sexta-feira, 26 de maio de 2023

A fofoca nossa de cada dia

 

 

                                                                                                  J. FLÁVIO VIEIRA

                               A  fofoca é uma espécie de rudimento do jornalismo.  O fofoqueiro tem que ter faro para notícia, precisa de fontes seguras e confiáveis, mas não necessariamente carecem ser tão amantes da verdade.  É que a notícia , para ser mais interessante e palatável, necessita ser banhada de ficção. Um aumentozinho daqui, uma exagero sim daLI funcionam como pequi em baião de dois.  E o pessoal da fofoca , como seus colegas do jornalismo, tendem , também, a ter lá suas especialidades. Alguns imitam os repórteres e partem à cata da notícia. Para tanto utilizam lá suas técnicas, contam alguma inconfidência de preferência mais cabeluda e, depois, com clima mais leve, começam a escarafunchar outras: Como vai aquele teu irmão que se separou ? Aquele teu tio já terminou o tratamento do câncer?  Tua irmã ainda tá vivendo com aquele pistoleiro? Há ainda o pessoal da fofoca que se especializa na difusão, imitam os apresentadores de programas de rádio e TV. Têm , em geral, voz de camelô, gestos teatrais e adoram as rodinhas de bar e das praças, os aglomerados de mercados , as bodegas Sem falar nos fofoqueiros investigativos, aqueles que escutam as conversas telefônicas e conseguem completar o diálogo, mesmo sem ouvir a voz que se comunica do outro lado da linha. Eram, também, especialistas, num tempo,    em abrir cartas sob o vapor da panela, a fim de curiar as informações bem antes dos destinatários e, voltar a fechar as correspondências, cuidadosamente,  e devolvê-las à Caixa Postal. Hoje , com a modernidade, esmiúçam e-mails e redes sociais, fuçam mensagens do WhatsApp. Há, também, os especialistas em área de família, pesquisando separações, defloramentos,  traições , namoros , desvios de conduta. E os que se detêm na esfera policial: Rebus, BO´s, Arranca-rabos, roubos. Sem falar nos interessados pelo setor funerário, levantando , com indisfarçado prazer,  o esticamento de canela de conhecidos e, preferencialmente, figuras importantes.  E, claro, existem os Clínico Gerais.

                        Boa parte da vezes, a fofoca  é contada com o simples  prazer de um “Furo” jornalístico, apenas como novidade, sem o sentimento de prejudicar o outro. Mas, como na área de comunicação, existe também a imprensa marrom, principalmente em tempos de eleições,  aí colocam-se lentes de aumento nas notícias e pululam as fakenews. Existe uma regra tão universal como a teoria da gravidade: a fofoca é inversamente proporcional ao tamanho da cidade. Quanto menor a vila mais a fofoca impera, talvez porque inexistam outros veículos de mídia e outras formas de lazer.

                        Há alguns anos se dizia que no Crato, quem quisesse se estabelecer comercialmente devia fugir, como o satanás do catecismo, da tentação de fundar uma rádio, um jornal  ou uma empresa de Câmaras de Segurança. Era falência certa, impossível enfrentar  a concorrência dos fofoqueiros de plantão que já exerciam essa função com muito mais velocidade e competência.  Mas isso também pode ser fofoca, né?

Crato, 26/05/23

                       

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Geleia com Pimenta



J. Flávio Vieira

 

                         Nesta semana que antecedeu o Dia das Mães, recebi, de um parente de Várzea Alegre, um convite típico das terras de Papai Raimundo. Uma foto de lambe-lambe, batida nos anos  20, com o meu bisavô paterno André Duarte, minha bisavó Balbina e seus dez filhos, no Sítio Mocotó de que eram proprietários. O convite dizia do centenário da foto histórica e marca, para 26 de agosto, a repetição da mesma fotografia agora com os incontáveis descendentes do querido casal. Lá estarei na comemoração histórica, brindando ao milagre da vida e da multiplicação dos pães e dos peixes.

                        Conheci apenas uma bisavó e este, sei, é um privilégio de poucos. Era avó da minha mãe e morava no Sítio Bocaina aqui em Crato, no Belmonte. Atarracada, nariz proeminente, doce com os netos, não escondia, no entanto, uma personalidade fortíssima e dominadora. Conhecida como Madrinha Dona, construiu uma das primeiras piscinas no pé da serra, antes dos clubes serranos e era o playgound da meninada da família. Era já viúva por duas vezes. Fôra deserdada quando do casamento da filha única e teve que recomeçar a vida do zero, com o segundo marido, tocando uma pequena gleba de terra que adquirira a duras penas. Uma matrona que prescindia de maridos para o sustendo, mandona, administrava a fazenda e o engenho com mão de ferro. Os dois esposos que possuiu, segundo consta,   tiveram que rezar por sua cartilha ou correriam o risco de serem exemplados por palmatória. Lembro apenas de uma tia , Maria Zélia, que parece ter herdado a mesma fortaleza e resiliência de Madrinha Dona.

