sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Máscaras ao chão, Deodatos no Templo


“Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!”
                                                                    Mario Quintana









                            De onde brota o fascínio do Bar ? Por que o vinho, o whisky, a cerveja ganham sabores de um Grand Cru, quando degustados no balcão, na mesinha do botequim mais simples e mais empoeirado ? Todo bom bebedor percebe, claramente, que os rituais ao deus Baco e Dionísio não obram milagres sem o clima e a necessária ritualística  proporcionados pela sua catedral: o boteco de esquina. É que o barzinho faz-se uma espécie de oásis, o refúgio último da guerra cotidiana, das agruras do trabalho forçado e da busca de um shangri-lá ilusório que vai trocando, cotidianamente, num desigual escambo,  pelos preciosos minutos e horas: aqueles tijolinhos de que se compõe a vida. Na taberna mais simples sentimo-nos todos como se a sineta do recreio tivesse soado e as pessoas ao nosso derredor se desarmassem, esquecessem o campo da batalha que ruge do outro lado da calçada e fosse, sim,  possível a conversa solta, o desprendimento, o riso, a piada, a fofoca. E claro, como em toda liturgia, necessita-se do cauim do álcool  para o transe. Afinal, como suportar o peso e a dor massacrantes do dia a dia,  sem anestesia ? Enebriados e  ébrios, soltam-se as amarras impostas pela sociedade de consumo, as algemas dos códigos de postura e etiqueta colocadas em todos para o baile de máscaras da vida pública. No bar, o Rei está nu. O figurino do teatro das formalidades cai por terra.  O paletó troca-se pela bermuda, a gravata joga-se no balde do lixo, a língua formal permuta-se pela vulgata, pela duplicidade de sentidos, pela gíria, pelo palavrão. Removidas as fantasias, diluídas as maquiagens, no botequim os homens se apresentam com suas qualidades , cicatrizes e imperfeições à mostra. In vino Veritas ! Os armários se abrem, janelas do inconsciente se escancaram, leões, gazelas, macacos e porcos se misturam num  interessante zoológico urbano.
                                      Nestes dias, o Crato celebra os sessenta e cinco anos de uma das mais importantes basílicas da boemia caririense: o Bar e Restaurante Pau do Guarda. Instalado na então periferia da cidade, nos anos 50, ele acolheu muitas gerações de boêmios. Um dia, já nos anos 70, resolveu, literalmente descerrar suas portas vinte e quatro horas  para o mundo e, simplesmente, as suprimiu. Qualquer templo que se preze deve estar pronto a acolher seus fiéis todas as horas do dia. O Pau do Guarda tornou-se, naturalmente,  uma espécie de UPA da Boêmia cratense: aquela que mata a sede  dos primeiros deodatos da manhã e mitiga a ressaca dos últimos paus d ´água da noite.   Cicim & D. Raimunda , um dia, impelidos por um cliente contumaz,  criaram um prato que terminou por se tornar um selo da cratensidade: o Pirão de Galinha. Aos poucos ele se imiscuiu na memória gustativa do cratense, assim como o Doce de Leite de Isabel Virgínia, a Tapioca com Fígado de Canena, o Filhós São José, o Baião de Dois com Pequi de Chico da Cascata, o Sanduba de Enoque. Eleito sentimentalmente pelo povo, o pirão tornou-se parte do patrimônio imaterial da cidade de Frei Carlos. Pelo destino noctívago do Pau do Guarda , ele sofreu perseguições por parte dos poderes constituídos, durante um certo período. Imputavam-no a responsabilidade  de encontros escusos e secretos, nas madrugadas, como se o pecado do adultério fosse responsabilidade do divã e não dos amantes. Mas a tradição da casa venceu os seguidos obstáculos e, sessenta e cinco anos depois, Cicim & D. Raimundo ainda lépidos e fagueiros,  continuam a demonstrar que as vilas não são edificadas de cimento, pedras e ferro.  São sonhos, ambições, volúpias e desejos a verdadeira argamassa com que se erguem os alicerces de uma cidade.
                            Afinal, como tão bem definiu nosso Quintana, quando os boêmios do Pau do Guarda, nestas mais de seis décadas, entornavam seus copos, eles o faziam, inconscientemente, como elos de uma corrente que , em moto-contínuo, já varava os séculos.  Eles bebiam e divertiam-se não só para  soçobrar os seus anseios, frustrações e problemas; os boêmios sorvem, por todos nós,  a milenar inquietação do mundo !  

