar exames e realizar consultas. A medida levantou grande polêmica, principalmente por conta do impacto que causou no atendimento do SUS no Brasil e da incontinenti  desestruturação do Outubro Rosa. Só para se ter um exemplo, a Casa de Parto David Capistrano, no Rio de Janeiro , tocada por enfermeiras obstétricas, especializada em parto humanizado, simplesmente teve que sustar suas atividades. O Conselho Federal de Medicina ( CFM) e o COFEN , Conselho Federal dos Enfermeiros, imediatamente impeliram-se numa batalha judicial que, diga-se de passagem, já se arrastava por muitos anos. De lado a lado, as artilharias passaram a disparar seus projéteis. Um médico de Toledo, no Paraná, emitiu, em rede social, um comentário extremamente grosseiro e deselegante: “Estudei 12 anos, em tempo integral, para fazer isso e jamais vai ter uma enfermeira que fez um curso de bosta de meio período, me dando ordem ! Vai limpar bosta de bunda suja, sim !”. Enfermeiros queixaram-se da atitude extremamente corporativista do CFM e este rebateu lembrando a expansão tentacular dos enfermeiros em atividades, antes, embutidas do Ato Médico.
                                               Há quarenta anos na estrada,  tenho acompanhado todo o script desta tragicomédia. Permito-me, assim, mesmo sem ter o distanciamento necessário, meter minha colher nesta sopa de letrinhas. Primeiramente, acredito que as entidades médicas e de enfermagem não podem ser criticadas por estarem apenas executando o papel que delas se espera. Destas corporações  cobra-se , justamente, que lutem pelo espaço dos seus associados no mercado de trabalho, a cada dia menos definido e delimitado com a expansão das especialidades médicas e paramédicas.  As entidades também devem impedir a conflagração de brigas pessoais e rixas individuais, elevando os embates para  as sociedades classistas.
                                               Sempre é bom lembrar como encetou esse acúmulo de atribuições, antes eminentemente médicas,  que os enfermeiros terminaram por ter que assumir. Com a criação do Sistema Único de Saúde, após a Constituição de 1988, retomou-se , por fim, o curso da Medicina Preventiva no Brasil. Com todas as deformidades possíveis, com subfinanciamento, falhas no atendimento, a mudança no modelo de assistência conseguiu, em quase trinta anos, um impacto fenomenal nos nossos indicadores de Saúde como : Mortalidade Infantil , Mortalidade Materna, Universalização, quase que abolição das doenças de controle vacinal. O grande problema é que a classe médica que aos poucos se foi diplomando, desde então, formou-se dentro de um modelo totalmente  de viés curativo e hospitalocêntrico. Esta realidade tornou-se ainda mais forte e preponderante com a expansão desenfreada das novas Escolas Médicas , muitas privadas e caríssimas. Profissionais médicos formam-se para a especialização e a superespecialização e para tratar quem pode pagar pelo atendimento. Sempre utilizaram o SUS e os Programas de Saúde da Família como mero bico: ou quando estão em fins de carreira ou aposentados ou quando recém-formados pretendem fazer um pé-de-meia, enquanto aguardam a Residência Médica. É frequente a grande volubilidade de médicos no SUS, impedindo um trabalho mais contínuo e persistente. E a questão vai bem mais além do salário que muitas vezes é bem acima do mercado, mas passa por questões de estabilidade trabalhista e muito pela própria filosofia que norteia seus sonhos e aspirações. Este vácuo fez com que os enfermeiros precisassem assumir muitas das atribuições que  antes não lhes pertenciam, todas legalizadas por Resoluções do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde: receitar dentro dos programas; acompanhar os pré-natais; solicitar exames; prescrever hemoterapia; realizar partos. Além de tudo,  os enfermeiros viram-se impelidos a assumir a maior parte das gerências de Unidades de Saúde e das Gestões Municipais de Saúde.  São os enfermeiros, na realidade, os mais importantes protagonistas do atendimento público na assistência primária, no Brasil. As entidades médicas permaneceram algo silentes, durante todo esse processo. Revoltaram-se, mais por questões ideológicas, com a vinda dos médicos estrangeiros no “Mais Médicos” e, agora, por fim, vendo a proliferação de escolas e de formandos, acordaram para a necessidade de garantir sua fatia nesse mercado.
                                               Discordo totalmente do colega paranaense, não só pela grosseria e baixeza de seus comentários, mas principalmente pela obtusidade. A Medicina moderna faz-se, necessariamente, de maneira multidisciplinar. Como cirurgião, posso até me arvorar de, em determinadas situações, ser o protagonista principal do tratamento . Mas sei, perfeitamente, que o sucesso de tudo depende de um trabalho de equipe que envolve muitos e muitos personagens: enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticos, etc. Não adianta me orgulhar como primeiro violino na orquestra,  se o virtuosismo do Concerto pode vir de água abaixo  se atravessar, lá atrás, o aparentemente insignificante reco-reco. Ademais, muitas e muitas vezes, o médico tem um papel secundário no atendimento global , como nos tratamentos paliativos, em pacientes terminais, quando o psicólogo , a enfermagem  alternam-se nos cuidados mais importantes. Por outro lado, o doutor paranaense não estudou só doze anos , como ele enfatiza na sua desastrosa citação: saúde exige formação continuada .
                                               Percebo, claramente, que há bem mais torresmo no meio dessa paçoca. Por que , depois de tantos e tantos anos, exatamente agora, sai a liminar que limita as atividades da enfermagem? O SUS, desde o seu nascedouro, luta contra um inimigo feroz que é a Ideologia Neoliberal. Para todos efeitos, nesta perspectiva de Estado Mínimo, num país eminentemente capitalista e hoje neofascista, o SUS encontra-se na contramão da história. A liminar permanecendo válida e confirmando-se, em instâncias superiores, determinará, a médio prazo, o sepultamento de SUS,   que já vive combalido e anêmico por financiamento e administração inadequados. Sem enfermagem, no modelo atual, não existe Sistema Único de Saúde. O sonho de que profissionais médicos venham a assumir as atividades que lhes competem, numa Medicina Preventiva, com foco na Atenção Básica e distribuição equânime em todas as bibocas do país ,  é filosoficamente ilusória. Nem salários à semelhança do judiciário, nem segurança trabalhística, os arrancarão das maiores cidades, nem os farão generalistas. Talvez uma carreira pública específica, bem remunerada, com dedicação exclusiva e possibilidade de ascensão profissional , do interior para beira-mar, influenciasse de alguma maneira a procura pela Saúde Pública. Seria, no entanto, um projeto de custo elevado e de efeito a longo prazo, num país em que o pobre é visto como um preguiçoso, um fracassado, um mero estorvo. Restarão, no cardápio,  aos mais desprivilegiados socialmente:  o Trabalho Escravo, a Aposentadoria post-mortem, as delícias da Ração do Dória e, para completar o kit, podem se livrar disto tudo, morrendo precocemente , à míngua, acometidos de doenças gravíssimas típicas do Século que voltamos a viver: o Dezenove.


