domingo, 29 de janeiro de 2023

No claro-escuro irrompem os monstros

 


Uma das mais perturbadoras visões da humanidade foi depreendida por Hannah Arendt quando do julgamento do criminoso de guerra  Eichmann,   em :Jerusalém, que redundaria num dos livros mais reveladores do Século XX, em 1963. Arendt teve a coragem de botar o dedo na ferida e, como judia, escancarou verdades indigestas ao seu povo,  o que desencadeou   intrigas que não se dissiparam até a morte da filósofa em 1975. Entre elas a participação cúmplice de lideranças judias na caravana da morte chamada de Holocausto. E, o mais terrível de tudo,  Arendt percebeu que não havia nada de diabólico nas atitudes nazistas que levaram ao genocídio do povo judeu. Todos os que executaram as ordens tenebrosas  que exterminariam  pura e simplesmente  mais de seis milhões de vidas, nos campos de concentração, eram cidadãos comuns, meros burocratas que estavam tão-somente cumprindo ordens. Muitos que se dedicavam a suas famílias, beijavam seus filhos, batiam continência para a bandeira, cantavam hinos de glória, rezavam em cultos e missas e, durante o trabalho, sem nenhum sentimento de culpa, acendiam os fornos crematórios e liberavam o Zyklon B para a Solução Final. A constatação de Arendt é cruelmente perturbadora, exatamente por isso. O impensável que aconteceu não se deveu à maldade de um punhado de pessoas ou de alguns grupos extremistas, brotou de pessoas perfeitamente comuns, dessas que a gente encontra todo dia no Supermercado e que, submetidas a condições de mando, a alguns discursos de lavagem cerebral, como robôs , executam os mais vis atos, dignos das aves de rapina e dos chacais. Ou seja, Arendt deixou claro que tudo o que acontecera no Holocausto, não tinha sido uma coisa contingencial, dependente da encarnação diabólica de alguns, o que ela chamou de Banalidade do Mal.  A bomba, meus amigos, continua armada. Depende , segundo ela, de um vácuo no pensamento crítico e, como dizia Gramsci: O Mundo Velho agoniza e o Mundo Novo tarda e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros.

                                               Hoje, então, com Mídia de Massa, com a comunicação que não mais tem fronteiras, com filtros impossíveis de separar o trigo, do joio e das escumalhas, onde a informação e a contrainformação já andam juntas e de mãos atadas, as possibilidades  se multiplicam. As ordens vêm difusas, de bocas que já não identificamos. O certo e o errado vêm ficando cada vez mais relativos. Vemos, no mundo todo, o crescimento de grupos extremistas, defendendo os temas mais anticivilatórios possíveis. Há pouco tentamos nos livrar, no Brasil, de um governo antidemocrático, defensor de pautas que já tinham sido execradas pelos Neandertais.  E a Banalidade do Mal pôs , novamente a cabeça de fora, com o genocídio programado do povo Ianomâni. Mais de quinhentas crianças mortas, deliberadamente, por inanição e incúria governamental.  As imagens dantescas são quase que uma reprodução das que foram tiradas oito décadas atrás nos campos de Auschwitz e Dachau. Os responsáveis diretos são aqueles mesmos burocratas que esperneiam o nome de um Deus, com livros sagrados debaixo do braço, defendendo a pureza da raça branca e um território que a só eles acham que pertence. Não têm qualquer sentimento de culpa, se acham certos, corretos e em missão divina. Acreditam que aqui estão para redimir o país !

                                               A bomba vai continuar armada, mas precisa que o pavio seja arrancado perenemente. Antes que o estopim seja aceso mais uma vez. E é preciso levar os Hitlers da vez para Nuremberg, afastá-los do convívio da Civilização. Os crimes cometidos não foram contra  os Judeus e os Ianomânis, são crimes contra a Raça Humana, contra a Humanidade, que nos jogam, novamente, na vala comum da irracionalidade.

Recife, 29/01/2023

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Bimini

 


“Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo”.

Olavo Bilac

 

