sexta-feira, 30 de julho de 2021

A Roda do Tear

 


                                                                          “Não devemos  temer que a Vida , ao encerrar

Nossa conta , detenha a roda do tear,

Pois o eterno Criador soprará infinitas

Bolhas, que como nós, vão surgir e estourar”

 

Omar Khayyám ( “Rubáiyát” )

                                                               Essa é uma época de grandes arroubos e gigantescos arrebatamentos. Ninguém se conforma com a trivialidade dos momentos, como se a existência não fosse tecida de muitas banalidades, de panos vulgares, de simples e insípidas enseadas.  Todos perseguem um Grand Finale.    O rapaz, chateado com o fim do relacionamento, joga nas redes sociais fotos íntimas da namorada, expondo-a, sem nenhum pudor, à maledicência pública. Outro moço, diante do fim do namorico, coloca , num grande outdoor , declarações de amor, públicas,  implorando pela retomada do relacionamento. O ex-marido, mais dramático, inconformado com a separação, mata a companheira, em pleno ambiente de trabalho e, a seguir, tira a própria vida. Hoje não há histórias de script corriqueiro, todas puxam para o colossal, o ciclópico, o mastodôntico.  

                                               Houve, no entanto,  um passado  tempo de  brandura e sutilezas. Quando sentimentos e emoções desnudavam-se por olhares furtivos, num enigmático e inconcluso strip-tease.  As palavras escolhiam-se , cuidadosamente, como  amoras nas feiras livres.  E  carregavam significados úmidos em rios de metáforas .  Precisava-se de  ofício de poeta e de ourives para degustar da sua essência. E tantas e tantas vezes viam-se substituídas pela tênue linguagem dos gestos e a delicadeza dissimulada dos sorrisos contidos e das piscadelas fortuitas. Os corpos entendiam-se e liam-se por mero magnetismo, sem a necessidade do toque e da proximidade – por uma espécie de energia estática. Os e-mails de hoje faziam-se através de cartinhas e bilhetes furtivos e ocultos tangidos pelo voo  de incontáveis e basilares  pombos-correio. Nestes tempos, as distâncias se estendiam e as ampulhetas, solidárias, diminuíam o fluxo inevitável do pó ( início e fim de todas as formas vivas do universo). As almas entendiam-se nos semitons. O silêncio era loquaz como maracanãs no milharal.

                                     E , se a apartação era a regra, se a palavra carregava consigo suas inequívocas limitações, como fazer com que as boas lembranças não se esvaíssem? Que não se diluíssem as recordações dos instantes bonitos e insuperáveis ? Como reter a memória dos amigos , dos familiares mais próximos, dos namorados ?  As pessoas se ofertavam fotografias!  Amigos para amigos, colegas para seus pares, familiares para outros familiares, próximos ou distantes.  E no verso, sempre, vinham as dedicatórias, em caneta tinteiro, com letras bonitas moldadas em cadernos de caligrafias.   E as sépias ( ainda sem veleidades de arco-íris)  guardavam para  uma terna  eternidade ( disfarçando o efêmero de tudo): o sorriso do recém-nascido, a noiva engalonada em véu e grinalda, o rosto sisudo do formando, a foto da jovem no desabrochar imperioso da juventude. Os nudes de então descortinavam longínquos e estroboscópicos  espectros da alma e, como nos mistérios da sensualidade, prometiam muito mais do que exibiam. Um teatro de sombras.  Diante da fotografia,   a   vida parecia deter-se naquele momento, como se fosse quase possível frear o tear do tempo, como se as bolhas de sabão , num passe de mágica, tornassem-se totalmente metálicas e magmáticas, inoxidáveis  aos sopros do vento e ao rigor das tempestades futuras.  

 

Crato, 30/07/2021

 


 


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Quando Bulir Não era Bulling

 


A adolescência é pontuada de uma mundão de histórias e peripécias que cada geração guarda consigo, carinhosamente, como um atestado da  fase mais  dourada da vida. Aquela em que o universo se escancara à nossa frente com infinitas possibilidades, em que preocupações com questões econômicas são de somenos importância, em que , como uma flor que acabava de desabrochar, estamos no brilho maior da  nossa vitalidade. A rua, a escola, os amigos, as primeiras paqueras e aquela galhardia típica da juventude, quando todos carregam uma lombra natural e nem precisa de drogas alucinógenas para empreendermos  nossas viagens siderais. Cada um de nós porta seu repertório próprio de potocas, acontecidas muitas nas escolas , outras no Tiro de Guerra, algumas no futebol, nas festas e nas praças. Eram tempos em que quase todos tinham apelidos, antes  de virar um nome feio chamado de  Bulling. E hoje, talvez por falta de assunto mais palpitante, me bateram lembranças passadas, vai ver  as atuais já não tenham nenhum glamour. Vão aqui três mungangas dessas , da primavera da  minha geração,  que agora já anda colocando os blusões de malha para o inverno que se avizinha.

