sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Tricô

 

Cristovaldo , reconheciam-no como uma pessoa do mais fino trato. Educado, decente, sensato, mais equilibrado do que um malabarista de circo. Nunca se soube de um desvio na retilínea estrada que traçou para sua vida. Dono de um armarinho, passou toda a vida negociando com linhas, bordados, elásticos, rendas,  novelos de lãs, botões, aviamentos.  Talvez, por isso -- quem sabe? – é que se fez  tão retilíneo nas suas atitudes, aprendeu a tricotar a vida, manipulando cuidadosamente a agulha do cotidiano, presa aos delicados fios das relações humanas.     E assim foi tocando a vida, no  Armarinho Ponto em Cruz, desde rapazinho. Mesmo quando caiu a idade e percebeu que o bordado da sua existência já começava a desfazer-se, puxado o fio pela mão do tempo, preferiu ir ficando na loja, agora já tocada mais pelos filhos. Uma forma de passar as horas e enganar a morte que, segundo ele, quando o procurasse em casa, não o encontraria: vou passar um pitu na velha da foiçona !

                        Depois dos oitenta e cinco, ainda mantinha o velho Cristo, como era carinhosamente chamado, uma vitalidade invejável. Parecia uma Timbaúba de brejo.  A família notou apenas uma discreta alteração no comportamento . Ficara muito mais franco e sincero. Talvez, vendo a estrada mais curta e estreita à frente, tivesse resolvido não gastar mais vela com defunto ruim. Mantinha-se amável, como sempre, mas já não tinha papas na língua, o freio de mão ficara definitivamente avariado. Até pensaram os filhos que se tratava de algum sintoma prematuro de demência, mas consultado pelo Neuro, este afastou a possibilidade de Cristo está saltando de marcha, ao menos naquele instante. Nas conversas com familiares, passou a revelar segredos cabeludos da família. Aqueles guardados a sete chaves geração após geração.

                        --“Vovô  vivia maritalmente com a cozinheira da casa      , Guadalupe e, inclusive Maricota, filha dela, saiu da braguilha de vovô... “ Tia Mariquinha, que era morcego de igreja, como vocês sabem, tinha um xodó de sacristia com o Padre Belarmino”.

                        Na morte de uma das irmãs do velho Cristovaldo ele consolando a filha dela, disse : “Sua mãe , minha filha, era boa demais, caridosa, amiga de todos, um amor de pessoa,  mas tinha um defeito danado: era fofoqueira pra mulesta. Não deve ter ido pro céu direto, não, precisa  pagar uma franquia: deve quarar pelo menos uns dez anos no purgatório...”

                        Aquela sinceridade súbita deixou os filhos em desespero. Nem percebiam que infância e velhice são extremidades que se tocam e o velho Cristo apenas retornava à franqueza típica  das crianças, ainda não contaminadas pela hipocrisia que é o filtro e  a cola final das relações humanas.

                        Semana passada, o filho, Juarez, procurou o pai para dar uma daquelas notícias que, com o passar dos anos, vão ficando cada vez mais frequentes. A esposa de Feliciano, irmão mais velho de Cristo,    batera as botas. Coisa assim , como diria Vinicius, de repente, não mais que de repente. Juarez constrangido mostrou sua preocupação com o tio, agora viúvo e idoso: Como reagiria à falta da companheira. Cristovaldo  abriu a caixa de ferramentas:

                        --- Ju , meu filho, essa notícia tem um lado bom, apesar de falar em morte. Nunca existiu nessa mundo uma mulher mais chata do que Eleonora. Pior do que um porre de Mazile com tira gosto de doce de Gergelim.  Para  Felim, aquilo foi um descarrego. Deve estar procurando quem foi o bendito do juiz que assinou seu alvará se soltura!

                        Juarez , agoniado com a possibilidade do vazamento da conversa, saiu aflito e pediu ao pai, pelo amor do outro Cristo, para nunca mais repetir aquela “arisia”. À tarde ligou para ele. Levava  informações sobre o velório, torcendo para que ele  não inventasse de comparecer.

                        --- Alô papai ! Tudo bem ?

                        Do outro lado um silêncio sepulcral.

                        --- É para avisar que o velório de tia Leo vai ser hoje a partir faz 17 h e o enterro amanhã às 10.  O médico acha que é melhor o senhor não comparecer. Eu aviso à família !

                        --- Ah, meu filho ! Que alívio ! Graças ao bom Deus! Pensei que você tinha ligado para dar uma notícia pior. Que a triste da Eleonora tinha era  ressuscitado ! E no primeiro dia! Nem o outro Cristo ! Ainda bem ! Ave !

Crato, 15/12/2023

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Manga Rosa

 


O
perfume invadiu o carro  como um déspota. Não fez mesuras e nem pediu licença. Talvez tangido pelo sol escaldante, a transferência  fez-se sem delongas, intempestivamente. Um cheiro adocicado e voluptuoso , desses que enchem a boca em feitio de olho d ´água e, sabe-se lá porque, vem untado de laivos de infância,  tomou  de assalto o velho Opala, como uma invasão bárbara. De volta do trabalho, em hora de almoço, aquele aroma remetia, imediatamente, a fruta ou beijo roubados que , enigmaticamente, ganham um magnetismo e um gosto especiais. Pelo espelho retrovisor conseguiu identificar o pacotinho em papel de supermercado colocado no banco de trás e, só então, lembrou:  uma cliente lhe pedira a chave e ali depositara o presente, um saco de mangas rosa.  A fragrância que se assenhoreara  do carro tinha ali a sua fonte. E, como num caleidoscópio, o odor inebriante o teletransportou para os jardins floridos da sua meninice.  Os sapotis e mangas afanados das galhas pendentes das fruteiras de Seu Milão, um carpinteiro vizinho à casa dos seus pais. Tiradas dos galhos, sob a adrenalina do furto, os frutos cobriam-se de um mel especial , como que tocados por varas de condão. Aquele sabor que, nunca mais nos dias futuros, conseguiria sentir nas frutas agora industrializadas dos supermercados: coloridas, graúdas, vistosas , mas insulsas. Hoje, como num passo de mágica, retornara tudo montado no bólido adocicado da manga rosa. Como num filme, sem fechar os olhos, projetou-se à sua frente, na tela do mundo que se estendia para lá da transparência do para-brisas, o bulício da meninada. À época, antes dos carros, era a verdadeira proprietária das ruas. Subindo nas fruteiras com a velocidade de símios, colhendo frutos dos pomares : sim, as casas ainda tinham quintais e as fruteiras também se  consideravam de domínio público, como a vida. Agora as pequeninas cercas haviam se transformado em muros altos e intransponíveis. As casas,  muitas se tinham resumido a apartamentos pequenos, os passeios já não eram o parlatório das residências. A cidade se  reduzira aos bunkers de cada família, a calçada e a pracinha haviam sido transladadas para as Redes Sociais. A felicidade possível passou a residir nas prateleiras das lojas de departamentos, segundo informações havia se mudado de mala e cuia para os shoppings.

                        O carro impregnara-se daqueles eflúvios dulcificados da manga rosa que lhe remetiam a tempos mais sóbrios, singelos e despojados. A ventura , sem trâmites, oferecia-se como uma dádiva. Bastava esticar a mão e colhê-la , madura, pura e saborosa, pendente de um galho baixinho da fruteira do jardim. Parou o carro em frente à casa e retirou, cuidadosamente, o pacote de mangas, como se se tratasse de uma urna sagrada que guardasse as cinzas de um tempo risonho levado à cremação.  

Crato, 02/12/2023