Crato, 20 de Outubro de 2017   

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Os filhos do filhós


A cultura não se herda, conquista-se.
                                                                                   André Malraux

                               Há alguns dias, um escritor cratense ,radicado em Recife,  queixou-se ter trazido um amigo para visitar a cidade e perambulou por tudo quanto foi de restaurante em busca de nosso prato mais típico: “Baião de Dois com Pequi” e, simplesmente,  não encontrou. Observando direitinho, vemos a cidade apinhada das mais versáteis  culinárias : Sushis, Pizzas e Massas , Comida chinesa, o minimalismo francês, os fast-food americanalhados. Cafés chiques e barracas sofisticadas, de diversas franquias,  têm invadido o espaço público. As novas gerações adquiriram novos hábitos alimentares, já sob a influência de um mundo globalizado e sem cancelas. Há, claro, ainda focos de resistência mantidos, principalmente, pelos mais velhos, mas nossa culinária caririense tradicional, botou o rabinho entre as pernas , adquiriu características quase que marginalescas e reside, agora, em guetos. Onde degustar , na cidade, nas casas mais sofisticadas, um “porco na rola”, uma panelada, uma galinha à cabidela, o aluá, uma buchada, o nosso baião de dois com pequi ? E as sobremesas nossas mais queridas : rapadura, queijo com mel de engenho, doce de leite à Isabel Virgínia, alfenim, batida, o quebra-queixo, o passa-raiva, o sequilho, a peta,  onde encontra-los ? São algumas vezes vendidos, quase que clandestinamente, como se tratassem de drogas perigosas e ilícitas.
                                   Quando reitora, Violeta Arraes esperava equipe vinda da Europa para visitar a Urca. A turma de cerimonial estava prestes a preparar um jantar com frutos do mar para recepcionar os estrangeiros. D. Violeta mandou suspender a sofisticação litorânea , para o espanto de todos,  e ordenou preparassem galinha caipira e baião-de-dois para o opíparo regabofe. De camarão eles viviam fartos! O interessante era, sim, provar a doce iguaria regional.
                                   Carregamos conosco este complexo de cachorro com rabugem. Toda nossa cultura é vista, imediatamente, como atrasada, cafona: coisa para ser cultuada pela gentalha.  Submetemo-nos a um eterno processo colonizador que vem desde Cabral e que continua, agora, não mais com as caravelas, mas pelas asas céleres da TV, da Internet, das Redes Sociais. Ao mercado interessa a uniformização de desejos e preferências para empurrar seus produtos de goela abaixo. O mundo , para o capital, não tem pessoas , indivíduos : possui apenas consumidores. Estes nem percebem  que nos tornamos apenas um taxi,  aguardando a uberização inexorável do mundo à nossa volta. Sem individualidade, uniformizados pela Mídia, somos uma mera garrafa PET , sem possibilidade alguma de reciclagem.
                                   Resta-me algum fiapo de esperança quando testemunho as últimas  escaramuças desta cultura de resistência. Empresa de carros móveis, na cidade, vendendo , todo santo dia : milho cozido, pamonha, canjica. Doceiras, na praça da Sé, negociando nossos doces caseiros mais desejados. Filas para a compra de Filhós,  na barraca São José. Bicicleta oferecendo, de porta em porta, garapa de cana. Por um momento pressinto que, em meio à devastação, flores  ainda teimam em brolhar.
                                   E vem-me  , de repente, uma ideia que me parece mais que oportuna. Com tantos cursos de Gastronomia , na região, com TCC´s , dissertações de mestrado e teses sendo produzidas, por que esquecer nossa Culinária Regional ? Vamos cadastrar, enquanto é tempo, as receitas dos nossos botecos, das nossas cozinheiras e avós, dos nossos bares, das comidas dos mercados, dos cabarés, das feiras, das quitandas. Pode parecer o desvario inconsequente de uma criança buscando prender o sorvete que se dissolve entre os dedos, mas quem sabe não restará um pouquinho do doce, entre as já enjambradas falanges,  para o lambe-lambe de futuras gerações ?

