terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Avô Adotivo


Não sei a que atribuir aquela confiança cega que de repente se me depositaram. Pode ter sido estas mechas brancas que teimam em me tingir a barba, ao quebrar o cabo da desesperança dos cinqüenta. Ou as rugas que me vão mapeando o rosto, como troféus de muitas batalhas empreendidas e poucas ganhas. Talvez, até, este ar um pouco distante de quem procura o que não pode encontrar , de quem teme a estrada curta e imprevisível que se abre , morosamente, adiante. A placidez ,apenas aparente, dos desiludidos e desencantados.O certo é que a garotinha de uns cinco anos, interpelou-me enquanto fazia do encosto do bureau da sala de espera, um escorregador. Rostinho redondo, bochechinas salientes e olhos vivíssimos que saltavam da moldura de um cabelinho negro, curto e liso, cortado em pastinha. Fitou-me decidida ao me ver passar, exausto, depois de um longo dia de trabalho. Parou as atividades no playground em que transformara a sala de consultório e me chamou, como se fôssemos velhos e inseparáveis conhecidos:
--- Hei ! Hei ! Vem cá !
Mergulhado em preocupações mil, aquele fiapo de voz tocou meu coração, como se fora “A Primavera” de Vivaldi. A alegria e felicidade puras que brotavam como água cristalina da fonte da inocência. Aproximei-me desarmado como que tocado pela varinha de condão da fada madrinha. Desobedecer a um chamado destes, quem há-de ? Agachei-me um pouco, em reverência e , obedientemente, lhe fiz continência :
--- Olá ! Como você está?
A menininha sorriu-me , angelicalmente e me fez um convite totalmente inusitado:
--- O Senhor não quer ser meu avô, não ?
Hesitei, um tanto, ante um pedido tão carinhoso e estranhamente tão inesperado. Temendo ser pouco convincente, disse com voz titubeante que queria sim, que gostaria muito. A menininha pareceu contente e , por fim, explicou a necessidade da substituição necessária:
--- É que meu avô morreu e eu tou sem avô, ó !?
Já me recobrando da surpresa e buscando entender os ínvios caminhos do coração infantil, fui mais enfático. Conversei mais e disse que a partir daquela hora ela tinha um novo avô. A garotinha parece que havia encontrado uma Barbie perdida. Abraçou-me e voltou ao seu escorregador que , afinal, ninguém é de ferro.
Saí dali encantado com o convite. Afinal, hoje , avô é artigo de luxo. Com os jovens libertos e sem amarras, nascem filhos temporões que terminam por enfeitar a vida já um pouco ressequida de tantos avós. Não bastasse isto, com a doideira da vida moderna, com pais e mães numa corrida desenfreada em busca da sobrevivência,quem convive com os pirralhos ? Os avós ! Aí a convivência mostra-se sempre de mão dupla: eu te dou a segurança, a experiência e vocês me fornecem um pouquinho da preciosa seiva da vida. Nós lhes aplacamos os temores da floresta e vocês nos mostram onde ainda existem frutos deliciosos e sazonados. O avô é o pai domesticado: sem o grito, sem a palmatória, sem a cara emburrada. Tendo a visão privilegiada do rio da vida, ele entende que os acidentes são inevitáveis, que as águas muitas vezes se tornam turvas, que o fluxo vezes se mostra calmo, vezes tormentoso para quaisquer navegantes de primeira viagem. O tempo dá ao avô a prerrogativa da tolerância , com a pena pronta para a Hábeas Corpus , a alvará de soltura, a carta de alforria.
Despedi-me sob o peso da imensa responsabilidade que me acabava de ser conferida. Ser avô independe, geralmente, da nossa vontade e os netos, infelizmente, não têm o sagrado direito da escolha. Pois bem, a minha missão fazia-se bem mais árdua: a partir daquela data, a garotinha me havia eleito Avô Adotivo. Ela, mais que ninguém, demonstrava, claramente, a falta que lhe fazia aquela perda prematura. Sem maiores credenciais devo fazer tudo para não decepcioná-la. Mesmo sem estar perto, sem conhecer seus pais , sem sequer saber onde ela mora ; me acho no dever de fazer tudo ao meu alcance com o intuito de ela entender que a vida é apenas mais um capítulo de um Conto de Fadas. Apesar das bruxas, das maças envenenadas e das madrastas, sempre é possível encontrar um príncipe em cada esquina da existência e fazê-lo calçar o nosso sonho no sapatinho de cristal das nossas esperanças.
Antes de sair ainda ouvi a vozinha doce da minha neta mais nova :
--- Tchau, Vôiinho !

30/12/08

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Desejos


Epílogo de ano é sempre assim, caro ouvinte. Bate às vezes aquela capiongueira : tantas coisas que podiam ter sido realizadas e que não foram ! Tantas oportunidades perdidas ! Tantos comensais que já não sentam conosco para a ceia! Tantas aspirações frustradas ! Pomo-nos , então, facilmente, no ataque fazendo projetos para o ano vindouro! Desta vez a coisa vai ! Vou parar de fumar! Em 2009 começarei um programa de atividades físicas ! A partir de janeiro , vocês vão ver: inicio a dieta e perderei essses 40 kilos de excesso ! Esta época de férias e de solidariedade algo superficial mostra-se também especial no quesito desejos : fazemos votos de felicidades e prosperidade para tudo e todos. Feliz Natal ! Felizes Festas ! Próspero Ano Novo! Dezembro traveste-se de um clima aparente de compreensão, de amizade, de fraternidade. Uma espécie de trégua na batalha desigual travada por toda a sociedade com muitos abatidos e feridos, nos outros onze meses do ano. Um escritorzinho bissexto como eu sente-se impelido a emergir nesta atmosfera algo enganosa de sorrisos fartos e amorfos chavões. Os raros ouvintes na rua já me olham com aquele ar interrogativo : será que esse incréu não vai fazer votos de realizações pra ninguém ?
Pois bem, por falar em anseios e em Natal, semana passada me veio à lembrança aqueles desejos tão freqüentes nas grávidas . De repente a buchudinha acorda na madrugada e avisa ao marido que está desejando comer jaca, torta de melancia ou outra iguaria qualquer facilmente encontrável às três horas da manhã. O esposo, coitado, arranca em desabalada carreira em busca da comida solicitada, temendo contrariar a natureza, sob risco da menina nascer com corpo em formato de Jaca ou o menino com uma barriga tipo melancia. Pesquisei – coisa de quem não tem muito o que fazer nesses dias morosos – e descobri algumas constatações científicas interessantes. O velho Vicente Vieira, meu avô, achava que tudo aquilo era encenação das grávidas, charminho pra cima do marido e concluía enfático “ Nunca vi uma desejar coisa ruim, é só chocolate, tapioca quente com nata, doce de leite com queijo de manteiga”! Pois bem, amigos, a ciência admite que estes desejos existem de verdade e devem-se provavelmente às intensas alterações hormonais que acontecem durante a gravidez. E mais , ultimamente sua freqüência tem aumentado muito em todo mundo, pesquisas comprovando que, atualmente, ¾ das gestantes sofrem desta compulsão . Infelizmente para os feios como o Heron, o Vicelmo, o Geraldinho, a Ciência não permite colocar-se a culpa da feiúra nos desejos maternos não satisfeitos : essa cara de carranca do São Francisco , meu amigos, foi azar mesmo e o jeito é se conformar com os erros eventuais da santa natureza. Se servir de consolo : talvez o que faltou em vocês a natureza colocou de sobra na Gisele Bündchen e na Juliana Paes. Valeu a pena o investimento!
Mas o que me despertou, semana passada, nesta época natalina, para os desejos? Uma amiga nossa, aqui de Crato, grávida em Fortaleza, sentiu, subitamente, o desejo irreprimível de comer algo totalmente inusitado. Imaginem o quê ! Um sanduíche do Enoque ! Talvez os mais novos não se recordem do fabuloso cachorro quente de Enoque.. Todo ano ele punha uma pequena barraca na Expô/Crato e vendia um sanduba simplesmente fabuloso que faz parte da memória gustativa de toda uma geração de caririenses, assim como a tapioca com fígado de canena , o caldo de mocotó de Bosquim, o Doce de Leite de Isabel Virgínia. Há alguns anos, inconformado com as altas taxas cobradas pela organização do evento e as misteriosas prestações de contas, ele desistiu. Enoque foi um jogador de futebol dos mais inspirados e ainda vivíssimo reside ali pras bandas da Caixa D´água. As novas gerações acostumadas àquele sanduíche de isopor da Mac Donalds e do Bob´s possivelmente não irão compreender o desejo da minha amiga. A mãe da nossa buchudinha procurou nosso sandwichman e ele preparou com todo gosto e requinte seu inesquecível sanduba que foi mandado de avião no mesmo dia, para a salvação do bebê que , caso contrário, corria o risco de nascer redondinho, insulso, insípido e inodoro como um Big-Mac.
Pois foi justamente esta historinha que me inspirou a escrever esta croniqueta de fim de ano. Todos nós ficamos grávidos de sonhos e aspirações neste período natalino. Pois aí vai também o meu desejo !Ah como seria bom se tivéssemos desejos parecidos como os de minha amiga. Se todos nós acordássemos na madrugada com aquela vontade insaciável de ouvir uma música de Abidoral, dançar um Reisado do Mestre Aldenir, comprar um quadro do Karimai, , sapatear um Coco da Dona Edite, usar uma Sandália do Mestre Expedito das Nova Olinda , botar na sala uma xilogravura de Maésio, deliciar-se com uma poesia do Marcos Leonel. Ah como o menino dos nossos sonhos nasceria bonito e robusto e o Ano novo romperia no horizonte com novos vagidos de paz e esperança !

26/12/08

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O Veio da Vida

Acordou encafifado: meio barro, meio tijolo. Mundo se projetando algo sombrio, como um filme noir. As paredes da velha casa , opressivas , carregavam-se com aquele limo pegajoso e úmido das prisões.A vida resumia-se a alguns fragmentos desconjuntados do passado: um puzzle disperso, impossível de ser reorganizado.Rápido percebeu que faltavam resquícios de vida ao derredor , até mesmo porque o ambiente é apenas um mero reflexo das nossas luzes interiores. Quem sabe, adornando aqueles interiores com o verde frescor de alguma begônia, o mundo se re-imantaria de magnetismo vital ? Perambulou pelas ruas como quem procura um objeto inencontrável : o Santo Graal da felicidade desvanecida.
As rosas da floricultura lhe pareceram opacas e inodoras . Os pássaros na feirinha apresentaram-se profundamente silentes e apenas refizeram na sua alma a angustiante gaiola em que subitamente vira transformada, pela manhã , o seu “ Lar Amaro Lar”. Nem lojinha de animais de estimação melhorou-lhe o ânimo, sentiu-os como que empalhados e, num átimo, percebeu que o hamster, o periquito, o chihahua seriam incapazes de repovoar o deserto em que se transformara a casa. Sequer os peixes multicolores no aquário iluminado no cantinho da loja resplandeceram alegria e vivacidade.
Sentia-se como único sobrevivente de uma explosão nuclear, tentando refazer o mundo com os dispersos estilhaços que restaram. Desiludido , sem saber bem porque nem pra que, comprou de um vendedor introspectivo e frio, um aquário, sem água e sem peixes. Seguiu para casa com aquele trambolho e colocou-o , sintomaticamente vazio , na pequena estante da sala que abrigava a TV. Pressentiu, com os dias, que aquele aquário como que representava um retrato da sua alma: oca, ressequida e sem aparente utilidade. Aquela imagem, estranhamente, aumentou o ar denso e quase irrespirável da sala.
Saiu, no outro dia, em busca , de um habitante para o aquário. Na esquina encontrou um vendedor de fósseis e , num ímpeto, adquiriu um pequeno peixe petrificado. Em casa colocou-o cuidadosamente dentro do aquário. Com o passar dos dias foi como se a sala se iluminasse. Já não existiam objetos ao derredor, o fóssil no aquário da sala alegrava-lhe a vida, mas , por outro lado, mantinha-o hipnotizado e submisso. Não mais saiu à rua, deixou de atender telefone, a TV já não tinha qualquer sentido. Algumas semanas depois começou a notar que as paredes da casa se iam tornando mais escuras e compactas e avançavam em direção ao centro , como se fossem se encorpando, dia após dia. Começou notar em si mesmo a pele mais escura e endurecida e com o passar do dia se foram transformando em escamas. As articulações se foram emperrando até leva´-lo à total imobilidade. Um belo dia as paredes da sala o aprisionaram definitivamente. Desde então aguarda , ansiosamente, as pancadas do martelo que rompam o veio da pedra e mostrem seu testemunho petrificado para a estonteante mobilidade da vida.