                        Talvez seja o mais aterrador de todos nossos enigmas humanos.  Aquele que angustia o homem desde as cavernas e que terminou por gerar incontáveis mitos e seus puxadinhos : as religiões. O enigma da Esfinge é esse e, independentemente de tua resposta, certa ou errada, ele sempre te devorará. A despeito  de crenças, fatores econômicos, sociais,  étnicos, de gênero, qualquer pessoa tem o direito de degustar apenas uma determinada fatia do bolo imenso do tempo. Viemos de um acaso totalmente desconhecido e, passados alguns anos, retornamos para a substância amorfa, inicial de onde proviemos. Diante desta perspectiva irremissível e difícil de digerir, postamo-nos a buscar saídas para a extinção certa e inflexível. A Ciência conseguiu esticar os anos de sobrevivência com novos medicamentos e tecnologia. A cirurgia plástica tenta maquiar o mofo dos anos, melhorando as aparências, como se apresentasse-nos a fonte de Ponce De Léon e sua Ilha de Bimini. Por sua vez, os místicos construíram outras dimensões possíveis para depois do extermínio, separaram-nos em corpo e alma, abrindo a possibilidade de um espírito  imune ao desparecimento e, em alguns casos, até à contingência de retorno,  já em outro invólucro, numa espécie de reciclagem. E alguns povos até tentaram preservar o corpo com processo de mumificação, na vã ilusão que o pó não voltaria ao pó e que a casca, como um pupa, serviria para outras metamorfoses.

                        A realidade, no entanto, é crua e difícil de engolir. Bonitos e feios, gordos e magras, humildes e orgulhosos,  ricos e pobres, nobres ou plebeus, crentes ou ateus, no final do caminho nossos pós irão se misturar num só amálgama, impossível de se separar. No condomínio final que todos habitaremos não haverá muita diferença nas dependências e no conforto, seremos parte de uma mesma substância chamada Nada, aquela mesma que deu origem, um dia, a todo Universo. Diante da inevitabilidade  do fim, postamo-nos, como os Egípcios e os Incas, na luta inglória contra o esquecimento. Já que a morte é inevitável e contamos, com certeza, apenas, deste ínfimo segundo que temos às mãos, pretendemos que ao menos nosso nome e nossa trajetória não sejam esquecidos. Outra leda batalha perdida !  Alguns constroem obras faraônicas como as pirâmides, outros escrevem livros fabulosos, pintam quadros inesquecíveis e esculpem esculturas invejáveis, escrevem poemas e romances singulares, compõem músicas quase que divinas. Buscam quebrar, assim, a regra básica da vida limitada em anos e se perpetuarem através de suas realizações. Outra enorme falácia que nossa pretensão nos prega! O esquecimento total e irrestrito é uma regra imutável da existência. Seremos lembrados, na melhor das hipóteses, por alguns da nossa geração, por filhos e, no máximo, netos.  A partir daí, alguns, talvez, recordarão  um nome, não mais de uma pessoa com todas suas qualidades, defeitos e singularidades. Seremos, com sorte, tão-somente um totem, um simulacro. Podem permanecer algumas das nossas obras, se tocarem, com sua mágica, outras gerações que virão. Junto, se afortunados, ficará nosso nome numa rua, num prédio, numa placa, numa universidade, numa biblioteca, num Centro Cultural, num museu. Apenas um nome frio, junto com uma biografia insípida, uma mera paródia e arremedo daquilo que um dia fomos. Permanecerá, no máximo, uma caricatura, um busto numa praça como depósito para excremento de pombos. Só.

                        As duas extremidades da linha da vida, simplesmente, não nos pertencem: o berço e o caixão. Recebemos como uma dádiva. O  intervalo esse, sim, é todo nosso, mas, mesmo assim, não temos nenhum controle sobre sua extensão. Numa travessia sempre tão cheia de altos e baixos, de retas e curvas, nunca sabemos em que esquina a velha da foiçona nos aguarda. Cabe-nos , todo dia, degustar a parte da estrada que nos é oferecida, como se fosse a última estação. Esse trechinho é tudo que nos cabe e, claro, a memória das etapas já percorridas que podem nos embalar as horas da viagem, mas que a só nós interessa e,  conosco,  ela evaporará quando dobrarmos a extrema curva do caminho extremo.

 

Crato, 20/01/23

                         

sábado, 7 de janeiro de 2023

Poder, memória e esquecimento

 

                                                                       A luta do homem

contra o poder

 é a luta da memória

 contra o esquecimento.

                                           Milan Kundera

 

                        Quem observa de longe a Chapada do Araripe banha-se , facilmente, no verde majestoso e, tem a íntima impressão, que ali se encontra ela postada e imperial desde sempre. Nem percebemos que foram necessários milhares de anos para que se sobrepusessem camadas sedimentares, pouco a pouco, numa deposição lenta e calculada, para que a Chapada pudesse ser vista hoje por nós em sua plena grandiosidade. Assim é na vida, nada surge do nada, por geração espontânea. O topo do edifício onde você consegue contemplar toda a paisagem circundante, precisou ser construída desde os alicerces, etapa por etapa, andar por andar. O novo é tecido com fios do passado.