 05/10/17 

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Back to Past

Nos filmes de ficção científica, vez por outra, se constroem máquinas com capacidade de retroceder a um passado distante. Giram-se botões luminosos e, subitamente, o caboclo se vê abduzido e jogado no meio da Batalha de Waterloo ou na construção de uma pirâmide na quinta dinastia egípcia. Em meio ao script  já preparado, o personagem futurístico tentará mudar o curso da história, com consequências imprevisíveis no futuro já estabelecido. Apetecem-nos sempre estes roteiros imaginários, ao revés dos livros oficiais. Que seria da humanidade hoje, se nas suas viagens ao passado, Cristo fosse salvo da cruz; Aníbal  conquistasse Roma ou Hitler vencesse em Stalingrado ?
                                   O Brasil atual, amigos, cabe num filme ficção científica. Há um ano resolvemos mexer numa máquina perigosa, apertando botões esdrúxulos, ao arrepio da Democracia. Desde então fomos arremetidos à Idade Média. Vejam as manchetes atuais e prestem  atenção: aparentemente o cenário é moderno, mas o roteiro digno da Idade das Trevas. Campanha de moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro, impelida pelas Redes Sociais, incentiva a população a não dar esmolas aos mendigos e promete empreender “gritarias” com quem for flagrado em atos caritativos pois isto incentiva a permanência deles na rua e prejudica, certamente, o Turismo. Dória, prefeito da maior cidade do país, invadiu a Cracolândia,  expulsando os toxicômanos com medidas higienistas, tratando-os não como pacientes, mas como criminosos. Volta à Câmara dos Deputados a PL 4931/2016  que estabelece autorização a profissionais de saúde mental a proceder à chamada “Cura Gay” , tornando patológica a Orientação Sexual e taxando, claramente, o homossexualismo e suas variações como doença.
 Em Porto Alegre, por esses dias, o Santander Cultural suspendeu a exposição de artes:  “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira“, por pressão de grupos de ultradireita e, pasmem , decisão judicial,  sob pretexto de pornografia. O MASP , mais importante museu de arte do Brasil, nestes dias, cobriu as obras de nus  da exposição : "Pedro Correia de Araújo: Erótica" com um pano preto, temendo, certamente, represárias por grupos ultrarradicais. Recentemente, o juiz José Eugênio Amaral de Souza Neto, em São Paulo, liberou um homem que havia assediado uma passageira num ônibus e ejaculado sobre ela, entendendo não ter havido violência, constrangimento ou grave ameaça à vítima. Em Guarulhos , São Paulo, um outro juiz entendeu que um homem bater na filha de 13 anos com um fio elétrico porque ela perdeu a virgindade com o namorado é "mero exercício do direito de correção" e  absolveu o pai da acusação de lesão corporal. Em manifestações contra a corrupção nas ruas, grupos direitistas pedem o retorno da Ditadura Militar e o “cantor” Zezé de Camargo informa, do alto do seu conhecimento dos livros de história, que no Brasil nunca houve ditadura militar, apenas num “militarismo vigiado”. Em troca de apoio ao desgoverno atual, a bancada ruralista tem usado como moeda de troca um ataque estruturado contra os povos indígenas e suas terras. Afrodescendentes sofrem preconceito aberto e declarado nas Redes Sociais e nas suas relações mais corriqueiras, pobres vêm todos os dias esvaírem-se seus direitos trabalhistas. Na Baixada Fluminense, traficantes, envolvidos com pastores evangélicos, obrigaram a pais de santo destruírem seus próprios terreiros e a profanarem suas imagens religiosas. Ainda nestes dias, o General Antonio Hamilton Mourão sugeriu a necessidade de intervenção militar no Brasil com fins de resolver o problema da corrupção, sem que o desgoverno instalado no Planalto tivesse dado um pio sequer.
                                   Nas películas de ficção, ao menos, existe sempre a possibilidade, no finalzinho, do fluxo da máquina se reverter e o viajante voltar à modernidade. No  nosso filme pessoal , um misto de sci-fiction e terror, a saída não é tão evidente. Quem poderia mover a alavanca de retorno ? O judiciário que chancelou o “golpe” , desacreditado, sem mais nenhum decoro na sua parcialidade, com indícios fortes de envolvimento no nosso retorno às trevas? Do outro lado, o povo, desiludido, eterna massa de manobra,  e que ao invés de uma esperada crise convulsiva tem apresentado preocupantes crises de ausência. A máquina parece que emperrou , definitivamente, no Século XIII , preparem-se para a Inquisição e a Peste Negra !   O mecânico que vem sendo chamado para consertá-la é cego, mudo, surdo e tem graves problemas de saúde mental.  A plateia assiste calada ao desfecho inevitável da sua própria tragédia.  The End !