Crato - 23/12/08

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Presente de Natal


--- Trimmmmmmm !!!!!!!

O estampido do telefone soou dentro da sua alma , como se tratasse de uma locomotiva a vapor. É que os últimos meses tinham sido terríveis. Funcionário de uma estatal, com salário minguado , mas regular, há um ano aderira a um destes fabulosos planos de demissão voluntária. Não dava mais para suportar o ambiente de trabalho: cobranças ininterruptas e o chefe olhando pra ele com aquele cara de carrasco , de “cuidado , você é o próximo!”. Pegou a indenização parca que lhe pagaram pelo seu suicídio prematuro e abriu um pequeno negócio de portões eletrônicos. De início a firma andou de vento em popa: com a incrível insegurança urbana, os homens precisam criar os seus castelos inexpugnáveis, pensando que assim podem se isolar do mundo. Chegou até a imaginar que a demissão tinha sido uma das melhores decisões que havia tomado. Em pouco, porém, o mercado se viu saturado, eram tantos e tantos outros , na mesma situação dele, dividindo a mesma fatia do bolo! Não bastassem as pequenas piabas iguais a ele, com a globalização entraram peixes grandes no aquário e aí , a ração só sobra para os tubarões! Quebrou e se encontrava naquela situação desesperadora: os amigos antigos se afastaram, os cobradores batiam à porta a todo instante, os filhos já tinham sido transferidos para escolas públicas, o aluguel atrasado quatro meses e ninguém mais aceitava seus vales. Os vizinhos diziam, com sorriso maroto: --“Não tem crédito nem para comprar a vista!”. Esse era o fosso verdadeiro em que se encontrava no exato momento em que o telefone tilintou , desesperadamente: talvez por isto foi que penetrou tão agudamente no fundo da sua alma.

--- Trimmmmmmmmmmm!!!!!!


Nos últimos dias aquele aparelhinho havia feito pacto com o demo. Atendê-lo configurava-se em causa imediata de aborrecimento. Cobradores circulavam sua casa , como aves de rapina e as chamadas eram uma espécie de aviso prévio do ataque faminto e guloso. Assim pediu à esposa que atendesse e desse uma desculpa qualquer: saiu, viajou, foi para a missa! A companheira atendeu contrafeita : já não mais suportava criar estórias fantasiosas e esfarrapadas. O semblante tenso da mulher relaxou um pouco quando ouviu a voz do interlocutor, do outro lado da linha. Conversou pouco e formalmente: tudo bem, tudo em paz, todo mundo com saúde! Virou-se aliviada para o marido e passou o fone:

--- Sua mãe!

Num primeiro momento, sentiu-se aliviado. Nada como ouvir a voz da mãe num momento destes. Certamente tinha sido o sexto sentido materno que havia , como um timer, disparado e a impulsionara a ligar imediatamente para o filho. A velhinha morava em outro estado e andava muito doente: perdera a vista praticamente, ouvia mal e deslocava-se com grande dificuldade. O filho pressentia, no entanto, que em meio à tamanha debilidade orgânica, havia uma força estranha e profunda, aquela energia materna, capaz de reacender as mais arrefecidas esperanças. No instante seguinte, porém, estacou absorto e vacilou : seria justo beber aquela última centelha de luz, da sua mãe ? Ela a cederia com o maior prazer e abnegação, mas seria justo?

--- Mamãe? Tudo bem ? Aqui tudo às mil maravilhas! Os negócios estão crescendo, como nunca imaginei. Sou agora um dos maiores empresários do estado! Reformamos a casa e estou falando com a senhora, neste exato momento, deitado numa cadeira , na beira da piscina olímpica aqui do quintal. A mulher arranjou um trabalho na procuradoria do estado e está ganhando uma nota preta. Troquei o carro esta semana , por um outro do ano e importado. Como o Collor, já não agüentava estas latas de sardinha nacionais! Queria até que o seu neto, mamãe, estivesse aqui para falar com a senhora, mas foi para os Estados Unidos, conhecer a Disney e só volta no fim do mês. Não vamos poder ir agora no final do ano, infelizmente, porque estou ampliando a fábrica, mamãe; logo que tiver uma folguinha, dou um pulinho por aí. Beijo, mamãe! Feliz Natal para a Senhora. Sei que a senhora tá feliz, sei, não precisa nem dizer.Tchau!
Defronte dele, a mulher embasbacada, parece que tinha visto fantasma. Ele, calmamente, desvendou o mistério: Ela, minha filha, está doente , já não pode vir nos visitar e ver a porqueira de vida que estamos vivendo e mesmo que viesse, está cega, não viria nada. Quantas vezes ela, na minha infância não fez o mesmo? Seu pai não tarda a chegar! Quando ganhar na Loteria te dou uma bicicleta! Vou arrancar este dentinho de leite, não vai doer nada!Esta foi a única maneira que eu encontrei de dar para ela um presente neste Natal!
A mulher , entre lágrimas, sorriu! Adivinhou que são afinal estas pequenas mentiras , estes leves engodos que tornam a vida suportável e que vão realimentando as nossas baterias gastas, pelo tempo afora . Sem este filtro cor de rosa, a vida que já é um curta metragem ,surgiria aos nossos olhos, violentamente, com seu verdadeiro , sombrio e cru preto-e-branco. Estas mentirinhas, afinal, são como um prisma que se interpõe entre o frio e translúcido feixe de luz da vida e que acabam por fazer a refração , muitas vezes a transformando na beleza fugaz, mas multicolorida do arco-iris.

19/12/08

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Natal


Mais uma vez, o final do ano. Os espíritos já se banham nas doces águas do Natal e do Ano Novo. As luzes natalinas iluminam as praças e os jardins. Mensagens emboloradas já circulam pelos correios e pela Internet. O comércio rejubila-se com a consumista solidariedade. Os meninos do Grangeiro já estendem seus sapatos nas janelas na certeza da vinda do bom velhinho. Os da Batateira, tristes e desesperançados, preferem recolher as sandálias, na certeza de que Papai Noel nunca faz escala por lá. Os perus calam seus guglus e os leitões recolhem temerosos seus pernis : serão imolados em sacrifício nos altares natalinos.As famílias durante todo o ano desunidas , com os ares natalinos se tornam reunidas e , em trégua , recolhem um pouco as armas, até o toque de alvorada do ano novo.Lábios sussurrarão preces maquinalmente , num fervor vazio e superficial. Os bares e restaurantes se apinharão de confraternizações: um sem número de empresas reunindo funcionários e criando um momento fraterno e solidário que acabará daqui a pouquinho, embora devesse se estender por todos os dias do ano. Nos templos , homens e mulheres contritos se darão as mãos efusivamente, desejando-se felicidades mil ; as mesmas mãos que logo em seguida se fecharão para os mendigos e se cruzarão no peito para a miséria do mundo. As ceias natalinas, quanto mais fartas, mais prenhes de alimentos estranhos e estrambóticos: figo, nozes,tender, lentilhas, chesters, panettones , champanhe, passas e uvas.Servem mais para alimentar a vaidade dos anfitriões do que o estômago dos comensais. A Ceia que modificou os destinos da humanidade não foi regada apenas a vinho e pão?
As festas trazem sempre consigo alguma atmosfera de tristeza e de saudade. Com o passar do tempo, pessoas queridas já não respondem à chamada. Talvez porque, como dizia Manuel Bandeira, estejam todos dormindo, dormindo profundamente... Um belo dia estaremos sós diante da grande Távora vazia de cavaleiros.Algumas recordações se espreguiçarão a um canto, o passado grávido se debruçará em algum móvel da sala. . Talvez , neste dia, um comensal de longas barbas sente conosco na longa e solitária tábua e divida conosco o pão e o vinho, não mais que isto. Perceberemos então que a mesa se tornou gigantesca , acolhendo nossa nova família que agora possui irmãos de incontáveis cores e raças. Celebram as primícias da vida, com sua essência de fugacidade e de mistérios, enquanto se vai servindo a ceia farta regada pelo milagre dos peixes e dos pães.
17/12/08

