quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Bissexto

Finalzinho de ano existe uma regra imutável e previsível para os próximos meses. Promessas de mudanças nos hábitos de vida ! Uns se comprometem a deixar o cigarro, outros encetam dietas rigorossíssimas, alguns afirmam como certo o começo do Cooper pela manhã. Ano novo ,vida nova ! Após o ribombar dos fogos do Reveillon, vêem-se todos assoberbados por tarefas não tão fáceis de cumprir e que geralmente começam a ficar menos regulares a partir do Carnaval e , o mais das vezes, não têm forças nas canelas para alcançar a Semana Santa.
No mês passado, Eufrázio, um contador de uma pequena loja de Secos & Molhados , nas comemorações do Natal da firma, firmou os pés nos seus propósitos. Os colegas de repartição comentaram depois que o nosso contabilista exagerou um pouco na dose de transformação. É que o nosso comerciário sempre fora um operário padrão, sério, compenetrado, desses que vivem eternamente para o trabalho. Possuía ainda uma pacata vida familiar, casado com Dona Nair Loreto, uma senhora temente a Deus e beata de carteirinha. Tinha dois filhos, já casados, que moravam ou sobreviviam para as bandas de São Paulo. Eufrázio não tinha vícios, vivia nos Encontros de Casais com Cristo e até estudava para formar-se diácono. Era preceptor dos Cursos de noivos na Igreja e um dos membros mais convictos da Ordem do Santíssimo. Já entrado nos sessenta, parece que ia plantando mais nas roças da vida eterna do que nos pomares terrestres. Pois bem, a transformação que ele realizou no último Reveillon , assim, pegou todos de surpresa. Quem lá diabos poderia imaginar uma reviravolta daquelas ? Sem qualquer explicação mais contundente, nas comemorações do Natal, um Eufrázio um pouco mais loquaz do que o habitual desejou os melhores votos para todos e vaticinou aquilo que parecia ser mais uma daquelas temporárias e fugazes promessas de fim de ano:
--- Até o presente momento, meus amigos, não vivi, apenas trabalhei como um burro de carga para os outros. Até parece que vim à terra a trabalho e não a passeio. A partir de agora vou montar no alazão da minha vida e tomar as rédeas do meu destino !
Depois daquele dia, seguiu à risca a promessa natalina. Pediu demissão do emprego que o poria em pijama de aposentado nos próximos cinco anos. Largou a mulher, mudou de casa e de cidade. Soube-se depois que se transferira para Andaraí, na Chapada Diamantina, onde se unira a um rapazinho, design gráfico, e ali haviam instalado o Restaurante de Comida Natural: “Verde que te quero Ver-te”. Abandonou também as hostes católicas e agora freqüentava uma comunidade alternativa lá no “Vale do Capão” . O outrora sedentário Eufrázio agora trabalhava, nas horas vagas, como guia turístico, nas sinuosas trilhas do Vale do Sincorá. Ao invés da opa do Santíssimo envergava duas recentes e imensas tatuagens: um dragão vermelho e de unhas afiadíssimas nas costas e um carismático Fidel Castro no ombro esquerdo, além de um brinquinho discreto na orelha direita.
Alguns amigos ,que em viagem depois o visitaram, trouxeram a novidade de todas as imprevisíveis mudanças ocorridas no nosso contador. A cidade em peso o criticou e comentava que o homem tinha endoidado de vez, ninguém perdoava a sua coragem e, pior, todos abominavam a constatação de que os que o visitaram , liam uma incontestável felicidade nos seus olhos. A cidade impossibilitada, pela distância, de assassiná-lo em vida, resolveu encaminhar um abaixo assinado para Eufrázio, uma espécie de execração pública, condenando-o por sua atitude considerada irresponsável e vulgar. O contador respondeu com um pequeno bilhetinho que foi lido na Câmara de Vereadores.
--- Infelizmente não posso fazê-los felizes. Cada um é o artífice da sua própria felicidade. Ninguém pode viver a vida pelo outro e nesta viagem a passagem é apenas de ida. Saiam do casulo das suas vidinhas estranguladas e vivam ! Quanto a mim as mudanças prometidas para este ano apenas começaram e lembrem : este ano, graças a Deus, é bissexto !

