sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Vestido de Estrelas para a Festa Solar

                                                                                                  J. Flávio Vieira 

Houve um tempo em que a retidão, a honestidade não se tinham como virtude ou qualidade. Eram, simplesmente, traços indissociáveis do caráter humano. Ai de quem se afastasse desse atributo mínimo esperado de qualquer pessoa que cruzasse nosso caminho ! Atirava-se, imediatamente, na lata de lixo da sociedade. E não havia maior agressão do que se imputar alguém a pecha de vigarista, de espertalhão, de velhaco. Era um imediato chamamento ao duelo, pendência a ser resolvida com facas e carabinas. Eram tempos em que Política e Polícia não eram palavras correlatas, mas apenas um mero jogo de poder e havia limites e fronteiras claras a serem transitadas. Ultrapassar trilhas previamente traçadas resultava em entrar em areia movediça e campos minados. A Escola e as Religiões nos tinham, previamente, estabelecido um caminho virtuoso e límpido a ser trilhado. As penalidades por quaisquer infrações resolver-se-iam nos tribunais terrestres e celestiais. Hoje, em tempos de vale-tudo, do quem for podre que se estilhasse, tudo isso ganha ares de retrô, valores para serem guardados em prateleiras de museus. Todo esse preâmbulo saltou da vitrine do antiquário para a estante da atualidade, agora, quando , no próximo dia três de novembro, comemoraremos uma efeméride singular: Dr. Aníbal Viana de Figueiredo celebra seu centenário de nascimento. As novas gerações, acostumadas com a liquidez baumanniana típica da modernidade, perdeu, completamente, a ligação com o passado e é preciso que reavivemos esse elo. Um edifício, por mais suntuoso que se apresente, não existe sem o seu alicerce, mesmo que misterioso escondido no seu quarto subterrâneo. Nascido em Crato, há exatos cem anos, o menino Aníbal descendia de uma família intrinsecamente ligada à História do Cariri. O pai, um dos boticários pioneiros da região, José Alves de Figueiredo, ligara-se às letras muito cedo, sendo editor do jornal “O Araripe” , na sua segunda versão e autor de Ana Mulata, um dos livros icônicos da literatura sul-cearense . Ele fora prefeito da cidade em 1926. J. de Figueiredo Filho, irmão de Aníbal, historiador, folclorista, fundador do Instituto Cultural do Cariri, uma das mentes mais brilhantes cearenses, no Século XX. O menino Aníbal nasceu em 1921. Iniciou seus primeiros estudos no Grupo Escolar Cratense e, depois, no Ginásio do Crato. Nos intervalos, ajudava o pai na Farmácia Central. Seguiu depois para Fortaleza onde se preparou para o vestibular no Liceu do Ceará. No início dos anos 40, ingressou no Curso de Odontologia e Farmácia da UFCE, formando-se em 1944. Simultaneamente enveredou no CPOR de Fortaleza, fazendo-se 2º Tenente, o que o propiciou a possibilidade de dirigir o Tiro de Guerra do Crato, por mais de quinze anos, depois do seu retorno. Em 1945 casou com D. Maria Eneida de Figueiredo, de onde brotaram os filhos: José Ricardo, Luiz Alberto, Magali, Aníbal Filho, Fátima, Emília e Tatiana. Todos formados nos mais sagrados princípios de probidade e honradez, fizeram-se uma projeção da sombra acolhedora dos pais. Hoje a árvore frondosa de Aníbal e Eneida já conta com muitos outros frutos: mais de duas dezenas de netos e uma outra de bisnetos. Dr. Aníbal trabalhou por mais de sessenta anos como dentista na nossa cidade, junto de uma benfazeja geração que incluía figuras mitológicas da Odontologia caririense como : José Nilo Alves , Oswaldo Pinheiro, Gutemberg Sobreira, Edício Abath e outros. Inserido na vida social da sua cidade natal, Aníbal foi rotariano ativo por mais de cinquenta anos e presidente do clube . Em 1963, fez-se vice-prefeito na administração de Pedro Felício Cavalcanti, uma mistura virtuosa de Ética, decência, lisura e retidão tomou conta do Palácio Alexandres Arraes. A Academia Cearense de Odontologia o fez sócio honorário em 1997, reconhecendo a travessia iluminada e gloriosa do nosso dentista. A vida curta de todos os viventes nesta terra assemelha-se a uma mera passagem de um cometa. Brilhamos mais ou menos no horizonte para a alegria e deslumbramento de alguns poucos expectadores e, depois, sumimos na vastidão do universo. Para sempre? Alguns até acreditam que, periodicamente, como o Halley, reaparecemos. A cauda luminosa da passagem do cometa Aníbal ainda refulge nas nossas retinas e orienta vidas. Sua lhaneza de trato; a dose perfeita entre ao labores da profissão e o degustar dos prazeres epicuristas da vida; seu humanismo; seu desprendimento ao saber que o valor monetário é mera parte do pagamento da terapêutica; a imunidade total frente ao poder que lhe foi posto às mãos na política; o amor incondicional pela sua cidade e pelos seus conterrâneos; o cuidado com sua ninhada que era similar ao que distribuía com todos os que o procuravam. Um dia de 2006, Dr. Aníbal deu por finda sua messe e deixou que sua missão continuasse , agora multiplicada, entre seus descendentes. Hoje, ele já não precisa usar o espelhinho, o fórceps e o boticão. A bata já lhe é inteiramente desnecessária: Dr. Aníbal agora traja-se de sol e veste-se de estrelas. 