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Fresta


--- Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha !
Aquela frase, dita de supetão, turvou o ânimo de toda a família. D. Mafalda mostrara-se sempre um exemplo de lucidez. Viúva precoce , conduzira toda récua de filhos com cabresto curto.A duras penas, com o minguado salário de professora, realizara o milagre dos pães e dos peixes. Nada faltou aos meninos do essencial e, vezes por outra, permitia-lhes um ou outro artigo mais chique , pois entendia, perfeitamente : é do supérfluo que se alimentam os sonhos. Seu esforço e sua rédea apertada surtiram o efeito imaginado, aos poucos se deparou com os rebentos encaminhados , quase todos formados e tocando a vida sem maiores atropelos. Todos reconheciam o árduo trabalho da mãe que lhes dedicou o melhor de seus dias e retribuíam-lhe com o conforto, o afeto e o carinho tão necessários à velhice. D. Mafalda morava na antiga casa da família apenas com uma agregada de muitos anos e que praticamente já fazia parte do clã. Apesar da distância, os filhos ainda lhe eram ligados umbilicalmente . As rugas e as cãs que lhe foram ofertando os anos proporcionaram-lhe um ar tranqüilo de monge tibetano. Todos os problemas envolvendo netos, bisnetos, noras, genros e os próprios filhos, invariavelmente vinham bater à porta da velha senhora e seus conselhos não só abriam caminhos, desarmavam espíritos, como adquiriam força de lei.Ao quebrar, no entanto, o cabo da boa esperança , aí por volta da oitava década, o peso da idade começou a parecer mais perceptível. D. Mafalda apresentava lapsos freqüentes de memória, muitas vezes já não reconhecia parentes mais próximos . A velha mucama relatava : ela andava “tresvariando” e conversando “arisias”. Os filhos preocuparam-se de início, levaram-na à consulta com geriatra, mas aos poucos perceberam que a seiva que nutria o caule de D. Mafalda começava a secar e aqueles lapsos significavam a queda das primeiras folhas, o ressequimento dos primeiros galhos que antecediam o fenecimento da frondosa árvore.Reunidos os filhos, optaram por deixá-la morando no seu próprio cantinho e contrataram duas enfermeiras para acompanharem o tratamento da mãe, uma vez que a velha empregada , artrítica, já não possuía forças para cuidados mais continuados.
Poucos meses depois, a companheira inseparável de D. Mafalda , subitamente, vez a viagem derradeira. Dormiu na terra e acordou no céu, conforme se comentou no velório. A perda da amiga de luta abateu intensamente a inabalável matrona. Sentiu quase como se perdesse o esposo novamente. Nos dias mais difíceis, a secretária fora de tudo : irmã, colega, confidente e ajudara na criação dos meninos como se os tivesse dado à luz.Esta nova perda embotou visivelmente o ânimo de D. Mafalda. A partir daí parece ter se acentuado seu processo de demência. Nova reunião e os filhos acharam mais sensato transferi-la para a casa da sua primogênita. Leocádia , após o divórcio, morava praticamente só, pois a filharada já ganhara o mundo e tinha vida própria.A aterradora frase de D. Mafalda soara justamente no momento em que Leocádia arrumava os pertences da mãe , providenciando a transferência planejada.
---Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha !
Passado o primeiro estupor(Meu Deus, mamãe agora pirou de vez !), os parentes começaram a refletir sobre a frase pronunciada por Mafalda.Enquanto arrumava os velhos guardados, acumulados ao longo de tantos anos, cada um embebido de vida e de passado, Leocádia começou a pensar no pedido da mãe. Que bom seria se se pudesse levar a janela da nossa casinha , a cada mudança que se fizesse na vida ! Bastava colocá-la em uma das paredes da nova residência e teríamos fresta aberta para o éden .Ao sentir saudades dos antigos vizinhos , era suficiente apenas se postar diante da janela mágica e perguntá-los pelas novidades. À noite, quando o silêncio baixasse sobre a cidade, seria possível conversar com os conhecidos fantasmas do casarão antigo, ao se aproximar da janela que trouxemos na mala.O bulício da rua sagrada da nossa infância estaria sempre ao nosso alcance, se pudéssemos carregar aquele velho rasgão que nos uniria eternamente ao passado. Além de tudo, furtada a janela, qualquer dissabor que nos turvasse a alma, saltaríamos para o quintal da nossa juventude e nos banharíamos nos seus indevassáveis mistérios: a goiabeira confidente, o velocípede veloz, a tina com seus segredos aquáticos. Depois, voltado o enlevo, ajoelharíamos na úmida areia e colheríamos todos os cacos dos nossos sonhos partidos, das nossas ilusões fragmentadas, da nossa felicidade espedaçada nas calçadas da realidade. Teríamos então todo o tempo do mundo para tentar refazer o quebra-cabeça. Quando assim nos aprouvesse, nos seria dado o direito de fechar a janela e mergulhar no presente, mas cuidadosamente deixaríamos a tranca frouxa, para qualquer emergência mais premente.
É , pensou Leocádia com seus cacarecos, D. Mafalda, talvez ainda esteja mais lúcida do que pensávamos.No auge do delírio talvez tenha nos legado sua mais sábia lição : qualquer mudança que empreendermos na existência, nunca se deve esquecer de colocar na mala, uma janela. É que as portas da vida estão sempre à frente, mas a felicidade, a alegria, o prazer estão nas pequenas janelas que por acaso tivermos a capacidade de escancarar para o pomar da nossa juventude e da nossa infância.


15/12/08

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Crônica de uma Romaria em Bertioga


Agosto jogava nos olhos dos matozenses dois sentimentos conflitantes. Nublavam-se as almas, um pouco, com o cinza do tempo e o calor escaldante. Em meio à terra devastada apenas um ou outro juazeiro, como um soldado de Pompéia, mantinha a lembrança única do verdor e da fartura. O Paranaporã, batendo piaba, mostrava-se vivo ainda em pequenos barreiros e caldeirões ao longo do seu curso. Os matozenses, no entanto, tinham, por outro lado, um motivo ainda de alegria. Comemorava-se, justo naquele mês, a grande Festa de Nossa Senhora dos Desafogados da vizinha e hoje próspera Vila de Bertioga. Após uma sucessão de casos inexplicáveis da padroeira milagreira , a festividade aos poucos se foi encorpando. De início doméstico e regional, o evento ampliou-se com o passar dos anos. A cidade quase que duplicava a sua população neste período.
Vinham romeiros dependurados em burros, jegues, paus-de-arara de tudo quanto era biboca deste país. Como na vida, o sagrado e o profano conviviam lado a lado. Todas ruas de Bertioga se atulhavam de pequenos comerciantes negociando tudo quanto é de picuaios e quinquilharias. Alimentos regionalíssimos : panelada, buchada, filhóis, passa-raiva, fígado com tapioca. Lembranças de tudo quanto é nacionalidade, predominando importados da China e do Paraguai esparramavam-se desordenadamente pelo chão. E, principalmente, artigos religiosos: terços, imagens, fitinhas, botons, ex-votos. Um parque de diversões se espalhava por toda praça da matriz, enchendo de felicidade meninos e adolescentes: Carrossel, Canoas, gangorras, Roda-Gigante. As novenas , concorridíssimas, deixavam irrespirável a já pequena igrejinha de Nossa Senhora dos Desafogados. O fiel pagamento das promessas, uma espécie de escambo espiritual, reabastecia de óbulos variados os cofres da paróquia. Missas se sucediam em três turnos e faces sofridas e mãos calejadas buscavam conseguir num outro mundo o que lhes havia sido confiscado descaradamente aqui na terra. O cabaré de D. Maria Juriti, do outro lado da cidade, reabastecia-se de madames vindas até da capital para abastecer o superaquecido mercado de pecados e vícios que depois seriam , piedosamente, descontados nas confissões com o Padre Vanderico, pela manhã.
Junto , naquela turba amorfa, se uniam romeiros, comerciantes, religiosos, políticos, agricultores e, também , os aproveitadores ; como aliás em qualquer aglomerado humano. De boa fé, ali, de coração aberto, apenas os romeiros e, conseqüentemente, anestesiados na sua crença, sujeitos a ataques de malandros de toda espécie. A crônica da última Romaria em Bertioga me passou o velho Giba, proprietário do mais famoso botequim de Matozinho.
Há em Bertioga uma santeira bastante peculiar chamada D. Regina. Viera da banda das Alagoas, em uma das romarias, anos atrás e acabou se estabelecendo na vila. Percebendo o mercado propício resolveu ser artesã em barro, esculpindo imagens de santos para vender, depois, aos romeiros. Sem muita habilidade, construía, geralmente, imagens disformes parece que aprendidas dos quadros de um Picasso que jamais conhecera. Na hora da comercialização, a identificação do santo se tornava, o mais das vezes, quase que impossível e a nossa D. Regina tinha pavio curto e de rastilho inflamadíssimo. O romeiro , observando um São Sebastião, perguntava o preço do Cristo crucificado, aí nossa santeira saltava com quatro pedras na mão. Nesta última romaria, um velho de São José do Egito, observando as peças à venda, pegou um pretenso São José, que (se sabe lá como ?) saíra torto feito o Corcunda de Notre Dame .Desconhecendo a caninana, caiu na besteira de perguntar , na sua inocência:
--- Ei , a Cuma é este Frei Damião ?
Regina enrugou o cenho e respondeu rispidamente que já tinha sido vendido. O matuto continuou observando as imagens expostas e se deteve, de repente, numa imagem de uma santa mal engembrada , vestida com um vestido longo pintado de verde abacate. Voltou a se interessar:
--- Ei dona, que santa esquisita é essa ?
A santeira saltou de lá:
--- Não ta conhecendo, não ? É Nossa Senhora dos Desafogados !
O matuto retrucou, com suas dúvidas:
--- Nossa Senhora dos Desafogados ? Mas toda vestida de verde, onde já se viu ?
Regina, então, cuspiu de lá :
---- É porque nesta época, seu abestado, ela tava servindo o Tiro de Guerra...
O caso mais insólito, no entanto, segundo Giba, aconteceu em uma das barracas que vendia um cafezinho esperto, com beiju, nas proximidades da Roda-Gigante. D. Arlinda , a proprietária, possuía um dos pontos mais tradicionais da Praça de Alimentação de Bertioga. A principal atração do estabelecimento, além da comida, era um rádio grande Transglobe de 12 faixas em que ela sintonizava, geralmente, a Rádio Sociedade da Bahia. Em períodos de festa, o aparelho tocava de sol a sol e engolia um carrego de pilha Ray-O-Vac todo santo dia. D. Arlinda colocava o Rádio, o mais das vezes, em um pequeno tamborete, lá no fundo da barraca, encostado na lona. Pois não é que um malaca, de tanto ouvi-lo tocar, cresceu os olhos e resolveu surrupiá-lo da dona! Esperou , à noite, o momento de pico no movimento , escorregou, discretamente para trás da barraca, meteu a mão por trás da lona, desligou o aparelho, enquanto empostava a voz e falava com aquele sotaque de FM:
--- Atenção! Atenção ! Interrompemos a nossa programação temporariamente por falta de energia elétrica em nossos transmissores, voltaremos dentro de alguns momentos. Não mudem a sintonia da nossa Rádio Sociedade da Bahia!
Estabelecido e esclarecido o problema, puxou o rádio e desapareceu na esquina para nunca mais voltar. Só uma hora depois D. Arlinda deu fé do problema técnico mas já era tarde demais. Até hoje, ao que parece, ainda está faltando energia elétrica em Salvador.