Outubro / 08

domingo, 19 de dezembro de 2010

Às chuteiras dependuradas


“Qualquer que seja a arquitetura dum edifício,
seus escombros obedecerão ao estilo barroco.”
Aníbal Machado

Imagino como vocês se sente neste momento algo turbulento. Aquele instante porque se sonhou por tantos e tantos anos, mas que ao se aproximar traz consigo sua mista carga de alegria, ansiedade, conforto e apreensão. Como se de repente, trocássemos a beca pelo pijama, a cueca pela fralda, o paletó pela bermuda, o livro pelo baralho, a cadeira de mestre pela de balanço. Aflige-nos, quem sabe, o fundo da nossa alma, perceber este momento justamente como o soletrar dos primeiros arpejos do alfabeto da catástrofe previsto por Machado. Pois eis-me aqui, pronto a demonstrar que este instante é de encontro e não de diáspora, de advento e não de partida. Até porque assim o são todos os segundos desta vida breve, desde a canção de ninar até à incelença.
A frase do Aníbal é lapidar. Sonhos, anseios, aspirações, desejos vão pouco a pouco sendo triturados, vida afora, pela ampulheta do tempo. Por mais modernoso que se apresente o edifício que, cuidadosamente projetamos, após a inevitável implosão --- aquele big-bang que fechará o ciclo daquele primeiro há bilhões de anos atrás— os espólios que restarão obedecerão, necessariamente ao vetusto , seminal e kitsch estilo barroco. E sei que é essa reflexão crua, inexorável, catastrófica que nos enevoa os mais recônditos sótãos do espírito, no momento em que vemos correr uma das cortinas da existência. De que adiantou projetar o prédio em estilo pós-moderno, se mal levantamos as primeiras paredes, as colunas e pilastras vêm abaixo e o amálgama de concreto, espalhado no solo, nos fita como a Sífiso , com olhos de caos, com retinas de já-se-foi ? Hoje, sei que da zona mais abissal do seu âmago, você se faz esta pergunta, sentindo-se uma espécie de quebra-queixo em tempos de Nutella, de videocassete em época de blue-ray. Valeu a pena tudo ? Os anos difíceis, o estudo contínuo, a paternidade fisicamente ausente, os cargos inúmeros assumidos, a convivência ofídica de alguns companheiros ?Valeu a pena ?
Postado em meio ao amontoado de escombros, nos perguntamos: é esse o destino final do nosso projeto de Taj Mahal ? Pois bem, meu cato, não é ! E a conclusão me parece lógica. Nem precisa-se esperar a justiça derradeira recorrendo a forças superiores ou à possibilidade de outras encarnações /edificações. A importância do seu projeto arquitetônico é inquestionável por incontáveis motivos. Primeiro, é justamente dos entulhos dos nossos edifícios que as gerações que virão, num infinito processo de reciclagem, edificarão, em moto-contínuo, os seus prédios. A qualidade do que será construído no porvir depende umbilicalmente da qualidade do material com que erguemos as nossas paredes. Depois, o mais importante não é o monumento que pretendemos levantar e a que , inevitavelmente, jamais daremos termo. Contam-se mais: nossa relação com os outros operários, a paisagem que se estenderá à nossa frente à medida que ascendemos. Na verdade edificamos uma casa que jamais habitaremos : moramos, vivemos, durante toda a obra, nos andaimes.
Este momento, pois, é de encontro, nele todos os operários se reúnem na certeza de que não foi um edifício que ruiu, mas que uma construção precisa ser recomeçada e o material disponível é da melhor qualidade. E, se a sua frente, parece se fechar uma porta, é preciso levantar os olhos e ver a quantidade imensa de janelas abertas para o infinito. O carrasco disciplinador dos filhos hoje se transforma no bobo da corte dos netos; se alguns músculos fraquejam, os neurônios funcionam de forma trifásica; a vida poderá até não parecer tão azul, mas já existem disponíveis uns comprimidinhos azuis que têm a capacidade de reazulá-la; o violão poderá passar de simples artefato de decoração a uma fábrica de sons e de sonhos. E quando alguém vier com aquela balela de que a vida é uma dureza; você poderá sorrir lembrando que é justamente dureza aquilo que você mais almeja.
Bem-vindo ao nosso encontro! Bem-vindo à construção que hoje se inicia ! Grato pelo pelo cimento, pelo ferro, pela brita ! Grato pela esperança destilada em cada pá de cal e pela força de sentar o tijolo do efêmero com argamassa de eternidade ! Os futuros operários têm um cristal onde se espelhar! Você pode até imaginar que o espelho nesse momento se estilhaça, mas não custa lembrar que o poeta Mário Quintana já vaticinara : “os espelhos partidos têm muito mais luas”...