                                    A primeira contou-me meu pai  da época do Seminário São José. O velho Vieira foi seminarista e, por pouco, eu não estaria escrevendo essas linhas. Um dos seus colegas , que depois terminou ordenado, era da elite caririense, ao contrário da maior parte dos alunos daquele educandário, quase todos da zona rural e de origem humilde.  Pois esse rapazinho era  muito pão duro, qualidade que o acompanhou por toda a vida. Trouxera para junto de sua cama, no grande dormitório do seminário, um criado mudo que possuía uma pequena gaveta, com chave. Sempre nas folgas, sua mãe mandava um tijolo de buriti na medida exata da gaveta que o sovina ali acondicionava e fechava com a chave que, por segurança,  não tirava do cós das calças. Depois das refeições , ele vinha sorrateiramente, abria a gaveta e, com um canivete, tirava um pedacinho como sobremesa. E nem adiantava os colegas pedirem um taco da guloseima, ele lacrava-a , rapidamente e negaceava:

--Não ! Esse docinho foi mamãe que mandou pra mim !”      

                Alguma providência precisava ser tomada, pensaram os colegas. Conseguiram um pedaço de sabão, tiraram o molde da fechadura e, numa das folgas, encomendaram uma cópia da chave do criado mudo. Depois, fizeram, antes, uma conferência para saber como iriam atacar o tijolo de buriti sem serem descobertos, prematuramente. Alguém deu uma ideia dessas que só sai da cabeça de estudante. Ao contrário do dono,  puxariam a gaveta até o final e começariam de trás para frente. Assim o fizeram ! Só que , enquanto o sovina, cortava economicamente,  o seu taco pela frente, a turma do “en arrière”, vinha ávida e veloz lá do fundo. Quando  encontravam o sócio , nos recreios,  o cumprimento era quase uma profecia.

                        --- Ei , Laurentino ! Tudo bom ? Qualquer dia a gente se encontra !

            Promessa feita, promessa cumprida ! Bem antes do meio do tijolo, um belo dia, quando o dono passou a faca, a banda  deu um cangapé e caiu. Quando Laurentino, confuso, abaixou-se, deu de conta com incompreensível e inexplicável desbastamento que o tijolo de buriti sofrera em tão pouco tempo !

            A segunda história aconteceu no Colégio Santo Antonio em Barbalha, um semi-internato , de orientação religiosa e que educava alunos da elite caririense, no anos 60, com uma certa predileção por aqueles mais rebeldes e difíceis. Um rapaz de Juazeiro, que depois se tornaria um próspero comerciante, com raiva de um dos professores , ele achava que o perseguia, num dos intervalos,  tirou a gaveta do birô do mestre, levou pro banheiro, evacuou dentro e colocou-a, novamente, no lugar. O mestre começou a aula, na sua cadeira e pressentiu uma fragrância estranha. Olhou o solado dos sapatos, olhou debaixo do birô, observou os cantos da sala de aula e nada... Até que resolveu abrir a gaveta para pegar um giz, quando deu com o bicudo da rainha que lhe tinha sido ofertado.  Imediatamente chamou o padre rígido e disciplinador que era o diretor. Quem foi, quem não foi ... puxa prum lado, puxa pro outro... ameaça daqui e dali...  e nada de ninguém se denunciar e de ninguém denunciar ninguém. Penalidade: o diretor suspendeu todas as folgas dos finais de semana da classe até que aparecesse o responsável por aquela porcaria. Os colegas se aguentaram ! Naquela época, não existia um ser mais desprezível do que o dedo duro. Dedura era motivo de extradição das relações sociais . O problema é que os dias se foram passando, a saudade de casa batendo e os meninos se agoniando e pressionando , cada vez mais,  o autor da peripécia. Um belo dia, tudo voltou ao normal:  ninguém foi acusado, ninguém foi castigado e as folgas voltaram à normalidade. Os colegas estranharam e quiseram saber como tinha acontecido o milagre e perguntaram a seu autor. Só um gênio , naquela idade, poderia ter achado a saída mais perfeita:

            --- Ora ! Foi fácil ! Fui me confessar e contei ao padre  que tinha sido eu ! Como é segredo de confissão ele não pode revelar , nem insinuar e nem dar a entender que eu fiz a presepada. Coisa de pelar nas caldeiras do inferno !

            Fecho essas lembranças com uma história do Tiro de Guerra aqui do Crato. Também nos gloriosos Anos 60. O sargento responsável era duríssimo na disciplina e lembrem que estávamos em plena Ditadura Militar. Se o Cabra fizesse de engraçadinho tinha cadeia esperando e não podia estrebuchar. Tinham implantado , no TG, umas aulas de OSPB, bem na visão política dos ditadores e o sargento fazia arguições periódicas. Numa delas, chamou o Soldado Teles que era meio disperso e ansioso.

            --- Soldado Teles ! Me responda , sem gaguejar ! O que o Brasil exportava no tempo do Império ?

            O soldado, vexado, agoniado, tentou lembrar das exportações imperiais, mas a deixa não vinha. O soldado  Ferrúcio , logo atrás dele, sussurrou-lhe uma pesca e Teles, agarrou-a, aflito,  como salvadora:

            --- Sargento ! Eu sei ! Tamanco, Palito e Chapéu de Couro !

            Imaginem a algazarra geral de mais de trinta adolescentes reprimidos em cintas de quartel ! O sargento, colérico, chamou o soldado Ferrúcio, o introdutor da cola na arguição de OSPB e ríspido , o mandou para frente do pelotão:

            --- Soldado Ferrúcio ! Seu crápula, seu desqualificado ! Grite agora mesmo, bem alto, para todos os seus colegas ouvirem ! Grite: “Eu sou burro !”

Ferrúcio, calmamente, ao ouvir o grito do sargento invocando o “Eu sou burro!”, de mãos postas, em posição de Sentido !, levantou o queixo e berrou bem forte:

-- Eu também, sargento !!!