Crato, 11/12/08

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Um Boné



-- Um boné !?
Certamente haverão de interrogar vocês com ar enigmático e decepcionado. E o leitor, de imediato, concluirá que isto só pode ser falta de alguma notícia mais interessante vinda de Matozinho. Um sujeito tentando tirar suco de língua de papagaio. Paciência ! Por favor não vire a página só por causa de um simples e insignificante boné. Esse talvez seja também uma espécie de anzol literário que tentará aguçar sua curiosidade e mantê-lo preso, na transparente linha da narrativa, desde o princípio mixuruca ,até o parágrafo final. Assim, pois, embarquemos nesta viagem.
Dias atrás, numa solenidade dessas de só se suportar sob anestesia etílica, lá estava eu com um boné xadrez, desses que os franceses gostam de usar no final da tarde, quando vão comprar o baguette. Sentia-me um Jacques Prévert reencarnado, em plena Matozinho, quando um amigo, me vendo com aquela indumentária sui-generis, partiu em minha direção e olhou a peça de vestimenta com olhar apaixonado, me perguntando onde a tinha comprado. Antes que inventasse uma mentira qualquer, para não dizer , simplesmente: -- No Braz ! , ele o arrancou da minha cabeça e procurou a etiqueta que deveria identificar a nobre procedência daquele meu apêndice craniano. Não encontrando nada que demonstrasse ser de uma fábrica famosa, mo devolveu e saiu com cara desenganada e ar reprovativo. Fiquei matutando com meu boné aquela atitude brusca e deselegante, quando despertei para a profundidade do ato que tinha vivenciado. Certo que a sociedade de consumo havia criado as "marcas" justamente para poder vender produtos de igual qualidade, por preços totalmente díspares, única e exclusivamente por pertencerem àquilo que se convencionou chamar : "griffe" . O problema é que incorporamos esses hábitos na nossa convivência humana. Interessa-nos , pouco, as qualidades espirituais dos homens. Priorizamos o continente em detrimento do conteúdo e aí passamos a rotular as pessoas, igualzinho como o comerciante faz no supermercado ( muitas vezes até mesmo o preço colocamos). Fulano de tal é ótima pessoa porque é de família importante; Joaquim é burro porque é preto ; Ingrid é uma desavergonhada porque é homossexual; Gabriela é uma santa porque só vive rezando; Marcos não presta porque é comunista.... e por aí vai; vamos colocando rótulos superficiais e encaminhando essas mercadorias para o pútrido mercado negro das relações humanas. Lá serão elas colocadas nas prateleiras , para o consumo de todos, na razão direta dos superficiais valores que, com toda parcialidade possível, a classificamos . Não é certamente por mero acaso que a bíblia dos colunistas sociais, a constituição que rege as boas maneiras de se portar em sociedade, se chama exatamente de : ETIQUETA.
Essas vãs elucubrações em torno de um boné lembram-me, agora, da história de um ex-seminarista que aportou, subitamente, em Matozinho. O moço boa pinta, com vestimentas graves e discurso pausado, foi imediatamente tomado como padre. De início ainda tentou desfazer o mal entendido, mas aos poucos foi gostando da idéia e aí passou a exercer plenamente as funções sacerdotais que lhe tinham confiado. Rezava missa, casava , batizava, dava extrema-unções . Era queridíssimo na comunidade e cantava, saltitava em Show-missas que cada vez mais iam fazendo inflar a platéia da pacata cidade. A novidade, no entanto, chocou as beatas mais tradicionais que começaram a torcer o nariz , o que terminou por facilitar o desvendamento da farsa.
O novo pároco, não muito versado em teologia, passou a cometer alguns deslizes que,aos olhos dos cristãos comuns, hipnotizados pela música, pareciam coisa de somenos importância; mas para as beatas mais tradicionais se tornaram peças de um quebra-cabeças que foi aos poucos se materializando. O sacerdote ,freqüentemente, misturava a "Salve-Rainha" com a "Creio em Deus Pai" . Os sermões eram bastante liberais e abordava-se de cibernética à plantação de cebola. Numa das missas, ele simplesmente se esqueceu de proceder à Elevação e fez a Comunhão dos fiéis sem ter consagrado as hóstias previamente.
As beatas também já haviam desconfiado da quantidade de vinho ingerida pelo pastor em cada missa: Bebia na Liturgia, no Ofertório, na Leitura do Evangelho, na Homilia, no Sermão, até no "Ide em Paz...". A gota d'água , no entanto, ocorreu num dia de confissão quando um sessentão da Cidade, ajoelhado aos seus pés, sussurrou um pecado cabeludo: tinha uma amante há já alguns anos. O pastor , calmamente, interrogou se a esposa legítima se encontrava na Igreja naquele momento. O senhor respondeu que sim e mostrou sua cara-metade, naquele mesmo instante, curvando-se ante o vaso de água benta. Era uma mulher enorme, dessas de se pesar em arroba, mal feita como um saco cheio de cruz e com uma cara amassada como se estivesse encostada numa vidraça. O pastor olhou espantado aquele Trivelato truncado e foi taxativo:
--- Mande sua mulher aqui agora mesmo, que a penitência eu vou passar é para ela: cinco Rosários. Você tá absolvido, rapaz!!!
Quando as beatas tomaram conhecimento do ocorrido, foram direto ao bispo. Contactada a arquidiocese, em pouco a polícia estava no encalço do pseudoprofeta que obrou o único milagre de que se tem notícia: Escapou da noite para o dia, como se tivera pacto com o demo.
Restabeleceu-se a ordem religiosa em Matozinho, mas permaneceram alguns problemas aparentemente complexos. Mães ,cujos “anjos" tinham sido batizados, in extremis, pelo sacerdote de araque , choravam agora temendo estarem seus rebentos condenados ao limbo, ad eternum. Alguns casais unidos em cerimônia presidida pelo pastor fugitivo foram chamados para se submeterem novamente ao matrimônio. Alguns noivos , no entanto, já gozando das benesses do casamento, se negaram, terminantemente, dizendo que não iriam cometer o mesmo erro duas vezes. O pior, no entanto, aconteceu com as beatas denunciantes: viviam agora amedrontadas, temendo verem seus segredos terríveis de confessionário revelados pelo ex-pároco, em represália . Desde o dia da fuga rezavam sem parar, enquanto absortas fitavam a única peça que restara de lembrança do ex-santo reverendo, na sacristia :
-- Um Boné!


Do Livro : "Matozinho vai `a guerra"

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Rescaldo


Eudóxio nunca tinha sido chegado a muitas presepadas. Funcionário público, na Agência do INPS de Matozinho, levara a vida toda encaminhando benefícios e aposentadorias. Talvez a tentação lhe tenha batido quando pressentiu a proximidade da sua própria aposentadoria de barnabé. Entrado já nos cinqüenta, chegara naquela fase do cachorro hidrofóbico. Olhou para os cabelos brancos no espelho do quarto e viu que já não sobravam muitos cartuchos para carregar a velha socadeira meio enferrujada que carregava entre as pernas. Os filhos todos crescidos já estavam pras bandas de São Paulo. Voltavam periodicamente para visitá-los trazendo algumas quinquilharias da 24 de Março, roupas de frio compradas no Braz e cagando uma goma danada. A mulher, D. Marinalva, tornara-se uma matrona, beata, passava os dias mais na igreja do que em casa. A vida sexual dos dois de há muito havia arrefecido. Eudóxio percebera que era quase um crime transar com uma santa daquelas e, mais, levar para cama a mãe dos seus próprios filhos. Aquilo lhe cheirava a uma tara sexual quase que inimaginável. Metido numa saia justa dessas, não foi fácil cair em tentação e ser levado a espatifar o sétimo mandamento.
Conhecera Eufrasina casualmente, quando esta encaminhava, na repartição, um seguro desemprego do pai dela. Morena fogosa, com uns cabelos negros como cambuí caídos aos ombros, andar sinuoso de serpente e bunda de tanajura. Carregava nos lábios um sorriso na agulha e que disparava a todo momento, encantando que estivesse ao redor. A princípio se fez de inocente e distante, talvez porque achasse que era prenda demais para cair na sua rede. Mesmo porque ultimamente tudo o que vinha caindo dentro da sua fianga era caco de telha e morcego. Mas a moça se foi insinuando pouco a pouco para Eudóxio e ela era irressistível: destas de tirar solidéu de bispo e mitra de papa. Dia após dia, lá estava Eufrasina o procurando no intuito aparente de resolver a pendência previdenciária. Conversa puxa conversa, sorriso carreia sorriso até que o primeiro e furtivo beijo roubou Eudóxio por trás do balcão, num horário de almoço. Acesa a primeira chama, o incêndio tomou corpo e , em pouco, nem o Corpo de Bombeiros da capital teria condição de apagar e fazer o rescaldo. As carícias se foram tornando mais freqüentes, em horários cada vez mais furtivos. D. Marinalva nem percebeu as mudanças de horário de trabalho do marido, talvez porque ultimamente ele viesse muito mais delicado, condescendente e carinhoso. Eudóxio esperava apenas o momento de ir às vias de fato ou ir de fato às vias e já não suportava mais a espera da desejada lua-de-mel.
O momento propício não demorou a chegar. Próximo ao fim do ano, D. Marinalva avisou ao marido que viajaria no fim de semana para visitar os pais em Serrinha dos Nicodemos. Periodicamente fazia esta viagem e Eudóxio nunca ia: não se dava bem com o sogro e a sogra que sempre se opuseram ao seu casamento. Nosso barnabé quase não conseguiu conter a alegria que lhe assaltou de repente as entranhas. Tinha, por fim, o álibi perfeito. Tramou, então, levar Eufrasina, por fim, para a lua-de-mel . Programou toda a tramóia. Levaria a namorada, no sábado, para Bertioga. Soube que lá haviam inaugurado o primeiro Motel de toda a região. Ouvira alguns amigos comentarem a novidade. Aquilo se tornara uma verdadeira revolução nos costumes de Bertioga e periferia. Antes só se tinha o Moitel e neguinho pelado precisava se resolver no escuro com carrapicho, com cobra, formiga vermelha, urtiga e cansanção. Finalmente a modernidade chegava a Matozinho!
No sábado um Eudóxio trêmulo e ansioso pôs Eufrasina na velha fubica e partiu para Bertioga. Ela avisara em casa que ia dormir na casa de uma amiga. O percurso de poucos quilômetros pareceu estranhamente longo, os minutos não passavam. Logo na entrada de Bertioga, nosso projeto de noivo avistou uma casa grande e uma placa luminosa, com luzes em pisca-pisca onde se lia: “ Motel Nossa Senhora Aparecida”. Eudóxio teve um mal pressentimento. A ansiedade , no entanto, falou mais alto e ele pegou a chave na portaria e adentrou o estabelecimento. Observou, enquanto buscava o quarto 25, que as dependências da casa estavam superlotadas. Estacionou e entrou com Eufrasina num pequeno quarto, com uma luz vermelha no teto, uma cama redonda, uma quartinha do lado da mesa de cabeceira e um ventilador zoadento no teto. Enfim sós !
Começaram os jogos iniciais e quando se preparava para bater o centro e levar a partida pelos 90 minutos regulamentares, de preferência com goleada, ouviu fortes batidas na janela do quarto. Imaginou que fosse algum serviço especial da casa. Pediu tempo e entreabriu a porta. De repente, foi jogado ao chão por homens armados que anunciaram o assalto e mandaram todos sem roupa ir ao pátio central do motel. Ele e Eufrasina, faltando mão para cobrir todas as dependências, se viram, de repente, como Adão e Eva, expulsos do paraíso. No pátio já se aglomeravam mais de cinqüenta casais, todos peladinhos como nasceram. Depois de ter sido feito o rapa geral, por cinco bandidos encapuzados, todos tiveram que se dirigir à delegacia de Bertioga, ainda sem roupa, para fazer o devido Boletim de Ocorrência. Só aí é que Eudóxio , atarantado, começou a identificar os outros companheiros de infortúnio. Padre Sabino tentava esconder o coroinha; Sinderval Bandeira, o prefeito , em pelo, buscava esconder a mulher do presidente da câmara de vereadores; D. Irenilda, a beata mais irada de Bertioga, estava nuinha, junto da companheira : D. Zarilda, a delegada. A revelação maior, no entanto, estava para vir. No meio do strip-tease comunitário, Eudóxio conseguiu identificar, aquilo que seria a maior surpresa da festa: D. Marinalda, sua santa esposa, sem roupa, tendo ao lado o sacristão da catedral: “Pedim Boca de Fole”. Só depois soube que o sogro e a sogra já tinham falecido em Serrinha dos Nicodemos há mais de cinco anos. Diante de tanto fragrante delito, com o rastilho de pólvora de uma bomba de muitos megatons chiando nas suas mãos, o delegado Fifim Aribé não se conteve e suspirou :
---- Bem logo vi que sapecar nome da padroeira do Brasil neste tal de moté ia terminar dando um azar danado!