Crato, 19/09/17

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Vulpt !

O velho Vicente Vieira, no início dos anos 50, precisou empreender uma viagem a Salvador, inteiramente a contragosto. Matuto de quatro costados, bicho do mato da Lagoa dos Órfãos, em Várzea Alegre, semianalfabeto ; um dia teve como que uma revelação dessas que despertam figuras místicas como Tereza de Calcutá e Francisco de Assis. Resolveu, de pronto, que os filhos que já fervilhavam ao seu redor, como pintos em palhiço, deveriam levantar voo e estudar. Este pensamento era totalmente atípico na sua época, quando os rebentos iam se acumulando nos trabalhos agrícolas, seguindo os passos dos pais, e seu mundo terminava por se limitar às escarpas da Serra Negra e do Riacho do Machado. A revolução do velho Vicente não só abriu os horizontes dos meninos da Lagoa dos Órfãos. Impeliu também a que parentes próximos tomassem a mesma decisão. De repente, uma revoada de guris levantava voo para cidades maiores, em busca da alfabetização e do conhecimento. Depois daquele dia,   aquelas brenhas jamais seriam as mesmas. Seu Vicente, dentro da vida opressiva e incerta da agricultura nordestina, vislumbrou aquilo que os governos , muitas vezes intencionalmente, ignoram : só a Educação tem a capacidade redentora de transformar mentes, homens e nações.
                        Naquele 1952, o deslocamento até à capital da Bahia parecia proeza para um Indiana Jones. Embarcar em algum caminhão por estradas esburacadas e quase intransitáveis  até à beira do São Francisco, fazer a travessia em um Ferry-boat e pegar o trem, do outro lado,  em Senhor do Bonfim que arrastava-se lento até à capital. O percurso durava, com sorte, entre sete a dez dias.  Aquela sua viagem a Salvador, apesar do contratempo, tinha um sabor especial. O velho Vicente ia participar da formatura do terceiro filho homem, Raimundo, em Medicina , na mais tradicional Escola Médica do Brasil. Aquele se fazia como o ponto alto do sonho premonitório que um dia o tomou de assalto nas ressequidas matas da Lagoa dos Órfãos. Dadas as circunstâncias de penúria e dificuldades, aquela vitória assemelhava-se à sua Stalingrado. Derrotara rua por rua, casa por casa, beco por beco, dois inimigos poderosos e tidos como invencíveis : a miséria e a pobreza. Simples, embarcou para a festa com poucos penduricalhos no seu matulão: roupas novas que adquirira, ainda com cheiro de naftalina, nas Casas Abraão em Crato; sapatos novos que para  ele eram um terrível incômodo a substituir a comodidade das suas currulepes. Ah ! levava também sua sabedoria matuta curtida e destilada na universidade da vida  e a irreverência que bebera nas águas barrentas da Extrema e das Calabaças.
                        Em Salvador, em meio aos atropelos e à velocidade da cidade grande, sentiu-se um pouco como preá dentro de fojo. Acostumado à vida em 16 rotações, aquelas 78 do disco de cera baiano lhe pareciam opressivas. Pressentia que, com acelerador atolado,  o carro da existência chegava mais rápido a sua estação final: o Abismo. Agoniou-se com o aperto das suas acomodações no quarto de terceiro andar na  República do filho, mas a alegria sobrepujava todas essas aparentes vicissitudes. Sabendo das dificuldades do pai , em Várzea Alegre, para atendimento especializado, o futuro Dr. Raimundo marcou uma consulta para o velho com um dos seus professores: Dr. Fernando Filgueiras. O médico -- pasmem ! --  tinha profunda formação humanística e  viu-se, num átimo, tomado pela conversa franca do matuto e por seu linguajar límpido e peculiar. Seu Vicente fez-lhe logo um pedido:
                        --- Doutor, vou pedir só uma coisa ao senhor. Depois que me consultar,  queria que me desse a receitar do “De Venha cá”.
                        Dr. Fernando, risonho, sem entender bem, quis destrinchar o pedido :
                        --- Mas que consulta é essa seu Vicente ?
                        --- Doutor, o senhor vai passar uns remédios e vai dizer : tome tudinho e depois  “venha cá!” . Aí , quando eu voltar, vai passar outra melhor que vai resolver meus problemas. Eu moro longe , a mais de cem léguas, e cá num piso mais. Quero, então, que o senhor me dê logo a receita final, a do “De venha cá!”.
                        Entre as muitas peripécias do velho Vicente em terras cabralinas contava ele , ao médico,  a sua eterna reclamação com os banheiros. Para Vicente , acostumado a ter a floresta como WC, aquilo era um cerceamento total de liberdade.
                        --- O povo aqui é como jumento de lote, Dr. Fernando,  caga tudo num monte só !
                        --- Seu Vicente e como é lá na Várzea Alegre, não tem toillete, não ?
                        --- Tem o campo todo, Dr. Fernando. Cada dia o banheiro é uma moita diferente ! O senhor não sabe o que é felicidade, não. Se acocorar debaixo de um pé de pião roxo, fumando um cigarro de palha e , depois, se limpar com um sabugo !  Oh ! alívio, Oh ! felicidade !
                        --- Com um sabugo, seu Vicente ? E presta ?  Num tem papel higiênico não ?
                        --- Papel higiênico ? Tá doido, seu doutor ?! Papel higiênico perde feio pra sabugo ?
                        --- Como assim, seu Vicente ?
                        --- Sabugo tem logo três serventias : limpa, coça e penteia ! E aqui na Bahia, depois do meio dia,  parece que tem ainda outras prestâncias !
                        Depois da colação de grau de Raimundo, Seu Vicente voltou ao médico, levando uns exames solicitados e, também, decidido a pegar a receita do “ De venha ca´”. Dr. Fernando, então, começa a encompridar conversa. O velho Vicente  disse-lhe que havia passado um aperreio danado depois da festança. Degustara a típica comida baiana, puxada a dendê,  e a iguaria o tinha destemperado. Tinha retornado à República apertado , deixado os convidados na comemoração.
                        --- Passei a noite cagando sem o cu saber , seu doutor ! O pior é que procurei sabugo no banheiro e não tinha, nem papel, nem folha, nem pedra. Não tinha como me limpar.
                        --- Vixe, Seu Vicente ! E como diabos foi que o senhor resolveu essa sinuca de bico ?
                        --- Dr. Fernando, só teve um jeito e melhor a até que o sabugo .  Era tarde da noite e,   eu nu, desci escanchado no corrimão da escada : vulpt !