Crato, 31/01/20  

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Paulo, Paulo, por que me persegues ?


                                         
      Diz o Zé Povinho que atrás do pobre corre um bicho. Pelos últimos acontecimentos no Brasil, em plena vigência da Frenocracia, correm atrás do miserável todos os animais do jogo do bicho e talvez até a roleta. De há muito a criminalidade no país é imputada aos despossuídos que se espremem nas favelas , nas palafitas , terrenos invadidos e marquises . Eles, ao invés de estudarem e procurarem emprego, segundo nossos burocratas,  decidem simplesmente viver de furtos, de tráfico e assaltos, organizando-se em cartéis ou milícias. Vivem num país particular, com leis próprias, totalmente impermeável ao estado que só os visita com cassetetes, fuzis e bombas , como se fosse a um safari. Na visão vesga  dos habitantes das coberturas, escolhem os descamisados este caminho por pura maldade, podiam muito bem viver nas mansões de beira mar, frequentar os shoppings mais chiques, estudar nas Universidades e Escolas particulares mais valorizadas  e aplicar na Bolsa de Valores. O que lhes sobra é safadeza e o que lhes falta é iniciativa, empreendedorismo e falta de vontade.  O advento da Lei Áurea de 1888 , basta olhar os morros e presídios do Brasil, apenas fez com que a Escravização se atomizasse pelos campos e subúrbios, igualzinho ao que aconteceu quando se tentou acabar com a Cracolândia em São Paulo. Os novos escravos estão agora nos assentamentos, na mendicância nos sinais de trânsito, nos albergues noturnos abaixo das marquises e viadutos, no desemprego galopante e no subemprego.
                                   Esta semana, no Fórum Econômico de Davos, na Suiça, o ministro Paulo Guedes, jogou mais uma responsabilidade legal, pra cima da pobreza. Ele já tinha falado que pobre não faz poupança, sai gastando irresponsavelmente seu dinheirão por aí, ao invés de investir na Bolsa. Agora, segundo ele,  ela  é a responsável direta pela destruição catastrófica do Meio Ambiente no Brasil. Certamente, pensa ele com seu economês pinochetiano, os pobres, como acionários majoritários da Vale do Rio Doce,  causaram intencionalmente as tragédias de Mariana e Brumadinho. Os miseráveis, também, como são os donos dos principais petroleiros do mundo, deixaram derramar o óleo que contaminou as costas nordestinas, trazendo um tragédia ambiental jamais vista. Os indigentes, por sua vez, grandes latifundiários na Amazônia e donos de grandes madeireiras  e empresas de garimpo e mineração, têm tocado fogo na mata, poluído os rios, matado os índios , posseiros e líderes rurais, tudo com ajuda das ONG´s e de Leonardo de Caprio.  Além de serem herbívoros vorazes, como grandes latifundiários no Brasil, os mendigos estão espalhando agrotóxicos pelos campos, plantando doenças, dizimando aves e abelhas, tudo em nome do lucro. Isso tudo tem prejudicado , sobremaneira, a imagem do país lá fora e, certamente, dificultado o processo de canonização dos grandes conglomerados econômicos, a santificação dos beatos do Agronegócio, a beatificação dos nazifascistas atualmente imponderados.
                                    Segundo você viu em Davos, já que seu chefe - rabinho entre as pernas -- não teve a coragem de enfrentar o mundo civilizado,  a Desigualdade quase que dobrou no mundo na última década. Hoje pouco mais de duas mil pessoas detêm uma renda superior a mais quatro bilhões e meio de viventes. Sendo assim, ministro, a solução mais viável para resolver o extermínio nunca visto das nossas Reservas Naturais, será diminuir as nossas massacrantes desigualdades sociais. Renda mínima, salário mínimo compatível e digno, emprego assegurado, reforma agrária, Educação de qualidade universal, acesso integral aos serviços de saúde  qualificados, combate implacável à pobreza e à miséria. Pronto ! Teremos um Brasil sustentável, um Meio Ambiente preservado ! Vamos tentar ? Ao invés de eliminar o pobre, como se vem fazendo, no último ano, como política de governo,  não é mais justo acabar com a pobreza ?