Crato, 04/12/08

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Inventário de Bens e de Sonhos

A quem pertencem, realmente, as coisas deste mundo? Permitam-me, caros ouvintes, esta pergunta algo filosófica, num sábado à tarde, dia e hora propensas mais à descontração, à rede e à preguiçosa. Mas, vamos lá, perdoem-me a esfinge desta interrogação, num final de semana : A quem , realmente, pertencem as coisas deste mundo? Os criados numa sociedade de viés socialista , não terão dificuldade em responder: Ao estado ! E , nós outros, afeitos mais ao capitalismo, nas suas mais disfarçadas formas, rapidamente concluiremos que as coisas deste mundo são de quem as adquire, ou as recebe como herança, roubo ou doação com diferenças pouco claras em todas estas formas de apropriação. Há, certamente, uma visão eminentemente utilitarista nestas duas respostas. O menino que anda na sua bicicleta, o rapaz que dirige o carro próprio, o homem que construiu sua casa podem até ser considerados proprietários reais destes bens; mas, é preciso admitir, caro ouvinte, existem posses que vão além do simples valor monetário, que ultrapassam a frieza do código de barras. Assim, o milionário que arrematou no leilão “Os girassóis” de Van Gogh, por uma fortuna, não é o dono do quadro, embora tenha a absoluta certeza disso. A obra de arte também já não pertence ao seu autor e nem a toda a humanidade como se possa pensar. Os reais donos de “Os girassóis” são todos aqueles que se sensibilizam diante da pintura e que, de alguma maneira, entendem que seu mundo interior mudou para melhor e que os olhos se desembaçaram para as belezas do mundo. As madames que ganharam colares de diamantes de amantes -- desculpem o trocadilho-- talvez até se achem donas definitivas das jóias. Em verdade a elas não pertencem. Simplesmente elas manterão os colares guardados a sete chaves, numa ansiedade incrível, sem as poder usar, temendo assalto. Nunca entenderão que as jóias são muito mais propriedade daqueles que, mesmo à distância, um dia se encantarão com o brilho eterno daquelas pérolas e se sentirão tocados mesmo sem nunca as conseguir tocar.
E as manhãs, as luas cheias, os crepúsculos e as auroras? Quem detém os seus passes ? Todos aqueles que os conseguem apreciar, que não deixaram as retinas se embaçarem definitivamente com a névoa cotidiana. O luar não me pertence se ao olhar para o céu só consigo enxergar o néon. Nem é do astronauta ou do astrônomo que o observa com um olhar tecnicista, do mesmo jeito que o anel de ouro não é propriedade privada do ourives. Tudo que nos toca e emociona pode ser arrolado como parte do nosso inventário de bens e de sonhos.
Esta semana, olhando as ruas e praças aqui do Crato, pus-me a imaginar se elas são um bem público, de todos os cidadãos da cidade de Frei Carlos. Claro que numa visão mais utilitarista todos que percorrem as avenidas e logradouros podem se gabar de proprietários. Muitas vezes, inclusive, justificando monetariamente : tudo isto que aí está, foi construído com o dinheiro dos nossos impostos! Todos têm lá uma nesguinha de tudo isto , se fôssemos proceder à partilha. O grosso da população desta cidade, no entanto, é detentora de tantos outros bens mais individuais e privados que sequer se dá conta desta outra posse bem mais coletiva, comunitária e de tão pouco valor de venda e de troca.
Há, no entanto, raríssimas figuras que têm a rua e as praças como sua fábrica, seu ofício e , muitas vezes, até sua casa. Mendigos, boêmios, “drome-sujos”, bêbados têm uma relação quase que incestuosa com os logradouros públicos. Para eles as avenidas não são vias de trânsito, mas de permanência. As marquises e bancos se transformam facilmente em teto e cama e os jardins se fazem de quintais e pomares . Eles , na verdade, são seus reais proprietários por usucapião.
No domingo último, um destes grandes latifundiários urbanos partiu na viagem derradeira. Uma das mais populares personalidades cratenses. Mais conhecido que muitos políticos e poderosos do Cariri. Zé Bedeu amealhou em vida o que a existência lhe legou. Dono de muitas ruas, milionário de muitas marquises, feudalista de inúmeras praças, banqueiro de tantos bancos, sócio de muitos bares. Hedonísticamente percorreu a travessia. Aqui veio para diversão de todas as horas e não para o suor de todos os dias. No mar de insensatez da vida, não nadou contra a corrente: abriu os braços , boiou e se deixou levar no torvelinho. Como suportar a amputação diária de ilusões e desejos, sem anestesia? Sabia-se pó, entendia que umedecido pelo álcool chegaria a lama e foi desta argamassa edificou pacientemente suas ruínas. Deixa uma imensa herança imaterial imune totalmente à sanha dos inventários e das partilhas. Todos aqueles que um dia se emocionarem com o barulho das fontes de pé-de-serra, com o orvalho que borrifa a bromélia, com a sanguínea aurora que vaza o ventre da noite podem se considerar seus herdeiros universais.

27/11/08

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Solstícios e Equinócios


O mundo se refizera, magicamente, com a chegada das primeiras águas. As árvores trajavam vestido novo. Os pássaros anunciavam aos quatro ventos a chegada da boa nova, num canto de anunciação. Os semblantes molhavam-se também do verde da esperança. O velho recolhido na concha da rede, súbito, ressuscitou com a natureza. Juntou um pouco do ar que lhe restava e sussurrou aos filhos, telegraficamente, aquelas que se prenunciavam suas últimas palavras:
--- Basta! ... parem os remédios...façam minha vontade...me levem para o Mocotó !
O menino, sorrateiramente, se escondia por entre as bananeiras, enquanto ouvia um bulício , uma algazarra para o lado do açude da fazenda. As folhas úmidas das últimas chuvas lhe encharcavam o corpo ternamente. Baleadeira a tiracoclo, umas duas rolhinhas no embornal, se foi serpenteando por entre as folhas e flores. O jasmineiro incensava o mundo com um perfume inconfundível. Finalmente, por trás de um cambuí, conseguiu observar a imagem que nunca mais lhe saiu da lembrança. Meninas púberes, com seios rijos e os primeiros pelos enegrecendo os delicados montinhos , saltitavam no meio das águas. O menino , embevecido, teve sua primeira revelação : descobriu que o prazer é líquido.
O homem contemplava a vida ao derredor com um ar desesperado. Aquilo que um dia tinha sido uma aquarela, hoje, tomara um tom gris, transformara-se em nanquim. Um único juazeiro, à beira do rio totalmente seco, teimava em manter o verdor passado. Só. Carcaças da criação, ossos reluzentes, tremulavam ao sol inclemente, decorando de forma irregular o chão da fazenda . Couros espichados em varas faziam-se bandeiras desfraldadas da morte. Recendia por todos poros do universo um distante ar de decomposição. Dissolvia-se a paisagem, fundiam-se faces esquálidas, como bonecos de neve expostos ao sol. Na sala da casa da fazenda um caixão de um azul celeste abrigava um anjinho no seu último leito. Duas velas procuravam atônitas o acompanhamento de algumas lágrimas que escorriam languidamente de olhos cansados de dissolução. O homem mal percebeu o contraste. Em meio à paisagem áspera e ressequida, a vida refazia-se amorfa e gelatinosa.
As árvores se despiam das suas folhas e lançavam suas vestes por sobre os caminhos , atapetando as veredas e trilhas com uma colcha de retalhos multicolorida. O sensual strip-tease arrebatou o rapazinho. As visíveis mudanças do tempo se antenavam com suas profundas transformações interiores. A natureza estendia seu tapete que como que lhe abrindo estradas inúmeras e possíveis a seguir, a trilhar. Teria, como a Chapeuzinho Vermelho, que escolher entre o caminho da floresta , o do rio ou tantos, tantos outros igualmente inseguros e arriscados e sempre com o encontro inevitável com o lobo, no final. Trazia ainda na boca o gosto do beijo da namorada e nos dedos a memória olfativa do passeio por relevos e depressões úmidas, aquele cheiro tesudo que jamais evaporaria de suas mãos, emprenhando sua vida de vontade e cio. Olhou ,detalhadamente, o manto colorido das folhas e seguiu o canto da sereia. A existência, mais que nuca lhe pareceu firme, sólida, como o falus que carregava incomodamente entre as pernas.
O velho fitou delicadamente a promessa de paisagem verde que se estendia, a não mais se ver, da varanda da casa do Mocotó. Repolteado numa preguiçosa, contemplou o cajueiro fartamente florido e comentou a abundância da safra vindoura. O bem-te-vi lhe entoou um canto familiar de alvíssaras. O pequizeiro já pendia com os frutos pequeninos e a boca se encheu de água na perspectiva do baião-de-dois futuro. A chuvinha fina da noite umedecendo o esterco no curral reacendeu no mundo aquele cheiro de campo. Os bezerros amarrados aos pés das vacas, na ordenha , preenchiam a fazenda com seus berros pidões. Num esgar de felicidade, os olhos do velho enevoaram-se .Aos poucos, ele foi percebendo o caráter volátil e gasoso da vida que ciclou, como toda natureza, entre solstícios e equinócios.

J. Flávio Vieira

domingo, 16 de novembro de 2008

Epifanias


O segredo da vida está na arte."
Oscar Wilde


O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transvê o mundo.”
Manoel de Barros