                        Sei no entanto, das histórias da outra bisavó ,  Balbina Raulina, Mãe Dondon, aquela que aparece na fotinha que terá sua repetição histórica em agosto. Sistemática também, de pouca conversa, ao contrário de Vô André, meu pai dizia que nunca a viu beijar um neto. Tinha perto da cadeira, onde sentava, uma cumbuca em que guardava macaúbas maduras e que distribuía com a meninada quando lhe tomavam a benção. Administrava o Mocotó com mão de ferro. Duas tias minhas, irmãs do meu pai, puxaram à avó: Laís e uma outra Balbina. O temperamento forte lhes ficou como herança. Lembrei de Madrinha Dona e Mãe Dondon neste Dia das Mães. Num tempo em que o destino das maatriarcas era a submissão, o sim-senhor! , uma mera fábrica de fazer e criar filhos, bom saber dessas mulheres fortes, insubmissas, matronas que mostravam, claramente, que a sociedade sempre foi muito mais matriarcal do que patriarcal como sempre se pensou. Essa característica sempre foi bem mais velada, com o feminino trabalhando, estrategicamente, nas entrelinhas, na manha, com jogos e artifícios de sensualidade. Mas havia, também, as guerreiras como Madrinha Dona , Mãe Dondon, Bárbara, Fideralina que não precisavam esconder sua força e seu poder de mando. Os beijos e afagos que não conseguimos arrancar delas recebemos multiplicados  em lições de  insubmissão, de enfrentamento das vicissitudes, de entendimento  de que a vassalagem, a subserviência, a servidão são atributos das almas menores.  Ficamos impregnados com seu sabor de geleia com pimenta.

Crato, 19/05/23          

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Música Incidental para o Sonho

 

J. Flávio Vieira

 

“Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão

Todo artista tem de ir aonde o povo está

Se foi assim, assim será

Cantando me desfaço e não me canso

De viver nem de cantar”     

Milton Nascimento / Fernando Brant

 

                               Uma das canções mais belas de Milton, com letra de Fernando Brant,   fala sobre a magia da profissão itinerante dos cantores e instrumentistas, morando nas estradas do mundo e levando o enlevo da música ao coração do seu povo. Fascinante esta trajetória das bandas, emoldurando os bailes da vida, cifrando a trilha sonora de muitas gerações de pessoas, criando, cuidadosamente o clima romântico para a paquera, para o namoro, para a paixão. Cada um de nós tem em si a trilha pessoal do filme da nossa vida, a dos momentos mais amorosos, dos mais tristes, dos mais alegres e felizes. Ouvir tocar uma canção no rádio ou no celular nos remete, imediatamente, como num bólido, para aquele instante único e eterno vivenciado e que nos acompanha ao longo de toda existência: uma dança , um beijo, uma perda, um desejo, um fascínio, uma farra. Houve um momento, menos tecnológico, em que as festas, os bailes, as tertúlias , os saraus, vesperais e matinês dependiam diretamente das bandas e dos seus instrumentistas. Os Conjuntos Musicais viviam comendo a poeira da estrada, em carros improvisados, por estradas  esburacadas, carregando seus instrumentos e amplificadores precários  de vila em vila, de arrabalde em arrabalde: tinham que ir aonde o povo estava. E tocavam nas praças, nas palhoças, nos cinemas, em pequenos clubes, em bares, em casas, em sítios, em latadas, onde houvesse público ali eles estavam, estimulados por pequenos cachês que mal cobriam os custos da viagem. E , como os palhaços dos circos, os especialistas em itinerância, deviam estar sempre alegres, com alta energia, com som leve e solto, independentemente do estado de espírito de carregassem. A amargura e a tristeza, os problemas pessoais tinham que ser deixados nas pensões de beira de estrada onde se arranchavam, não podiam subir ao palco.

                        Esta semana o Cariri perdeu um desses monstros sagrados das estradas da vida e da magia dos palcos improvisados:  Hugo Linard.  Tecladista inspirado, músico intuitivo desde a mais tenra infância, ele encabeçou as bandas mais seminais da nossa região. Eclético, tocava todos os ritmos, passeava galhardamente pelo clássico, pelo Nordestino, pela MPB, pelo frevo,  pelo música latina, francesa, italiana, pelo blues e pelo jazz , sem quaisquer sobressaltos. Apenas não condescendia com o mal gosto. Tê-lo no palco era a certeza absoluta de que teríamos poesia em movimento. Hugo carregava consigo um compêndio inteiro de histórias desse safari sonoro de setenta anos pelas veredas do mundo, muito se perdeu quando, nesta semana, as peças do teclado emudeceram. Levando uma roupa encharcada e uma alma repleta de chão, o artista deixa uma obra imorredoura: criou a música incidental propícia à paixão, à sedução e ao afeto dos corações caririenses. Quantos olhares apaixonados propiciou? Quantos beijos ardentes favoreceu? Quantos amassos facultou , entre uma e outra nota, entre um e outro acorde, entre uma e outra frase musical escolhidos, cuidadosamente,  para a construção do clima necessário a meteorologia do romance?

                        O céu agora perderá aquela morosidade e silêncio etéreos, Hugo vai mostrar que  só com música  um lugar pode merecer  o nome de paraíso.

Crato, 12 /05/2023