Crato, 29/10/21

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Pau de Sebo

 


As filhas, cuidadosamente, levaram o velho Fulgêncio, numa  cadeira de rodas, até à calçada alta da casa . É pra ele espairecer um pouco, pensou Cleonilda, a mais velha e que ficara para titia e, de quebra, para principal cuidadora do pai. Havia uma razão especial para aquele bônus oferecido à eterna clausura de Fulgêncio. A casa antiga, de cumeeira empertigada como coqueiro, ficava estrategicamente colocada na pracinha central de Matozinho, defronte à Igreja de N. S. dos Desafogados. Naquela semana estava acontecendo a Novena da Santa, aquele era o período mais festivo da vila. Missas, quermesses, leilões, barraquinhas com comidas típicas e também com a tradicional Mendraca do Coronel Anfrízio . A aguardente era tão forte que se tinha a sensação, ao entornar o copo, que se estava engolindo um gato, o bicho escorregando goela abaixo, com as unhas abertas, cravadas,  e estrebuchando , querendo voltar ladeira acima. Havia, também, o parquinho das crianças com suas canoas movidas em pêndulo a força de muque, seus carroceis de várias velocidades, os jogos de azar, os estandes de tiro ao alvo. Todo noite , após a novena, era aquele alarido de fogos e bombas em homenagem à milagrosa mãe de Matozinho. E foi por isso mesmo que naquele dia o velho  ganhou uma carta de alforria, claro que com liberdade condicional.

                        Fulgêncio, com olhar um pouco vago, pôs-se a contemplar a pracinha apinhada de gente  que , há pouco, atacara os baús e dali arrancara as suas melhores roupas, guardadas sempre para ocasiões muitos especiais. Roupa de Novena, como se dizia em Matozinho. O olhar meio tardo percorreu a pracinha em cento e oitenta graus, detendo-se num ou noutro detalhes. Por fim, Fulgêncio deu com o Pau de Sebo que estava fincado no meio do logradouro. Era um jatobá bem alto, de uns trinta metros e que começava quase como um mourão mas se ia afinando à medida que se distanciava do chão. Estava todo recém besuntado com sebo de carneiro  e, no topo, fitas coloridas e uma nota de cem reais oferecendo-se ao alpinista intrépido que a alcançasse.

                        Num átimo, as lembranças do velho Fulgêncio afloraram como se mãos fortes espremessem um carnegão. Vieram-lhe à mente, muitas outras Festas de Padroeira. Nascido pobre, sua vida tinha sido um verdadeiro rali. Alternara-se em incontáveis profissões em muitas cidades. Só em São Paulo labutara por mais de dez anos como servente de pedreiro. Virou o estado como mascate vendendo quinquilharias até se fixar em Matozinho com uma lojinha de confecções. Criou os cinco filhos , como se participasse de uma gincana: cada dia precisava matar o leão e, às vezes, o dragão, os dinossauros e os fantasmas. As coisas melhoraram quando caiu na idade, mas aí a esposa foi acertar as contas celestiais e o derrame o pegou pelo pé e o lançou na cadeira de rodas tirando-lhe toda a autonomia. As filhas eram zelosas, mas ele se sentia um traste. Nem para me matar presto mais, pensava nos momentos mais tormentosos.