                        Antes, porém, que  as sucessivas camadas que precisaram ser justapostas  sejam jogadas no sótão da história, gostaria de contar um pouco   da construção paulatina das fases que precederam à suntuosidade do prédio. O Rádio no Brasil tem 100 anos, o do Crato 70. A primeira rádio cearense a Ceará Rádio Clube foi fundada por um libanês radicado em Crato, em 1934. São muitos e muitos personagens que ajudaram a construir o espigão.  O Programa de Rádio “Saúde Direito de Todos” é apresentado desde 1985, na Educadora, aos sábados, no horário de 11 às 12 h.  Está, pois, há 37 anos no ar e, há pouco, completou mais de 2000 apresentações na emissora. O programa precedeu a instalação do SUS e fez-se um importante elo na luta local pelos direitos amplos à saúde que viriam, como conquista,  com a Constituição de 1988. Foi uma iniciativa da então  APROSC – Associação dos Profissionais de Saúde de Crato -- , continuando suas atividades mesmo depois da desarticulação da entidade classista. Vários profissionais do Rádio estiveram envolvidos na produção do programa como Coracy Rocha, J. David, Jesus Almeida, Almeida Jr., Nacélio Aguiar, Roberto Barreto, Heron Aquino, Seu Zezé. Sem atores tão importantes teria sido impossível manter o programa por tantos e tantos anos. Contamos ainda com a colaboração de incontáveis profissionais de saúde de Crato, nas suas mais diversas especialidades, sempre prontos a nos ajudar na programação semanal. Durante o período dos surtos de Dengue, Cólera e, ultimamente, a pandemia da  Covid-19, acreditamos que o Saúde Direito de Todos contribuiu, sobremaneira, na luta contra as moléstias, com a preciosa arma da Informação. Fiz-me seu principal apresentador, nos últimos trinta anos. Contamos, sempre com a cooperação valiosa da direção da R.E.C. nas suas mais diversas fases: Pe Gonçalo, Geraldo Correia, Pe Joaquim Ivo, Pe Teodósio Nunes, D. Vicente Matos, D. Newton Gurgel, D. Gilberto Pastana. E, o mais relevante de tudo: os nossos ouvintes, nas suas mais variadas fases, sem eles e suas participações o Saúde direito de Todos não teria qualquer significado. A eles meu abraço de despedida e meus agradecimentos. Desde seus primórdios, o Programa foi apresentado de forma voluntária, sempre imaginei que a Informação em Saúde fazia parte indissociável da minha atividade médica e era apenas uma pequena retribuição que eu dava à cidade e ao povo cratense pelo muito que sempre me deram. Coube sempre à emissora buscar meios publicitários para cobrir os gastos da produção, o que sempre pareceu pouco penoso, principalmente por conta da efervescência do setor saúde na região, com hospitais, laboratórios, farmácias, clínicas, médicos e paramédicos, lojas de materiais hospitalares e odontológicos. Apesar de semanal,  o Saúde sempre teve uma audiência expressiva o que talvez explique, em parte, suas credibilidade e longevidade.

                                    Por outro lado, desde 1996  pus-me a escrever a crônica semanal do sábado, veiculada de manhã por Antonio Vicelmo e, nos últimos anos, reprisada, no noticiário  do meio dia, por Fábio Lemos. Os textos fizeram parte do diário de bordo da cidade, nos últimos vinte e seis anos. Alguns poéticos, outros irreverentes, outros reflexivos, muitos com caráter político , críticos às nossas eternas chagas nacionais e municipais. Os textos redundaram em dois dos meus livros ( “Matozinho vai à Guerra” e “A Delicada Trama do Labirinto”).  A bem da verdade, como laico, preciso firmar que nunca sofri qualquer pressão editorial da Rádio, nem censura. Sempre tive inteira liberdade de escolher os temas que acreditava serem mais pertinentes.

                            Há pouco soubemos da reestruturação da Rádio Educadora do Cariri, agora com nova administração na Diocese e na emissora. Sem informações mais claras e precisas sobre os novos rumos da grade de programação e com a dispensa de tradicionais apresentadores, entendemos, com o fito de evitar polêmicas outras e mal-estar, ser de bom alvitre devolver à Rádio Educadora os horários que gentilmente nos foram cedidos por tão largo período. Entendemos que os tempos são outros e as instituições precisam ajustar-se à mutabilidade incessante da vida.  Seguimos o Eclesiastes : “ Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou...” Chegados os tempos da poda e da broca, esperamos que os novos galhos renasçam ao menos com o vigor de outrora.  Agradecemos, penhoradamente, a parceria de tantos e tantos anos. Não há ressentimentos de nossa parte, paira-nos a tranquilidade do dever cumprido.  Fazemos votos de que a querida Rádio Educadora do Cariri continue sua missão de mais de seis décadas de informar, educar, evangelizar e alegrar o povo Kariri.

Crato, 07 Janeiro, 2023