A verdade do mundo, amigos, não está nas mãos da religião nem da ciência, mas nos olhos dos poetas. Só eles conseguem perceber o Universo em todas suas dimensões. Só eles transvêem o mundo, como diz o Manoel de Barros. Aos artistas foi dado o toque divino de continuar a obra da criação. Depois da expulsão do paraíso, a eles se transferiu a árdua continuidade do Gênesis, enquanto um Deus, desapontado com a raça humana, se recolhia aos aposentos com suas espadas flamejantes. A arte, assim, permanece como a única vacina que nos imuniza contra a destruição definitiva. Sempre acreditei que todo criminoso é, na verdade, um artista frustrado e a recíproca ( quem sabe?) talvez também seja verdadeira. Nero teria incendiado Roma, pela incapacidade de incendiá-la com sua criatividade. Impossibilitado de criar , o homem opta, revoltado, pelo apocalipse; incapaz de fazer Arte, resolve fazer artes...E o desabrochar da arte, amigos, tantas vezes, carece de epifanias. O artista, frequentemente, precisa ser tocado pelas asas do anjo, necessita do estalo do Padre Vieira. Um poema, uma música, um quadro, u m romance... e , de repente, o tsunami da arte sorve almas e mais almas nas suas ondas, jogando-as em praias paradisíacas e portos inseguros. Só se consegue observar um mundo melhor, mais belo e mais justo, usando o filtro colorido da Arte.Faz-se mister reverenciar quem tem feito do engenho de muitas epifanias a sua vocação. A mais importante Semana do Ano no Cariri transcorre nestes dias. Que diabos representam hoje a EXPÔ/Crato, o Juaforró, a Festa do Pau da Bandeira da Barbalha, além de meros eventos de entretenimento, dirigidos pelas mais cabeludas regras de Mercado ? Pois é, amigos, esta semana temos a Mostra Cariri das Artes, já na sua décima edição. Aqui se apresentaram os mais importantes grupos teatrais do país e muitos grupos importantes do exterior. Música, artes plásticas, literatura, cultura popular fervilharam num caldeirão que bem representa a riqueza da cultura brasileira que tem como ponto culminante a diversidade. Devemos tudo isto à iniciativa do SESC e da Fecomércio na realização do mega-evento: atrações de 17 estados, 5 países envolvidos,mais de 150 atrações culturais entre peças teatrais, música e oficinas,Lançamentos de livros,Reisados e bandas cabaçais,Cordelistas, Ritos de Passagem, são mais de 1.500 artistas envolvidos diretamente. Quando o poder público, historicamente, no país, sempre se mostrou vesgo e omisso na sua Política Cultural, a iniciativa da Mostra, em nossa região, é simplesmente fundamental.O impacto da Mostra, nestes dez anos, é estarrecedora. Conseguimos formar uma platéia crítica, educada e presente. Todos os espetáculos estavam superlotados e ingressos se disputavam com uma voracidade inimaginável em tempos passados. Os artistas começaram a desenvolver uma autocrítica refinada e a primar pela perfeição. Inúmeros importantes atores e diretores se sentiram tocados e começamos a desenvolver as artes cênicas na região como não se via desde os tempos imemoriais dos “Romeiros do Porvir”. A Cultura Popular passou a ser valorizada e já se percebe que começa a fazer parte do cotidiano das pessoas ( de onde nunca deveria ter sido afastada). Criou-se um visível intercâmbio entre vários artistas, linguagens e saberes, com engrandecimento de todos.Talvez, no entanto, o mais importante de tudo tenha sido a contastação de que é possível, sim, despertar na população o gosto pela boa arte, longe das armadilhas sedutoras do mercado. Ninguém consegue se apaixonar por aqui que não conhece e o SESC tem que ser reverenciado como a alcoviteira deste encontro. Conseguiu aproximar platéia, artistas e corações. A ele devemos esta enxurrada de epifanias, este vendaval de paixões pela Arte e pela vida.


J. Flávio Vieira

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Uma Rua chamada Saudade


“Marreco” contempla a rua modernosa com um mal disfarçado ar da mais tenra saudade. Ainda menino, no início dos dourados anos 50, açoitado pela seca, chegado do interior, encontrou na pequena viela seu mundo. Era apenas um pequeno quarteirão, imprensado entre a pomposa rua Mons Esmeraldo e a Almirante Alexandrino. Parecia até que uma autoridade eclesiástica e outra militar tentavam isolar a vielazinha do resto da cidade de Frei Carlos. Eram apenas 150 metros que se faziam, palmo a palmo, um templo aos deuses Baco e Dionísio. Cidade em plena emergência comercial e cultural, a partir da década de 40 , o início da Nélson Alencar começava numa fazendola de Pedro Felício, com currais para pecuária, ali nas proximidades da hoje Diretoria Estadual de Educação. Este pequeno trecho, tão grávido da história sentimental cratense, recebeu o batismo de todos seus súditos : Rua da Saudade! Pois a longa avenida dedicava seu primeiro quarteirão à boêmia, se estendendo até o Cemitério Municipal na outra extremidade. Vida e morte colocadas caprichosamente numa mesma reta, veredas de uma mesma travessia.
“Marreco” lembra ainda hoje como a vida palpitava naqueles velhos tempos. Quando a cidadezinha fechava suas portas e janelas à noite, a ruazinha travestia-se de Cinderela. Homens diurnos e sisudos esqueciam os livros de caixa e os balcões e se esbaldavam no álcool, na dança, nos prazeres da carne. Não carregavam consigo qualquer peso na consciência, o casamento mostrava-se, a maior parte das vezes, uma instituição burocrática, uma linha de montagem de filhos. O prazer era uma mercadoria exposta à venda nas prateleiras da ruazinha, igual às quinquilharias que negociavam durante o dia nos empórios e magazines. Periodicamente, o estoque de meninas se renovava e havia ampla divulgação no comércio local. Vindas de Fortaleza, Recife e da Bahia, traziam consigo o bouquet infalível da juventude. Ali também as moças perdidas, enxotadas de casa como animais, terminavam por se encontrar, por se estabelecerem na mais antiga de todas as profissões. Na esquina da Mons Esmeraldo, a rua começava, apoteoticamente, com o “Bar Tamandaré” de Geraldo Saldanha e no seu sobrado a mais famosa boate do Cariri, a de “Glorinha”. A partir daí as boates apinhavam todo quarteirão com nomes mais que famosos: a de Luiz Bitu, a de Antero, , a de Maria Augusta & Zé Alves, a de Dionísio Carcundinha, a de Expedito Sá, a de Pedro do Lameiro, a de Maria Alice, uma das mais formosas mulheres que já pisaram o solo caririense. Sem falar na de Odilon, pai de Expedito Magro, este que depois assumiu o nome artístico de Célio Silva e acabou se tornando um dos nossos maiores seresteiros. A Saudade tinha divertimento para tudo quanto era orçamento: os abastados procuravam as casas mais sofisticadas e os estudantes e o Zé povinho se aboletavam na chamada “Farinhada”. Bares especializavam-se ainda na jogatina e a mãe do grande Zé dos Prazeres , um dos nossos músicos mais famosos, vendia, pela manhã, na calçada, uma cabeça de porco com macaxeira para recobrar as forças desgastadas nas libações noturnas.
O tempo escoou-se no incessante tic-tac do relógio da Praça Francisco Sá. O Crato mudou, os costumes metamoforsearam-se. A cidade cresceu e, de repente, a ruazinha se tornou central . O que se fazia às escondidas começou a ter muitas testemunhas e, a cidade, terminou por engolir a ruazinha. Por outro lado a liberdade sexual das novas gerações tornou obsoleta a antiga atividade: o Bordel foi substituído pelo Motel.
“Marreco” conclui que no início dos anos 60, a juíza de Crato Auri Moura Costa fez um ultimato : em 24 horas a rua deveria ser evacuada. Claro que a exeqüibilidade de uma medida tão radical e abrupta seria muito difícil. A mais antiga das profissões tinha uma bagagem guerreira invejável. A partir daí, no entanto, a Rua da Saudade foi paulatinamente se esvaziando. As boates se foram transferindo para outra periferia, agora acima da Estação Ferroviária, que se passou a chamar de “Gesso”. Continuaram, no entanto, alguns estabelecimentos dedicados ao mesmo mister, até a semana passada, quando, definitivamente fechou a última boate da ruazinha, agora , adaptada aos novos tempos, dedicando-se, mais à venda de drogas baratas. Tomada por pequenas lojas comerciais a viela, no entanto, ainda mantém um certo ar retrô , um clima perceptivelmente urderground.
Havia um certo estigma premonitório no nome da ruazinha, lê-se nos olhos baços de “Marreco”. Templo de boêmios , de bêbados, de putas e poetas, conheceu mais que ninguém a alma desta cidade. Conviveu com suas pulsões mais profundas, com aquela argamassa de ambições, desejos, frustrações, desigualdades que cimenta todas nossas relações humanas. Assistiu a toda uma geração de cratenses desnudos de todos véus das convenções sociais. Fragilidades, fraquezas, perversões, defeitos expostos como uma carniça fervilhante. A extremidade que celebrava a vida esmaeceu pouco a pouco e a outra que apontava para a morte começou a ficar cada dia mais brilhante. Hoje, mais do que nunca, ela merece o nome de Rua da Saudade.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Finados...


No final não restará muito. Na melhor das hipóteses, algumas lágrimas doridas , um bouquet flores – arrancadas, violentamente, como um tributo da morte à morte -- , o brilho efêmero de uma vela, a névoa esparsa de alguma saudade. Passados os anos, nem mesmo isso: caminharemos , todos, fatidicamente, para aquele esquecimento total , do qual não restará sequer o nome, conforme vaticinou Manuel Bandeira. Simples como a água que escorre do sopé da serra : quando todas testemunhas da geração obedecerem ao chamado inexorável do tempo, onde ficará registrada a imensa complexidade daquilo que um dia fomos ? Eventualmente, como uma garrafa com a mensagem lançada às ondas, poderemos vir à tona, na posteridade, mas aí já não será o homem com todas seus nuances que ressuscitará, mas o mito com tintas próprias, puxadas ora para o colorido impressionista , ora para o pastel.Escrevemos , sempre, na superfície da água, nossa passagem pelo mundo.Mal rabiscamos o adjetivo, já se tem esmaecido o substantivo que , anteriormente, teimamos em esculpir na história do planeta. Sábios, poetas, místicos, deuses, reis e plebeus esperam que o apagador do tempo limpe o quadro negro onde, um dia ,foram traçadas suas histórias.
Ademais, o que mais fazemos na existência é sepultar nossos mortos.Com a adolescência enterramos, definitivamente, os dourados olhos da infância. Na velhice inumamos os bons dias da juventude, aqueles em que , no dizer do nosso Pe Antonio Tomaz: “As esperanças vão conosco à frente/ E vão ficando atrás os desenganos”. A vida toda, vamos abrindo covas e sepultando sonhos, desejos, planos, amores, sentimentos, aspirações. Aos poucos, também, vamos levando ao campo santo entes queridos, amigos, familiares.. A cada sepultamento , se vão esfacelando os delicados fios que nos unem à vida.Morremos um pouco a cada velório a que assistimos. Se se reparar bem, perceberemos que viver é tão-sòmente acompanhar, pacientemente, o nosso próprio funeral.A única diferença marcante é que, um belo dia, não retornaremos das exéquias e as palavras serão substituídas pelo silêncio, bálsamo de todos os males.
As velas, assim, não conseguirão iluminar a treva definitiva que antecede ao dia do caos. As flores não necessitam morrer e murchar junto conosco, já que sua morte não nos restituirá a vida.As lágrimas aliviarão um pouco a angústia dos que ficaram, mas não têm o poder de mudar o imutável e carregarão consigo a mesma fugacidade que banha e umedece todos os elementos vitais. As preces dos crentes apenas irão transferir o impacto da perda para a fronteira onde a esperança teima em substituir todas as evidências racionais. Esta é a tragicomédia da vida: nada transmutará o curso insondável das coisas. O esquecimento total será a verdade última e definitiva.