                        E ali estava ele, assistindo às peripécias dos atletas no pau de sebo. Subiam dois metros, voltavam ao chão. Às vezes próximo de chegar ao topo, justo na parte mais delgada do jatobá, slipe ! Todo o trabalho estava perdido e se voltava à estaca zero. Periodicamente , funcionários untavam o pau , numa nova demão. Já de tardezinha, um rapazinho franzino de Bertioga, com cara de abestado, utilizou uma técnica que não era conhecida. Furou os dois bolsos da calça e os encheu de areia. Começou a escalada e, à medida que ia subindo, a areia escorria pelos feriados dos bolsos e lhe caiam sobre os pés , ajudando a aumentar o atrito ao se misturar com o sebo. E foi assim que, finalmente, Bertolino, para os apupos furiosos da galera, arrancou, do cimo, a nota de cem reais, sonho perseguido, sem sucesso, por tantos.

                        Da sua cadeira, Fulgêncio observou tudo atentamente. A vida, concluiu com as rodas  do automóvel que lhe restou, era também um pau de sebo. Um subir e descer constante, escorrega daqui, cai dali, sempre pensando em pegar o tesouro que a gente vê lá no alto. Alguns desistem no meio, outros se acidentam na tentativa. Diferentemente do Pau de Sebo da Novena de Matozinho, mesmo aqueles que usam a areia da persistência e chegam nos píncaros descobrem que, na vida,  a nota de cem reais é sempre falsa.

Crato, 22/10/21   

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A Peruca e a Auréola


J. Flávio Vieira

                                                Pedro Filismino  tinha uma pequena fazenda nos arredores de Matozinho,  onde mantinha um criatoriozinho de gado e de ovelhas. Vivera sempre nesta corda bamba , equilibrando-se em alguns raros invernos de pasto fácil e muitos e muitos  secos como língua de papagaio dos inhamuns. O exercício de sobrevivência era sempre aquele de comprar as cabeças em épocas de seca, quando estavam a preço de banana, engordá-las com suas roças de capim, matar a sede no açude da capivara , na sua propriedade, que aguentava até dois anos sem chover,  e sem que batesse a piaba. Depois,  as vendia pelo dobro ou triplo do preço. Pedro também era conhecido por sua carolice. Assistia a missas diariamente, contribuía assiduamente com as obras sociais do Pe. Arcelino e não havia quermesse em que o nosso Filismino lá não estivesse, ativo e presente,  arrematando galetos e ovelhas por preços proibitivos. Difícil entrar na igrejinha para não flagrar nosso agricultor ajoelhado em algum confessionário, pedindo perdão de suas falhas e deslizes.

                                    A imagem pública que se tinha do nosso Pedro era de um homem religioso , probo e temente a Deus. O povo de Matozinho, no entanto, era experiente e tinha uma sensibilidade aguçada para essas beatices estranhas e exageradas. Para ele não existia verdade maior do que aquele provérbio clássico:  Valentia, riqueza e santidade: a metade da metade !  Muitos começaram a checar as peregrinações do nosso Pedro para além das muralhas da igreja, após as overdoses de  Salve-Rainhas, de  Credos e Pai Nossos. Filismino, descobriram depois, saía da missa das seis num Jeep 51 que adquirira há muitos e muitos anos. Tomava o caminho da fazenda, mas, antes de chegar, trocava a roupa dentro do carro, colocava um capote grosso e uma peruca, montava num burrinho que já o esperava amarrado num angico e partia, sorrateiramente pra a Rua do Caneco Amassado, o famoso baixo meretrício da Vila de Matozinho. Chegava lá já à noite, com a peruca esquisita e o manto grosso e todos imaginavam que se tratasse de algum forasteiro.  Ele, segundo se levantou, era o parceiro favorito da mais importante meretriz da cidade: Bia Chuca-Chuca. De posse de um aparente anonimato, o cabeludo da peruca  estava solto para liberar suas fantasias.   

                                Imaginem a surpresa quando a revelação chegou na praça principal e o populacho desvendou os mistérios da beatice crônica   de Pedro: ele dividia seu tempo entre o sagrado e o profano. Pecava altas horas da noite, no outro dia pedia perdão na capela e, para todos os efeitos, a conta zerava diariamente. Sujava a alma na madrugada, limpava as nódoas de tardezinha. Filismino  vezes usava a auréola de santo, vezes a peruca libertina.

                                    O zum-zum correu a cidade acima da velocidade da luz. Dois dias depois,   a fofoca, para desespero de Felismino, já vinha em versos, recitados por todas as esquinas da Vila. Como sempre, não se sabia a autoria, alguns desconfiavam que, pelo jeitão do palavreado, parecia ter saído da lavra do Jojó Fubuia , o pinguço da vila e, também, seu poeta nas horas vagas e feitor anual do  testamento do Judas, que esse ano, com certeza legaria uma peruca nova para o nosso Pedro.