25/08/2017

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A unção da água


                                              
Houve um tempo em que a luz elétrica ainda não tinha inundado as ruas. Os fantasmas ainda perambulavam  pelos cantos das casas e dos becos assustando os passantes. Os carros ainda não tinham se apossado das vielas e expulsado os burros e as carroças. A rua ainda era o playground   das residências , transformando-se em campo de futebol, em rodas de peteca, em correrias de pega-pega e bandeira. Os dias amanheciam com a lua e adormeciam nos crepúsculos. A luz baça dos candeeiros imprimia um ar meio intimista  e meio sinistro aos ambientes. De noitinha , as cadeiras saltavam lépidas  para as calçadas , rodinhas se formavam, fofocas se debulhavam: a TV ainda não havia hipnotizado as pessoas. Vivia-se e morria-se a prestação. A morte ainda não era servida  em módicas mensalidades nos leitos da UTI.  Os cratenses viam-se nas quermesses, nas bodegas , na missa. A vida era simples , sem arroubos, sem vales ou picos.
                            A classe mais humilde encontrava-se, mais frequentemente, nos chafarizes. Ali iam as donas de casa , diariamente, pegar a fila, com seus vasilhames, com fins de abastecer os depósitos de casa : o pote, a jarra, o tonel,  a bacia. A água ainda não descia, amestrada,  em canos das fontes do pé da serra. Enquanto aguardavam a vez, conversas puxavam conversas, fofocas fluíam , como a água do chafariz. “Vitalina , minha comadre, parece que tá buchuda de um comerciante da Rua Grande !”  “Hercília, tem saído de casa de tardezinha, dizendo que vai buscar lenha no cafundó. Acho que anda costurando pra fora!” “Marreco, ontem, furou dois cabras!” Água escorrendo, latas d´água na cabeça, lá iam subindo as mulheres ladeira acima. O chafariz era o grupo de WhatsApp da época.
                            O chafariz era um anexo das nossas fontes do pé da serra. O murmuro das águas impregnava a vizinhança de uma tranquilidade de  levada corrente. Transeuntes lavavam-se, banhavam-se,   aplacando o calor do dia a dia. As vidas pareciam mais líquidas, fluindo lentamente sem estertor e sem cascatas à medida que as horas serpenteavam , sem pressa,  em direção à foz crepuscular. As pessoas , mais úmidas, imantavam-se um pouco da limpidez da água. As almas faziam-se mais transparentes como se ungidas , novamente, em pia batismal. Ao voltarem para a pobreza de suas casas, apaziguados e bentos pelas águas de Oxum, os espíritos pairavam por sobre a miséria: como se as águas  já se lhe bastasse. Como se o dilúvio  já não existisse, como se alguém gritasse “Terra a vista ! ” e a pombinha acabasse de retornar com o galho de oliveira dependurado no bico.


18/08/17


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Uma Cococi no Cariri


J. Flávio Vieira


“Políticos no Brasil não são eleitos pelas pessoas
que leem jornais, mas pelas que se limpam com eles”.