J. Flávio Vieira

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Algemas para rico só de sex shop


Há uma frase típica da filosofia popular brasileira : “Pobre só vai para frente, quando a polícia vem atrás”. Ela engloba , numa só linha, a nossa capacidade única de rir da própria desgraça e, por outro lado, atiramos, certeiramente, num dos maiores preconceitos : a atividade policial. Existe alguma coisa mais odiada pela população humilde brasileira do que a polícia ? Talvez porque o povaréu sempre esteve, em toda história, como na epopéia do cangaço, imprensada entre os macacos e os bandidos e,confesso, muitas vezes é quase que impossível descobrir qual o lado pior. No período colonial e no Império as manifestações libertárias populares foram massacradas, militarmente, sem pena. Já na República, o holocausto do Arraial de Canudos e o bombardeio do Caldeirão marcaram indelevelmente ,na alma do povo, a capacidade sanguinária dos nossos militares. A Revolução de 64, por outro lado, com a tortura e o extermínio de proletários e estudantes aos milhares, fortaleceu na alma brasileira, sempre afeita à negociação e ao diálogo, uma ojeriza já centenária contra a autoridade policial. Hoje , quando o foco da batalha transferiu-se para os morros e favelas, lá está novamente o Zé Povinho espremido entre traficantes, milicianos e policiais. Se tem que escolher, não é difícil imaginar para onde penderá o fiel da balança. Keith Richards , guitarrista do “Rolling Stones”, disse uma frase que parece orientar para a universalização deste ódio bélico: “ Nunca tive problemas com as drogas, só com a polícia”.
Recentemente, esta antipatia pareceu bastante visível no caso do seqüestro da estudante Eloá. Indiscutíveis os erros cometidos pela polícia, agora perfeitamente apontados pelos mestres das obras feitas, depois do desfecho trágico do acontecimento. Qualquer que tivesse sido o resultado, no entanto, certamente o GATE teria sido crucificado. Pagos todos com salário de fome, advindos da mesma fração pobre da população brasileira, morando todos nos mesmos rincões de miséria dos demais, trabalhando sobre pressão de toda natureza, a sociedade exige deles a precisão de um MOSSAD. Se o seqüestrador tivesse sido eliminado por um atirador de elite, seria a polícia imputada de violenta e assassina, pois o Lindberg, diriam todos, era uma doçura de pessoa, apenas nervosinho e apaixonado, mas sem antecedentes criminais. Quem lucrou com tudo aquilo ? A televisão brasileira, que ávida de sangue escorrendo pelas calçadas, empanturrou-se de pontos do IBOPE a custa da desgraça de muitos e os brasileiros que colados na telinha assistiam a tudo com um ar de indisfarçável sadismo. Para a mídia, o desfecho não podia ter sido melhor !
Nos últimos anos, a Polícia Federal tem desencadeado um trabalho hercúleo no sentido de combater uma verdadeira indústria de quadrilheiros, espalhados por todo o país, cuja especialidade básica é a de fazer desvio deslavado do dinheiro público. Só este ano já se contabilizam 181 operações, com 1949 presos, destes 290 eram servidores públicos. O grande problema criado é que , de repente, pessoas de elevado nível social começaram a ser presos, como juízes, políticos, secretários de estado, ex-governadores, ministros, prefeitos, advogados, políticos influentes. Num país de castas como o nosso, isto se tornou uma verdadeira blasfêmia. Mesmo tendo direito a celas especiais e confortáveis, embora a Constituição pregue a igualdade de todos perante a lei. Onde estamos, meu Deus ? Não se respeita mais patente? Esqueceram que cadeia foi construída apenas para negro, pobre e analfabeto ? Ainda bem que a justiça é rápida, no Brasil, da noite para o dia são concedidos Habeas corpus, alguns inclusive pela madrugada e, finalmente, as injustiças terríveis são corrigidas.
Em agosto último, o Supremo Tribunal Federal disciplinou o uso das algemas que, no seu entender, estavam sendo utilizadas de forma abusiva, editando a chamada Súmula Vinculante 11: "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado".
A Lei no Brasil tem lá suas preferências. Todo o dia, nossos programas policiais, em tudo quanto é cafundó deste país, ridicularizam os presos comuns, os ladrões de galinha, expondo-os, queimando suas imagens, antes mesmo de qualquer investigação mais séria e julgamento. São presos e transportados como animais para o abate e, muitas vezes, é justamente para este fim. Acondicionam-lhes em latas de sardinha , em celas que os faria invejar Auschuwitz. Algemas para eles, tornaram-se meros detalhes, talvez uma espécie de adereço. No Brasil só é considerado roubo a apropriação do patrimônio particular e privado, roubar dinheiro público, independente do montante, é apenas uma pequeníssima contravenção.
O preço dessas deformidades será cobrado depois na guerra civil da ruas, onde o povaréu e a polícia são apenas meros atores de um enredo que não foi escrito nem dirigido por eles.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Peles

O Curtume Aimoré tornara-se um dos mais importantes de todo estado. Fincado na capital espalhara, pouco a pouco, representantes comerciais por todo o interior, com o fito de comprarem peles que, após o processo inicial de salga , eram enviados à matriz para a continuação do beneficiamento dos couros: remolho, depilação, caleiro, desencalagem, acidificação e curtimento. Zenildo Catonho especializara-se neste ramo e, periodicamente, cobria toda a região de Matozinho e adjacências no intuito de classificar couros e comprá-los para o Curtume Aimoré. Sua chegada era esperada com alguma ansiedade na Vila. Primeiro ele trazia consigo a esperança de alguma renda suplementar para a população rural, máxime em época de seca, quando a mortandade de bichos mostrava-se sempre assustadora e couro esticado por tudo quanto é lado, fazia-se quase uma bandeira deste sertãozão de meu Deus. Depois, Catonho se fora tornando uma figura bastante querida na cidade por conta de um outro lado seu: o da boêmia. Trabalhava no seu mister todo o dia, mas a noite dedicava caprichosamente à rua do Caneco Amassado onde examinava cuidadosamente outras peles bem mais cheirosas e macias e, também, perfeitamente negociáveis. Profissionalmente, no entanto, sempre se apresentava extremamente criterioso e classificava os couros com um rigor impressionante. A Aimoré o tinha na mais alta conta e, ao longo dos anos, se foi transformando num funcionário padrão.
Semana passada, Zenildo chegou em Matozinho e montou, como sempre, o escritório numa das dependências da Botica de Janjão Cataplasma. Para lá peregrinaram muitos matutos com couros para serem classificados e vendidos. Zé Capivara , uma das línguas mais afiadas de Matozinho, fazia a limpa de um pequeno roçado no sopé da Serra da Jurumenha quando viu Saturnino Cafimfim todo fiota, passando na estrada com um couro enrolado, embaixo do braço. Não se conteve:
--- Ei Cafifim, pra onde ta se botando , homem de Deus ?
--- To indo pra Matozinho, vender este courinho de um veado que matei mês retrasado... A coisa ta preta, uma seca danada... O couro tá inteirinho e acho que dá primeira...
Tardizinha, Capivara deu com Cafimfim fazendo o caminho de volta... apenas menos entusiasmado do que na ida, com um ar de Sá-Marica-Comeram-meu-milho.
--- E aí, Cafimfim, negociou o couro ?
--- Vendi, vendi, só que o rapa de sola do Zenildo classificou o bicho como terceira, só por causa de uns furinhos de nada de chumbo de soca-soca... Atrás de pobre corre uma onça, não apurei quase nada...
Enquanto Cafimfim desaparecia , cabisbaixo, na curva extrema da estrada, Zé Capivara murmurou entre dentes:
--- Ora, se nem o couro desse povim de Matozinho dá primeira, quanto mais couro de viado...
À noite , Zenildo estava estabelecido no Cabaré de Maria Justa, mais alegre e solto que pinto em monturo. Aquele dia , historicamente, era muito especial: aniversário da mais querida e reverenciada cafetina de Matozinho. Festa para varar a noite e furar as tripas da madrugada. Lá já estava, a postos , a orquestra sinfônica de Matozinho: o pé-de-bode de Geracino pandeiro de Tiê e do zabumba de Tiziu. A casa se encontrava completamente repleta. D. Maria Justa , radiante, envergava um longo cor de jerimum, cheio de penduricalhos por tudo quanto era relevo. A maquiagem, carregadíssima , faria inveja ao Carequinha. As meninas , espalhadas pelo salão, com seus melhores e mais farfalhantes vestidos, sorriam sorrisos menos artificiais do que os do dia-a-dia. A dança rolava solta no salão principal, com a liberalidade e a soltura imprescindíveis ao roça-roça de corpos. Zenildo, um dançarino do melhor jaez, sabia bem a regra geral: todo bom dançarino aprendeu sua arte no cabaré.
No melhor da festa, por volta de uma hora da manhã, todos mais melados que macacão de mecânico, Feitozinha do Correio entra na Boate à procura de Zenildo. Encontra-o descansando em uma mesa, entre uma e outra dança, com Das Virgens acomodada, sensualmente, no seu colo. A entrada de Feitozinha , àquela hora, jogou uma ducha de água fria na fervura do ambiente. Todos pensaram no pior, principalmente quando viram nosso carteiro entregar um telegrama, nas mãos de Catonho, chegado há pouco e lavrado em código Morse. A orquestra parou, os bêbados fizeram um minuto de silêncio , enquanto Zenildo desfolhava o telegrama com ar algo preocupado. Conteve-se ao ler as palavras encaminhadas por sua mulher:

“ Mamãe teve um colapso PT Morreu hoje PT
Abigail”

De repente, nosso curtumista fitou a todos e com um sorriso nos lábios, e concluiu :
--- Não é nada não, pessoal, só cotação de couro de bode ! Toca a festa Geracino !
J. Flávio Vieira