17/12/10

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Lennon

E lá se foram trinta anos ! Dá para imaginar uma avalanche de minutos e segundos dessas? Quase onze mil dias esvaíram-se, sem que ao menos percebêssemos, pelo angustiante canal da ampulheta! E parece que foi ontem! Mal tinha chegado em Crato, pronto a exercer minhas atividades médicas, quando a notícia me atropelou: assassinaram Lennon ! Aquilo parecia uma loucura, uma alucinação. Como ? Ele que, chegando em New York, desencadeara uma verdadeira batalha pacifista, que conclamara todos a derrubarem barreiras ideológicas, geográficas, étnicas, políticas, em nome de uma paz holística? Que se posicionara frontalmente contra a barbárie da Guerra do Vietnam? Como um delírio daqueles poderia ter acontecido? Lembro : meio absorto e tonto, naquele dezembro de 1980 ensaiei meu primeiro texto após a volta e o publiquei aqui mesmo na Rádio Educadora e no Jornal “A Ação”. O sonho ,para mim, só naquele exato momento é que tinha sido assassinado.
Certo que vinte anos depois perderíamos o George e aí, definitivamente, constatamos que caíra por terra um dos mais fortes desejos da minha geração, ver novamente reunidos “The Beatles”, após um dos mais trágicos dias da nossa história sentimental, aquele pavoroso 08 de Abril de 1970. A perda de Lennon, no entanto, nos feriu muito mais profundamente que o desaparecimento de Harrison. Um pouco por conta da forma violenta e imprevisível com que ocorreu . Um outro tanto , pela prematuridade com que lhe arrancou desse mundo turbulento , mal tendo ele tingido os primeiros fios de cabelo com as águas dos quarenta anos. Mas principalmente por conta importância artística de Lennon. Ele sempre representara o contestador, o revolucionário, o transgressor do Fabulous Four. Ringo sempre fora mais intimista, George o mais tranqüilo e espiritualizado e Paul o mais certinho . Lennon trouxera não só suas poesia e música, mas untara os Beatles de atitude. Na verdade ele saltava à nossa frente como o artista mais verdadeiro, aquele que carrega consigo não só a capacidade poético-musical, mas principalmente a potência transformadora. Todo o sonho acabou virando pesadelo naquele 08 de dezembro de 1980, na calçada do Dakota, defronte de um Central Park triste e estarrecido.
Neste mundo afeito a cangapés e bundas-canastras não tem sido promissor o destino dos pacifistas. Quantos outros tiveram fim semelhante ? Gandhi, Cristo,Chico Mendes, Zumbi, Zé Lourenço, Luther King ... Como compreender a alma humana :meio anjo-meio demônio, meio cordeiro-meio lobo? O que Chapman, na verdade, conseguiu dizimar naquela sangrenta noite de inverno? Acredito que feriu de morte a esperança nos destinos da raça humana. Como compreender a sanha iconoclasta de se destruir aquilo que mais se ama? Em troca de quê? Um registro nos livros de história? A possibilidade de escrever o nome eternamente junto daquele que mais se admira, mesmo através dos piores impulsos e dos meios mais abjetos? Qual o futuro desta sociedade consumista , onde todos são transformados num mesmo amálgama ,sem qualquer individualidade e a fama fugaz e efêmera é perseguida sem qualquer escrúpulo?
Trinta anos nos dão o distanciamento necessário para entender os ínvios caminhos pro que trilhamos. Em minha casa eu adoro os Beatles e sou seguido na minha adoração por meus filhos e minha neta: três gerações ! Como isso é possível? Hoje que os sucessos não têm qualquer durabilidade! Axé, Lambada, Pagode, Banda de Forró se sucedem e são engolidos rapidamente , digeridos e excretados para a fossa do esquecimento, numa velocidade estonteante. O que imprime eternidade à música dos Beatles, quarenta anos depois da dissolução da banda? Como os faraós ao construir as pirâmides, eles edificaram sua obra para a imortalidade, intuitivamente conseguiram imprimir uma impressionante atemporalidade às suas músicas. Esculpiram em aço , em tempos de modernidade líquida e gelatinosa. Após a separação, todos fizeram carreira solo sólida e brilhante, mas nem de longe conseguiram alcançar a refulgência da banda o que terminou provando um contra censo físico : a força resultante do grupo era infinitamente maior que a soma das diversas forças artísticas separadas.
Ao contrário do previsto, o Sonho não se dissipou naquele oito de abril de setenta e nem foi trucidado dez anos depois na calçada do Dakota. O Sonho está vivo e continua sendo sonhado e embalando dias e noites mundo afora. O Sonho de Lennon virou epidemia e ele , como uma armadura, protege-nos , impedindo que a realidade não nos esmague.