 

                                    O Véi Pedro Filismino

                                  Que danado esse menino !

                                   Se confessa todo dia !

                                    Depois que bota  a peruca,

                                     Se enrola com Chuca-Chuca,

                                   E é a maior putaria !

 

                                    Mas no outro dia, porém,

                                    Purinho como um nenen

                                    Vai da gandaia pra fé

                                    O homem é texto e panela:

                                    De tarde lá na capela

                                    De noite no cabaré !

 

Crato, 15/10/2021

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

As Tábuas de Moisés em Matozinho

 



J. Flávio Vieira

 

                               Havia inúmeras razões para o Revdo. Pe. Vicente Antonio Petico  ser tão reverenciado na Vila de Matozinho. A mais importante delas , talvez, fosse  tão inencontrável nos dias de hoje: sua vida não se distanciava das suas palavras e pregações. Chegou por ali já passado nos anos, com uns sessenta e lá vai pedrada. Nunca se soube de qualquer falcatrua ou deslize do sacerdote, nem no campo financeiro, nem no âmbito da sexualidade e nem mesmo nas ações sociais. Chegou pobre como os matozenses e, depois de mais de vinte anos à frente da igrejinha de N. S. dos Supliciados, continuava exatamente como chegara: com uma mão no feixe e outra no facho. Estava disponível para a comunidade em todas as horas e dias e as limitações da idade não estreitaram essa disposição. A outra faceta que tornava o nosso Pe Vicente apreciado era o apreço por seus paroquianos. Petico era muito turrão e ortodoxo  como caixa de palito Gina. Não admitia transgressões de paroquianos no templo: mini saia, decote mergulhante, cabeça sem véu. Expulsava os transgressores como um dia Jesus pôs pra correr os vendilhões do templo. Não permitia menino se danando na missa, levava-os arrastados pelas orelhas cabanas para bem distante da porta principal e advertia os pais prometendo labaredas do inferno a quem não educasse seus rebentos: não há moca nesse mundo que peia não cure. Essa brabeza de Vicente tornou-se folclórica e, inclusive, aumentou em muito sua popularidade junto aos fiéis. Outra característica importante de Petico é que conhecia por nome e sobrenome todos os seus paroquianos. Qualquer forasteiro que resolvesse ir à capelinha era imediatamente inquirido sobre suas procedência e devoção.  Tempos passados -- comentava-se como um capítulo da história oficial da vila -- cangaceiros resolveram invadir Matozinho e fazer um arrastão no comércio. Muitos cidadãos remediados fugiram, com medo, para cidades do entorno. Advertido,  o padre  arregimentou um pequeno batalhão de mais de vinte matozenses mais destemidos e , espalhados dentro do tempo e na torre da igreja, receberam os invasores a bala. No ponto mais alto da torre estava empunhando seu rifle papo amarelo o destemido pároco Vicente Petico. O fogo não durou nem quinze minutos e os cabras se dispersaram, depois de umas cinco baixas, subindo pela Serra da Jurumenha e não se teve mais notícias deles.

                                    Pois um belo dia, o nosso Pe Vicente Antonio Petico dirigiu-se à igrejinha de N. S. dos Supliciados   para celebrar a  missa diária  das 17:00 h, hábito que já mantinha há mais de trinta anos. Quando adentrou o templo, encontrou a farta coleção de fiéis espalhados pelos bancos duros da igrejinha. Estranhou, no entanto, uma diferença. No púlpito, à frente, encontrava-se um sujeito metido num paletó meio amarrotado e pegando marreca, com um livro aberto e falando, em voz empostada de barítono,   em nomes que não lhe eram estranhos: Josué, Javé, Moisés, Abraão. Fechou o cenho e aproximou-se do altar mor e o inquiriu ainda demonstrando uma calma que não lhe era habitual.

                                    --- Se mal pergunto, quem é o senhor e o que está fazendo aqui no meu templo , falando umas arisias e  pastorando o meu rebanho ?

                                    O  rapaz baixinho , com metade da envergadura de Pe Petico, não se fez de rogado. Engrossou ainda mais a voz e apresentou-se:

                                    --- Meu nome é  Melquisedeque Cartuchino de Lima. Sou novo aqui nessa cidade. Sou pastor de uma igreja alternativa e vim aqui botar pra funcionar  a nossa Igreja Miraculosa  Anabatista do Evangelho Piramidal, a única com conexão on line com o Criador.