domingo, 19 de outubro de 2008

Os Ombros do Gigante


Desde que o físico de El-Rey, mestre Johannes Emenelaus ,embarcado nas caravelas de Cabral, pisou as terras brasileiras em 27/04/1500, o país passou a ter uma medicina minimamente científica. Os primeiros séculos na colonização do Brasil foram marcados, porém, pela visível ausência de profissionais de Medicina no nosso território. Por aqui os tratamentos se atinham basicamente a pajelanças e rituais afro, embora Brás Cubas houvesse fundado o primeiro Hospital brasileiro – A Santa Casa de Santos -- ainda em 1543. Até que os holandeses chegaram a Pernambuco no início do Século XVII, trazendo consigo toda uma colônia judia, fugida da Inquisição Européia, entre eles vários médicos judeus. Pena que tenha durado apenas 24 anos o sonho holandês em terras brasileiras, em 1654 partiram, deixando, no entanto, marcas indeléveis da sua presença em Pindorama. O vácuo da Medicina no Brasil permaneceu por mais de um século e meio ainda. Em 1789, segundo Salles, só existiam quatro médicos no Rio de Janeiro e eram raríssimos em outras paragens brasileiras.A verdadeira história da Medicina brasileira começou , assim, com a chegada da família real , no início do Século XIX, quando em de 1808, há exatos 200 anos, D. João VI criou , no dia 18 de fevereiro, a Escola de Cirurgia da Bahia que a partir de 1813 começou a ser chamada de Faculdade de Medicina. Esta benemérita instituição, durante estes dois séculos, formou mais de 15.000 médicos, disseminando a arte de curar por todos os recantos deste país continental. Tão seminal tornou-se sua influência que a maior parte dos profissionais caririenses ,até meados do Século XX, trouxeram sua arte e seu aprendizado da tradicional Faculdade de Medicina da Bahia. Na ausência de médicos fixados na região, heroicamente aqui atenderam alguns dos nossos mais famosos boticários : Coronel Secundo, Coronel Benedito Garrido, José Alves de Figueiredo (Zuza da Botica), Antonio Fernandes Telles e Teófilo Siqueira. 1889 marca uma data histórica na Medicina pátria, a formatura da segunda médica brasileira e primeira do Ceará: a cratense Dra. Amélia Bénebien Perouse. Desde este marco histórico, um sem número de médicos caririenses atravessaram os umbrais da UFBA : Dr. Irineu Nogueira Pinheiro ( 1910); Dr. Miguel Limaverde(1913); Dr. Joaquim Fernandes Teles ( 1916); Dr. Elísio Figueiredo ( 1916); Dr. Otacílio Macedo ( 1917); Dr. Joaquim Pinheiro Filho ( 1918). Na década de 1920 formaram-se ainda : Dra. Josefina Peixoto e Dr. Antenor Gomes de Matos. A década de 1930 foi pródiga trazendo ao Crato os Drs. Antonio Macário de Brito, o paraibano Nélson Carrera e o Dr. Dalmir Peixoto, formado em 1937 e ainda hoje lúcido e lépido com mais de 70 anos de profissão médica. Nesta década, ainda sob inspiração do nosso segundo Bispo D. Francisco Pires, inaugurou-se o primeiro Hospital do sul cearense , em 1936 : o Hospital São Francisco de Assis. No início dos anos 40 , aqui aportou o maior mito da medicina caririense, o pernambucano Dr. Antonio José Gesteira, o nosso primeiro grande cirurgião, que este ano comemora o centenário de nascimento.O que une e aproxima tantas gerações de médicos ? Hoje, diante do avanço enebriante da Medicina nos últimos cinqüenta anos, somos tentados a pensar na forma precária com que estes patriarcas da medicina do Cariri tratavam seus pacientes. Tudo parece velho, embolorado e obsoleto. Mas amigos, todos eles usaram as armas mais modernas que tinham às mãos na sua época para lenir as dores, minorar o sofrimento, salvar vidas. As futuras gerações pensarão isto mesmo dos atuais profissionais. É preciso lembrar que nada existe de novo na face da terra e o moderno apenas dá uma nova demão de tinta no conhecimento acumulado por muitas e muitas gerações. Isacc Newton dizia que se vira mais longe foi porque simplesmente subiu em ombros de gigantes.Neste Dia do Médico é preciso pois reverenciar todas as inteligências que nos antecederam e que deram sua vida e seu sangue para melhorar a qualidade de vida de tantos. Tantos que anonimamente se debruçaram sobre leitos paupérrimos , lutando desesperadamente contra a dor e contra a morte com as parcas armas que tinham às mãos. Quero abraçar cada um destes sacerdotes no ano em que se comemora o duplo centenário da Faculdade de Medicina da Bahia e os cem anos do nosso médico mais mítico: o Dr. Antonio José Gesteira.


J. Flávio Vieira

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

MACHADO E O CRASH DA BOLSA DE VALORES DE MATOZINHO


Há exatos cem anos, neste 29 de setembro, o Brasil perdia seu mais importante escritor: Joaquim Maria Machado de Assis, aos sessenta e nove anos . Machado tornou-se uma lenda, ficcionista de primeira linha, hoje é reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes homens de letras da história da humanidade. Nascido pobre, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, mulato, gago e epiléptico, nosso Joaquim Maria fez-se um claro exemplo de superação de adversidades. Seu estilo é único, sua temática original, seja nos contos fabulosos, nas crônicas, na poesia, no teatro e nos oito romances que publicou. Monteiro Lobato o soerguia ao patamar de santo e eu, um pobre escrivinhador de garatujas mal-arrumadas, no interior do Nordeste, não consigo, ainda hoje, escrever uma linha, sem imaginar a jóia lapidada que seria se o mestre Machado a produzisse. Nenhum literato me influenciou tanto como o “Bruxo do Cosme Velho” embora reconheça que seus escritos são totalmente contra-indicados para quem se imagina um dia escritor. Dá uma vontade danada de abandonar tudo, por pura e clara humilhação, tem-se a insofismável certeza que jamais se chegará no rastro de um artista daquele porte. Os livros de Machado emprenharam toda minha juventude, li-os e os reli muitas e muitas vezes. Agora, no centenário da sua morte, fitei novamente a grande coleção de livros verdes da sua obra completa, com aqueles olhos dourados da minha infância. Pensei em homenageá-lo, em meio a uma centena de festividades que merecidamente se desencadeiam em todo país. Faltava , talvez, um ribombar de fogos em Matozinho. Aturdindo, no entanto, com as preocupações eleitorais, o prefeito Sindé Bandeira sequer teve tempo de se deter nestas comemorações. Vai para o nosso Machado, endereçada à mais portentosa nuvem celeste, esta história bem ao seu gosto, de como aconteceu recentemente o Crash da Bolsa de Valores de Matozinho, igualzinho ao que acabou explodindo com os gringos nas estranjas.
Zezim Jurubeba , há uns três anos, resolveu se estabelecer em Matozinho no ramo do entretenimento. Inaugurou uma espécie de Bar-Boate na rua do Caneco Amassado, naquele lugar onde antigamente não era difícil encontrara as mulheres fáceis. Estabelecimento novo, no intuito de se firmar no mercado mais rapidamente, Zezim começou a abrir uma linha de crédito, aceitando dependuras várias. O fiado se tornou quase que um instituição no Bar-Boate Jurubeba. Com a intenção de livrar-se um pouco dos atrasos quase que inevitáveis, no pagamento das dívidas que se iam acumulando, Zezim aumentou consideravelmente o preço das bebidas e dos serviços de alcova prestados. Vendia fiado, mas vendia caro, se isso é uma espécie de consolo. Passados uns dois meses, já tinha Zezim uma coleção impressionante de vales de tudo quanto era bêbado e boêmio de Matozinho. Com parco capital de giro, Jurubeba começou a se aperrear. Resolveu, então, procurar o Banco da Cidade : o agiota de carteirinha Liquim Zapragata que inclusive gostava de freqüentar a Boate, em dias que a mulher se botava para as reuniões na igreja. Zezim lhe expôs suas dificuldades de liquidez e Zapragata concordou em receber todos os vales de Jurubeba, com uns 30% de desconto. De posse do dinheiro novo, o proprietário pagou algumas dívidas pendentes e inclusive ampliou as dependências da Boate, fazendo um puxado. Liquim, bem entrosado no comércio da redondeza, começou a negociar os vales com outros agiotas de Matozinho e cidades vizinhas, pagando muitas vezes dívidas com as dependuras . Estes por sua vez passaram, também, a pagar fornecedores da capital com os vales recebidos de Liquim e que diziam ser da maior confiança. Passados os dois meses de prazo do recebimento, aconteceu o previsto. Os vales cobrados dos bêbados e boêmios de Matozinho simplesmente não tinham lastro, um bando de liso não tinha como pagar e a corrente toda se partiu. Jurubeba informou que havia negociado os vales com Liquim e não tinha nada com isso. Liquim, por sua vez, explicou que o problema não era dele, já que havia passado para frente, inclusive perdendo dinheiro e que o risco era de quem recebeu. Os fornecedores pressionaram os estabelecimentos, ameaçando receber as mercadorias de volta, só que foram informados que elas já tinham sido prontamente vendidas. Procurados os bêbados de Matozinho disseram reconhecer os vales como tendo sido emitidos por eles, mas que não tinham como pagar, pois andavam mais lisos que muçum ensaboado. A confusão se alastrou por toda região, tem meio mundo de gente na falência e , ontem mesmo, o prefeito Sindé Bandeira se reuniu com a Câmara para ver se arranjam algum dinheiro da prefeitura para tapar o buraco negro aberto a partir da Boate Jurubeba.
Talvez, por isso mesmo, eivado de preocupações com a macro-economia, Matozinho não tenha ainda pensado em homenagear aquele velho de picinês que escrevia igualzinho a Pedro Pito a maior cordelista da cidade. Sindé Bandeira pensa em encomendar uma estátua de barro a D. Ciça com o velho Machado e Pedro Pito juntos e embaixo rabiscado :
“Essa é a gulora que assobe, tal e quá balão, em noite de São João”.

J. Flávio Vieira

domingo, 28 de setembro de 2008

Quaje me lasco em banda


Pois é , amigos, casa de cozinheiro, panela de barro. “O automóve na ladeira se quebrou/ o zabumba se furou/ mas o Gonzaga não morreu”. Cá estou eu aqui vivinho da silva e ressuscitei no sétimo dia. Para o gáudio de tantos amigos e familiares e para o torcimento de rabo de uns pouquíssimos desafetos. O susto , ao menos, teve lá suas vantagens, tive que procurar seguir os conselhos que eu mesmo dava aos outros nestes mais de trinta anos de profissão. Falava , falava e nem percebia que nada tinha de imortal, sou feito da mesma substância perecível de todos e ficava por aí todo fiota talvez confiando que panela de barro não cai de girau: cai sim, senhor e é caco para tudo quanto é de lado. Pois bem, juntamos os estilhaços, colamos o que sobrou com goma arábica e aparentemente está tudo bem. Um furo aqui, um marejo ali, mas ainda dá para cozinhar um anguzinho esperto. Sim, tem lá outra vantagem nisso tudo, nunca pensei que fosse tão querido pelo povo da minha terra. O telefone não parou na minha casa e nas do meus amigos e familiares, soube de roda de orações, de promessas com quase toda a corte celestial e um incréu do meu quilate jamais poderia imaginar que toda essa corrente positiva teria tanto efeito terapêutico. E foi justamente a preocupação dos mais simples e humildes que mais me comoveu, estou , hoje, plenamente convencido que após terminar a faculdade e a.residência e voltar para minha terra, estava fazendo o gesto mais importante de toda minha vida. Nenhum acúmulo de bens neste mundo compensa a alegria de me sentir amado, querido e quase que insubstituível por minha gente, aquela a quem dediquei anos a fio de cuidados e preocupação ( e pretendo assim continuar fazendo) com os parcos recursos científicos, técnicos e humanos que a natureza e a vida me proporcionaram. Sempre de pé à beira do leito dos hospitais, de repente me vi deitado e necessitando da ajuda e do desvelo de tantos e tantos colegas de profissão. Via no rosto deles além do empenho técnico , uma preocupação que extrapolava o científico e esbarrava no humano Sinto-me engrandecido por ter tido, pela primeira vez, a visão plena da outra dimensão do sofrimento, da dor, da angústia.Toca-me, de cátedra, a certeza da imensa fragilidade humana. Meras estrelas cadentes somos no firmamento da existência. Um fúlgido brilho no céu, que encanta poucos olhos atentos e, de repente, o universo volta à imutabilidade de sempre. E os vestígios que podemos deixar sobre a terra são simplesmente um pouco daquele resplendor que riscou a noite, tocando a retina de alguns e que pode apenas ter maior ou menor intensidade. Mas perfeitamente similar na sua fugacidade.Como sempre, correram notícias as mais dispersas. Um mundo midiático como o nosso se alimenta de manchetes. Nossas vidas comezinhas e tão insignificantes necessitam ao menos do furor de algumas histórias mais sensacionalistas. Pois ainda não foi desta vez. Pretendo ainda fazer raiva a muita gente, escrever um mundão de potocas e continuar servindo àqueles que me procuram. Acredito que valerá a pena ficar por aqui enquanto contar com a amizade e o desvelo de tantos e possa me sentir perfeitamente útil a todos a quem dediquei minha vida pessoal e profissional. Ainda não foi desta vez que precisei voltar definitivamente para Matozinho.

José Flávio Vieira.