Crato, 22/01/20

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Pra Tão Grande amor


A história, recentemente publicada no New York Times, é destas dignas de um roteiro hollywoodiano. Uma saga que bafeja de luz e esperança os obscuros tempos que se consubstanciaram no domínio humano no planeta . Parece tudo uma reedição de uma das lendas de criação do universo à maneira de Adão & Eva.
                                   David Wisnia e Helen Spitzer  eram judeus e, presos, encontraram-se no Campo de Extermínio Auschwitz, a azeitada indústria  de morte instalada pelos alemães, no interior da Polônia,  durante a II Guerra Mundial. Ali, estima-se, mais um milhão de pessoas foram eliminados num dos maiores açougueiros da humanidade. David, de 17 anos,  conseguira algum privilégio no campo, pois era um cantor de grande qualidade e fez-se animador das festas e confraternizações do Exército . Helen, 25,  também gozava de prestígio extra pois era designer gráfica e ficou responsável pelos fardamentos das tropas. Em meio à tragédia e o espectro de morte que os cercava, começaram a namorar. Encontravam-se, semanalmente, nos celeiros, atrás dos fornos crematórios e pagavam com comida a algumas pessoas para pastorarem os guardas e os protegerem nas escapadelas.
Helen tinha acesso a documentos que circulavam, orientando transferências de presos para outros  campos. David, imaginava, que sua amada, de alguma maneira o protegia. Juraram, depois da guerra, encontrar-se em um local determinado em Varsóvia.   No fim do conflito, já separados, os soldados os obrigaram a fazer a famosa Marcha da Morte: andarem sem destino, no gelo, até à exaustão e óbito. Conseguiram, cada um do seu lado, fugir : David unindo-se ao exército americano e indo morar nos EUA, na casa de uma tia  e Helen envolvendo-se com trabalhos humanitários na Polônia.  O encontro final e previsto em Varsóvia , espargidos os dois pelo destino, nunca aconteceu. Ambos casaram-se,  na sequência natural de suas vidas.  Mesmo de longe, em contato com sobreviventes, David sabia que Helen, também, havia escapado, milagrosamente, das garras implacáveis de Auschwitz .  E, numa quebrada de asas do destino, terminara por fixar-se também nos EUA.
                                   O encontro de Varsóvia  aconteceria, nos Estados Unidos, só 72 anos depois da data  prevista. Velhinhos, alquebrados pelas vicissitudes da existência, David aproximou-se da cama onde Helen estava acamada há já alguns anos, cega e com dificuldades na audição. Ao ouvir as palavras de David, no entanto, uma aura de vida espalhou-se  pelo corpo e fez-lhe quase sentar. David tinha uma pergunta que ficara guardada na garganta por três quartéis de século. Helen tinha usado a sua influência no campo para salvá-lo? Ela , simplesmente, elevou a mão e mostrou os cinco dedos indicando quantas vezes o tinha livrado do forno alemão.  Baixinho sussurrou:
                                   -- Eu te esperei em Varsóvia e sempre, sempre, te amei...


                                   Aquela certeza cortando os céus como uma estrela candente :  ante à correnteza da maior dor, do luto, do tormento, da carnificina, sobrenada, sempre, um pouco de luz, lampejos e sementes de esperança.  David cantou-lhe uma música húngara que ela havia lhe ensinado  em Auschwitz. Helen morreu no ano passado aos 100 anos. Os ecos daquela última canção  devem a ter ninado no seu último sono.   David, hoje aos 93, ainda tenta entender como o barco do amor pôde resistir incólume a tantas tempestades e, um dia, chegar ao porto sonhado... Mastro já roto, velas  esfrangalhadas, timão despedaçado e a triste enseada vazia... Como o Jacó camoniano deve ter imaginado :
                                 
                                  -- E mais esperaria, “Se não fora pra tão grande amor, tão curta a vida...”

Crato, 17/01/20