                                    Pe Vicente controlou-se como um miúra antes de entrar na arena. Pausadamente, então, enveredou por mais detalhes relativos àquela verdadeira ingerência de fundo religioso.

                                    --- Sim, seu Melquisedeque, tudo bem,  a Constituição diz que há liberdade de culto, mas o que é que o senhor está fazendo aqui no meu  templo? Porque não vai obrar seus milagres na sua pirâmide ?

                                    Melquisedeque, então, resolveu engrossar o caldo. Tinha chegado há uma semana e ainda não possuía templo. Resolvera, então,  aproveitar a clientela e a igreja de Pe. Vicente, já que, pelo que sabia, aquela bíblia que ele tinha nas mãos era exatamente igual  do sacerdote católico.

                                    Como era de se esperar, caiu a última gota que entornou o copo de vinho do vigário, coisa que não era difícil de acontecer porque o cálice já vivia eternamente pelas beiradas.

                                    Pe Vicente, então, pegou a trave da porta principal da igreja que mais parecia a linha principal do casarão do Coronel Anfrízio Maia e disse veementemente : As bíblias não são iguais não, viu seu Bruda ! Mas eu igualo já. Deu uma primeira travada no lombo de Melquisedeque e o homem criou sustança nas canelas e ganhou a rua. Atrás dele vinha nosso Pe Vicente e, a cada igualada no pé do ouvido do outro pregador, ele mais criava distância.

                                    A partir desse momento quem nos relata o resto da novela é  Jeremias Norato, o cronista da oralidade de Matozinho que nas horas vagas trabalhava também como barbeiro.

                                    --- O porco queixada em TPM chamado de Pe Vicente desceu rua abaixo tentando igualar as bíblias que , segundo ele, tinham algumas diferenças. No primeiro quarteirão, defronte a casa do prefeito Sinderval Bandeira, já com quatro lamboradas de trave no toitiço, se muito faltava para igualar os dois livros era uns três dedos. Na esquina da Bar de Giba, as bíblias, sob força de paulada, já tavam emparelhadas e eram irmãs gêmeas. Quando , no fim da rua, Melquisedeque criou sebo nas canelas, depois de umas dez igualada,s e pegou o gramear, serra acima, a bíblia de Pe Vicente já tinha passado , pelos meus cálculos, uns quinze a vinte livros mais.

                                    À noite, recolhido, segundo Jeremias, o Pe Vicente, bom servo de Deus, escreveu uma carta a seu superior informando o ocorrido e o grande problema espiritual que tinha lhe invadido a alma. As bíblias , salvo um ou outro livro, não são tão diferentes... Uns quinze dias depois,  relata Jeremias Norato, o padre recebeu uma carta em resposta. Tranquilizava-o pelo ato violento e da perda de controle. O único problema, segundo o bispo, era gráfico. Na edição das próximas bíblias, segundo ele, pelo excessivo igualamento procedido por Pe Vicente , onde imprimiu a força de trave, como se fosse as tábuas de Moisés no Monte Sinai,  os novos livros sagrados iriam ter pelo menos mais umas 400 ou 500 páginas.

 

Crato, 08/10/21

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Corte & Costura

 


J. Flávio Vieira

 

A linha com que se bordam sonhos,

é a mesma com que costura a vida.

Edna Frigato

 

 

                               O Instituto Cultural do Cariri promoveu, no último dia 29 de setembro, o seu trigésimo quarto Colóquio. Desta feita esteve em evidência a criadora de moda Celinha Teles ou Celinha do Cariri como ficou conhecida , artisticamente, depois que se radicou em Olinda. Nem deve ter sentido muito falta do pé da serra, afinal todo cratense , culturalmente, é também meio pernambucano, seja por conta dos territórios fronteiriços , seja, principalmente,  por conta das nossos estreitos liames históricos e culturais. Celinha tornou-se uma referência em Olinda-Recife e vestiu incontáveis artistas pernambucanos. Foi casada com um dos maiores trombonistas da história do Jazz, Raul de Souza, que agora em junho, passou a fazer parte de uma jazz-band celestial. Na abertura do evento, o maestro pernambucano Nilsinho Amarante executou um lindo frevo que o Raul dedicou a sua amada Celinha do Cariri. O Colóquio foi também o momento mágico de reunir , mesmo que remotamente, incontáveis protagonistas de um dos períodos mais férteis e virais da história cultural do sul cearense: os Anos 70 que fizeram explodir, com ímpetos de Pedra da Batateira, o maior dilúvio contracultural da nossa trajetória.