                               Há uns dez dias,  saiu a lista das cidades cearenses que foram contempladas com a instalação do Curso de Medicina e, mais uma vez, o Crato se viu humilhado e preterido. Sempre é bom lembrar que a nossa Faculdade  fizera-se um dos slogans mais fortes da Gestão Municipal anterior e que tem sua continuidade, em todos os aspectos até agora, na atual administração. Claro que se podem imputar critérios técnicos para a exclusão do Crato, mas , sempre é bom lembrar,  num país onde a corrupção e a troca de favores fazem-se moeda corriqueira na política nacional, os itens técnicos são os que menos se contam. Valem muito mais o compadrio, o “é dando que se recebe”.  O Crato foi preterido mais uma vez ( e esta é nossa sina eterna de Prometeu nos últimos trinta anos) por mera fragilidade política.
                        Observem bem  a Cidadezinha de Frei Carlos! Somos hoje uma quase vila fantasma, uma Cococi  caririense. Nas últimas décadas, nenhum grande município da região encolheu e murchou como o Crato. Somos um mero espectro daquilo que um dia já fomos e representamos. Alguns imputarão, imediatamente, a culpa à perseguição espúria de cidades vizinhas. É imprescindível, no entanto, que assumamos nossa nítida responsabilidade neste flagelo. Quase quarenta anos de administrações capengas ! Gestores e mais gestores se sucederam na ânsia de provar que poderiam ser piores que seus antecessores ! Nenhum amor à terra, ao nosso passado glorioso ! Relegamos nossa vocação natural , ecológica e cultural,  a quinto plano; destruímos um patrimônio arquitetônico que nos realçava a história; deixamos que a cidade visse esvair suas forças,  um pouco a cada ano e muito a cada nova gestão. A perda da Faculdade de Medicina, assim, é um mero capítulo neste conto de terror. Já tínhamos perdido, anteriormente, o Campus da Federal e  a hegemonia na Educação privada  de Níveis Médio e Superior.
                        O maior sintoma dessa decadência pode ser vista na nossa Rodoviária. É ali onde os visitantes chegam para a maior festividade que ainda, por enquanto,  nos restou : a Expocrato. Erguida nos anos 70  , apenas pela metade, caindo hoje aos pedaços, ela é um pardieiro. Nenhuma cidade de porte médio do Ceará tem uma construção tão decrépita e decadente. E esta é a primeira visão que o nosso visitante tem da nossa cidade! Durante quarenta e dois anos, nenhum prefeito acordou para isso ?  Neste vácuo eterno administrativo, a população resolve tomar suas iniciativas. O que não tem dono, a todos pertence ! Vendedores ambulantes invadem a Praça da Sé reformada em administração anterior. Um quiosque inclusive, mais organizado, tomou de assalto a área do estacionamento. Nas ruas, verdureiros,  vendedores de alimentos e de quinquilharias estabeleceram suas banquinhas, assentando-se em espaço público. Comerciantes maiores constroem jardineiras nas calçadas públicas, sem seguirem critérios de acessibilidade. Aparentemente já não existem Códigos de Posturas Municipais. Se a cidade toda pretende tornar-se um mercado persa, para que construir o Camelódromo ? Ah ! mas, fiquem tranquilos, há notícia de que a atual administração está projetando um teleférico que deverá ligar o nada a coisa nenhuma.
                                   Semana passada , após a decretação mais nova da nossa total decadência política, uma Comissão de Políticos e Comerciantes partiu para Brasília tentando correr contra o prejuízo. Outros partidos, de oposição, também divulgaram notícias de que estavam antenados com o problema e buscando ajuda federal. Ninguém previu, com antecedência, este desfecho? Todos , governo e oposição, ao invés de colocarem tramela antes da casa ser assaltada, agora resolveram fazer um B.O. . Vão tentar conseguir de volta o que já por duas vezes nos foi negado. Em ano pré-eleitoral vão negociar num toma-lá-dá-cá com lideranças políticas nacionais que, num país sério, deveriam ter gabinetes não em ministérios, mas no Carandiru. Louvo a atitude dos nossos desbravadores. Certamente, mais uma vez, voltarão com as malas repletas de promessas. Poderão ser usadas em exercícios de ilusionismo em ano eleitoral.  Mas nem só de promessas vivem os homens nem as urnas !  Precisamos entender, realisticamente, que todas as perdas que tivemos seguidamente nos últimos quarenta anos vieram da nossa total fragilidade política. O culpado precisa ser procurado na lâmina do espelho. Voltem, arrumem a casa, exerçam a função para qual foram eleitos! Pensem grande ! Acabem com as eternas chagas  como o nepotismo desenfreado; loteamento de cargos, sem nenhum critério técnico;   desvio de recursos em veredas escusas de licitações.  Reconstruam a cidade que  durante um período já foi a mais importante vila  em todo o  país. Demonstrem capacidade administrativa, atacando nossas maiores prioridades: saúde, educação, segurança , moradia , combate à pobreza, geração de empregos : tudo isso precisa saltar do palanque para a vida prática. Invistam no fortalecimento da vocação congênita do Crato : Ecológica e Cultural.  O único teleférico  que necessitamos é aquele que irá unir nossas prementes necessidades aos meios administrativos e políticos de solucioná-las.  Façam isso e acabem essa sempiterna sangria.  Com fortaleza política , nossas obras retornarão como por encanto e já não necessitaremos ir a Brasília. Brasília virá até nós !