                        Andei consultando jornais antigos em busca de relatos da atividade de Corte & Costura na nossa região. Sempre é bom lembrar que , em tempos da Colônia e do Império, o artesanato era visto como coisa de pobre. Nobre que era nobre não utilizava as mãos a não ser para contar dinheiro e pegar no garfo e na faca. E , quanto às mulheres, esta arte era considerada como imprescindível às prendas domésticas. Costureiras profissionais eram totalmente invisíveis. Encontrei, em 1860, no nosso primeiro jornal, “O Araripe”, uma publicidade do alfaiate Marcolino José Rufino, que era de Santa Maria da Boa Vista, mas estava oferecendo seu ofício, num casarão da Rua do Fogo aqui em Crato. Depois, no Jornal “Vanguarda”, já na década de 1870, o comerciante Antonio Gomes Petico, oferecia a venda de inúmeros itens da sua loja, também na Rua do Fogo, uma vez que estava de mudança para Pernambuco: Cambraia de linho; madrapolão, chitas, brilho de linho, alpaca; casemira; tiras bordadas; babadinhos brancos e de cores. Não encontrei qualquer citação de costureiras. Estranho,  quando entendemos que eram muitas que ofereciam seus serviços, principalmente à clientela feminina que, certamente, se sentia bem mais à vontade em procurá-las.

                        Em gerações anteriores, exigia-se das mulheres essa habilidade. Muitas, certamente, utilizaram sua arte profissionalmente, como meio de subsistência, principalmente viúvas que ficavam sem qualquer amparo previdenciário legal  e tinham que se virar bravamente para sustentar proles, em geral vultosas, parecendo mais um batalhão de caserna. Outras, no entanto, mais remediadas, desejavam ter sua própria renda, sem depender dos maridos.  Huberto Cabral, o nosso mais importante memorialista, levantou uma lista de muitas dessas costureiras esquecidas pelos cantos dos livros de história oficial. Pode parecer enfadonho, mas vamos citar aqui a relação esmiuçada por Cabral para que fique guardada nos escaninhos da nossa memória: Evangelina Gonçalves, Sofia Carvalho Alves de Sousa, Maildes Siqueira, Anita Rocha, Regina Brígido, Isaura Parente, Iraci Alencar Libório, Maria José Medeiros Ramos, Clea Alves de Souza Almeida, Isa Alves de Sousa Caçula, Salisa Alves de Sousa Freitas, Maria Luiza Barreto, Lourdes e Lolô Piancó, Ana Cecília França, Maria do Carmo Eufrázio Alencar, Mariquinha e Benvinda Milhomes, Anísia Araújo, Amelinha Peixoto, Nadeje Figueiredo, Maria Elisa Pinheiro, Nadeje Lins, Pedrina Leite, Maria Chicô, Maria do Carmo Brandão, Suzete Justino, Francisca Vilar, Leomar Vieira Borges, Cila Brito, Ercília Lins, Benilda Feitosa, Diana Parente A Norões, Candóia Feitosa, Mariquinha Marques, Norma Parente, Marieta Gomes de Matos, Niniva Oliveira, Cilene Oliveira Barros, Augusta Brito, Francilê Barros, Dagmar Araújo Filipona, Nilza e Mary Araújo,  Francisquinha Silva, Ducinha Silva, Otília Cardoso da Silva, Maria Iris, Lourdinha Costa, Djanira e Heroína  Linhares, Maroli Alencar, Maroli Figueiredo, Lezanira Cabral, Natividade Silva,  Naninha Parente, Edvirgens Ferreira Silva, Ana Paula Alves Cordeiro, Elenier Ferreira Silva, Celsa Morais, Maria Gomes, Rosalva Macedo, Mila Chagas, Vanda Pontes, Zuleica Pequeno de Figueiredo. Ufa ! E essa é apenas uma pequena relação , certamente com muitas faltas a serem preenchidas.

                        Como Celinha, todas estas abnegadas figuras humanas usaram sua arte para vestir e também desnudar , estrategicamente, outras mulheres, tornando-as mais finas , elegantes e sensuais. Todas artistas sensíveis , delicadas e dedicadas a mostrar a beleza do mundo, como se pintassem quadros, escrevessem poemas , esculpissem corpos. Criaram museus vivos cujas peças continuam a desfilar pelas ruas do Brasil para os olhos de quem souber olhar.

 

Crato, 01/10/2021