Crato, 10/08/17

                                      

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Abre-te , Sésamo !


                                               --- Floresceu !
                                   Aquelas palavras abacadrábicas parecem ter sido pronunciadas como uma espécie de senha. Hortelina fitara a natureza, ao derredor, com olhos baços e distantes ,num desses janeiros chuvosos , depois do ressequido e  implacável bê-erre-o-bró  e deixou escapar aquela palavra , pausadamente, sílaba por sílaba, quase como uma prece. O certo é que, depois daquele dia e daquela citação algo solene, uma inesperada revolução aconteceu na vida de Hortelina. Os últimos dois anos tinham sido pesados e tortuosos. Cada amanhecer trazia consigo sua carga inesgotável de dissabores e atropelos. A sensação que a mocinha percebia era a de que comera o caju saboroso e doce da existência e, chegando ao finalzinho, sorvia o travo que lhe punha a língua em carne viva.
                                    Vivera um casamento de Conto de Fadas por mais de vinte anos. Cristovaldo, o marido, um notário , dera-lhe uma vida tranquila e confortável. Tiveram um amor de adolescência , de princípio devastador e incendiário, mas que se manteve arrefecido , por brasas de amizade e respeito,  quando os ventos da idade já não alimentaram tanto as chamas e elas começaram a perder o vigor de outrora. Hortelina e Cristovaldo eram inseparáveis e o sentimento que os unia transparecia reciprocidade. Nunca se soube de aventuras do nosso tabelião, todos que o conheciam eram unânimes em dizer que jamais mijara fora do caco. Vieram três filhos, criados neste ninho acolhedor, que , crescidos, como bons nordestinos, levantaram voo em busca do Shangri-lá do Sul. Biblicamente, Cristovaldo e Hortelina  resolveram envelhecer com o parceiro da juventude e mantiveram-se juntos, como se untados em Araldite, até que , há uns dois anos, chegou o visitante inesperado. Sem aviso, sem altercações, levou Cristovaldo para aquele  acerto final de contas , untado em nada , aspergido em pó.
                                   Impossível avaliar o imenso impacto que a perda despejou em cima da pobre Hortelina. Viúva, fechou-se para o mundo. Enclausurou-se , saindo eventualmente para as missas do domingo. Amigas mais próximas tentaram ajudar, aproximaram-se, tentaram demovê-la daquele luto pesado: em vão. Imaginaram-na depressiva e contavam, como favas contadas, que mais dia, menos dia, Hortelina iria encontrar com seu amor eterno, quebrando a inexorabilidade do contrato nupcial do “até que a morte os separe!”.  Hortelina manteve-se inflexível até , exatamente, aquele janeiro em que fitou o horizonte e, de olhos brilhantes, citou a senha da ressureição: “Floresceu !  
                        O certo é que , após aquele Abre-te-Sésamo, a vida de Hortelina virou de ponta cabeça. Tomou um banho de loja, refez o cabelo e a maquiagem, remasterizou as amizades, agora cercando-se com mocinhas solteiras e ariscas. Passou a ser fichinha carimbada de festas e bailes e pôs-se a trocar de namorados , como trocava de roupas e acessórios. Aquela mudança súbita e  tão radical chocou amigos e conhecidos. “Endoidou!” “Vamos ser viúva alegre, mas assim já é demais!” “O pobre do Cristovaldo deve está estrebuchando na cova!” Estes eram os comentários que se ouviam nas pontas de rua. O velho Zeferino Seabra, estupefato com a transformação de Hortelina, comentou um dia com a esposa:
                        --- Matilde, se eu adivinhasse que, morrendo, tu ficava feliz como essa Hortelina, eu juro por Deus, mulher, eu me suicidava !


                        Ninguém conseguiu entender aquela mudança súbita e abrupta  , do vinagre ao vinho, na vida de Hortelina. Um dia ela confidenciou a uma das novas amigas. Tristonha, depressiva, solitária, naquele dia , na calçada do casarão, pôs-se a contemplar a natureza. Com tantos meses de estio, o marmeleiro tinha desde agosto,  despido-se da sua folhagem. A paisagem acinzentara-se, com galhos estendendo-se aos céus, como em prece por melhores tempos. Com as primeira chuvas, no entanto, vira naquele dia, as árvores vestirem, novamente, o mais lindo vestido verde e explodirem em flores brancas para o himeneu que já se prenunciava. Hortelina, enquanto se arrumava para sair com a amiga, explicou, então,  as forças da sua metamorfose:
                        --- Percebi que , como a natureza, a vida tem suas estações. Vivi um longo verão com Cristovaldo. De repente,  um Outono e um Inverno glacial tomaram conta da minha alma. Os marmeleiros me ensinaram, novamente, a arte do despojamento e, depois, do reflorescer. Primaverei !


04 de Agosto de 2017   

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Placenta


J. FLÁVIO VIEIRA



                                   Não se engane não , amigo: não há qualidade neste mundo que não carregue amorcegada consigo sua dosezinha de  defeito. Para cada face visível de nossas luas,  há sempre uma outra oculta e menos brilhante. Assim,  os feios , por mais incrível que possa parecer, carregam consigo uma grande vantagem em relação àqueles que foram agraciados com a beleza. A princípio , os papangus apanham de goleada : perdem a maior parte das conquistas amorosas para os bonitões de plantão, principalmente na adolescência quando o apelo físico se mostra sempre mais pujante. Com o tempo, porém, os feiosos começam a ganhar terreno. É que o tempo é inexorável para com a beleza. À medida que saltam as rugas, que as pelancas substituem os músculos, que a força gravitacional prevalece, o impacto é terrível naqueles que um dia já ornamentaram as ruas e os bailes com sua vivacidade  bela e juvenil. Nos que sempre se afastaram dos ideais estabelecidos da beleza física, por outro lado, o contraste é mesmo perceptível. Entre o horroroso e o belo existe um abismo; entre o feio e o muito feio, uma levada :  as fronteiras são menos delimitadas.

                        É claro que com o passar do tempo, a lei de Vinicius de que a beleza é fundamental, começa a ganhar novas nuances. Vencida a adolescência, todos ficamos mais pragmáticos e passamos a avaliar outros tipos de beleza além daquela eminentemente física. Atributos outros compõem alguma coisa que poderia ser definida como charme : bom humor, bom papo, inteligência, condição financeira, equilíbrio emocional. As forças de atração entre os sexos começam a ser estabelecidas por novos critérios, dependendo dos valores e aspirações de cada um. A beleza física, no entanto, por ser a mais claramente visível , estampando-se como um outdoor , a priori, permanece como uma das forças mais importantes nesta soma vetorial. Os  feiosos , assim, precisam se desdobrar e carregar os cartuchos com outros atributos, sob pena de se verem relegados profissional e amorosamente; mesmo sabendo que o tempo joga no seu time.
                        Em Matozinho, havia duas figuras da política local tidas como horripilantes. Um deles era o prefeito Olegário Jurubeba. Baixinho, corcunda, vesgo, com a cara picotada de espinhas, puxava ainda de uma das pernas. Tinha o apelido de “Placenta”. Rezava a mitologia local que só havia uma explicação para tamanha feiúra : a mãe de Olegário era meio cega e, quando o filho nasceu, jogou no mato o menino e criou a placenta. A outra figura era o presidente da Câmara Municipal : Adelino Castriciano. Alto, desengonçado como um boneco de Olinda, tinha os olhos a meio pau e um nariz adunco como um tucano.  Diziam todos que para ser chamado de feio ele precisava ainda melhorar muito. Por razões óbvias carregava o epíteto de “Briga de Foice”.
                        Semana passada , D. Minervina, uma lavadeira pobre de Bertioga, dirigiu-se à prefeitura de Matozinho. Pretendia conseguir um emprego de gari para o filho. Conhecia os dois personagens apenas de nome. Soube que andavam cadastrando pretendentes ao cargo e partiu para lá. Tonho, o filho de Minervina, não dava um prego numa barra de sabão. Estava já com quase trinta anos e quando falavam em Trabalho ele, imediatamente, ficava todo suado, tonto  e passava mal. Pois a lavadeira chegou à prefeitura e se informou onde podia falar com  Olegário Jurubeba. Um secretário sonolento disse que ela procurasse na segunda porta , no fundo do corredor. Minervina quis, imediatamente , saber como identificar o homem,  pois podia ter outras pessoas lá e ela queria demonstrar, de início, já uma certa intimidade com o edil. O secretário da prefeitura foi bastante didático:
                        --- Abra a segunda porta e procure lá o homem mais feio que a senhora encontrar : ele é o prefeito !
                        Minervina seguiu a orientação dada. Ao se aproximar da segunda porta indicada, porém, deu de encontro com  Adelino Castriciano, o presidente da Câmara, que tinha ido resolver algumas pendências com a autoridade máxima do município. Assustada, vendo aquela figura horrorosa, parecendo mais um fiofó com cãimbra, entendeu imediatamente que era aquele a quem procurava:
                        --- Seu prefeito, eu vim de Bertioga e precisava falar um negócio com o senhor !
                        Adelino, então, explicou que não era o prefeito, que era vereador. Minervina, desapontada, deu meia volta e desistiu. Quando passou na recepção da prefeitura, o secretário admirou-se da rapidez da audiência e perguntou :
                        --- A senhora falou com o prefeito ? Achou a sala ?
                        Minervina, então, explicou a desistência:
                        --- Não, Deus me livre ! Eu desisto ! O senhor disse que eu procurasse o homem mais feio que encontrasse. Falei com um ali que parecia um caititu com convulsão e ele disse que não era o prefeito. Mais feio do que aquilo, desculpe, meu senhor, eu num tenho coragem não ! Deve ser um bicho com sustança de feiúra pra assombrar uma casa com três cozinhas e uns dez quartos !   Zulive ! Vôte !

Crato, 28 de Julho de 2017