08/12/10

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Severo e a Guerra Can-Can

Semana passada, Matozinho parou literalmente para acompanhar , pela TV , a guerra contra o tráfico nas favelas cariocas. O súbito interesse pelo assunto tinha sua raízes em razões modernas como o fascínio pela mídia, como em qualquer outro lugar desse mundão de meu deus, mas , também, em outras bem mais profundas e históricas. Por incrível que possa parecer, o Morro do Alemão, a Penha, a Rocinha são fronteiriços a Matozinho. É que a miséria e a desassistência do estado tornam todos viventes muito próximos e parecidos. A pobreza, como a morte, irmana e iguala muitos num estranho socialismo . Claro que a pobreza é produzida para alguns e a morte, muito mais igualitária, reúne todos numa mesma lápide, no mesmo nada, no mesmo esquecimento. Um outro fato a aproximar Matozinho dos cariocas: incontáveis matozenses vivem nas favelas do Rio, no comércio ambulante, como crediaristas. De alguma maneira, pois, a Guerra Civil carioca mexia diretamente com a Vila e sua economia.
As operações militares envolvendo Polícias Militar, Civil, Federal e o Exército, remeteram, também, imediatamente, a Vila a períodos conturbados da sua história. Os mais velhos lembraram rapidamente dos tempos do velho Pedro Cangati, aí pelos idos de 1950. Pedro fora chefe político local e desencadeara uma verdadeira guerra contra uma família de Serrinha , cidade vizinha : os Cangulo. As primeiras desavenças começaram por conta de briga no espaço político da região e acirraram-se ainda mais por contra dos Cangatis e Cangulos serem parentes próximos. A Guerra Cangati-Cangulo ficou conhecida como Can-Can. Hordas de pistoleiros campeavam naquelas brenhas , de lado a lado, e , em menos de dez anos, já se computavam mais de cinqüenta mortes . A vendetta acometia quase que proporcionalmente as duas famílias envolvidas. Com o passar dos anos, a questão se foi arrefecendo uma vez que a cara manutenção dos dois exércitos acabou por derrotar financeira e politicamente os dois contendores.
Pois bem, amigos, começamos pelas beiradas, como quem come mel quente, saído da passadeira. Imaginem a aflição de um destacamento policial, em Matozinho, em plena Guerra do Can-Can . Eram meros cinco soldados , armados de espingardas soca-soca e jardineiras, totalmente despreparados e mal acostumados, postos a enfrentar exércitos de jagunços perigosos e peçonhentos. Entre estes, havia uma folclórica figura , conhecido de todos: Severo. Apesar do nome de soldado espartano, Severo não fazia por merecê-lo. Franzino, magricela, alto, parecia um “Mané-Magro de Jurema”. Salvo ,por pouco ,de uma tísica na adolescência, Severo carregava aquele corpo de mamulengo, meio desengonçado. Sentara praça na polícia por mera falta de opção. Já perto da aposentadoria , dizia-se, a boca miúda e grande, que nosso militar, durante toda sua carreira, jamais prendera ninguém. Evitava enfrentamentos e operações em que tivesse que fazer campana sozinho. Pelo soldo pequeno que recebia, compreendia-se a dificuldade de atos de patriotismo e heroísmo exacerbados.
Quando apelado a exercer suas funções repressivas, Severo dava sempre um jeito de chegar atrasado. No máximo, tentava uma psicoterapia á distância, tentando convencer o bandoleiro a se entregar, a acompanhá-lo, mas sempre mantendo distância regulamentar. Do seu lado, ele usava técnicas de marketing, mostrando aos circunstantes a dificuldade da sua função, informando que se lá fosse e desse uma surra no acusado, a própria sociedade o condenaria, os direitos humanos viriam puxar sua orelha. A conversa se prolongava até que o baderneiro, ou bêbado resolvesse ir embora. Mesmo assim, Severo o acompanhava, sempre à distância, dando ordens de “Teje Preso”, até que o malandro se escafedesse. Depois, o soldado fazia uma relatório informando aos superiores a impossibilidade da prisão, uma vez que ao sentir seu poder de fogo, o desordeiro , com medo, fugira em desabalada carreira.
Matozinho, diante das operações dramáticas, no Morro do Alemão, remeteu-se, diretamente à mais heróica façanha do nosso Severo. No auge da Guerra Can-Can, alguns pistoleiros dos Cangulos, após uma chacina em Bertioga, se acoitaram numa casa estrategicamente construída na subida da Serra da Jurumenha. O lugar era militarmente privilegiado, num alto, com ampla visão em 180 graus de todo o horizonte. A polícia de Matozinho foi chamada para enfrentar os bandoleiros e, ao se aproximar do local, perceberam, claramente, que se tratava de uma tarefa perigosa e dificílima. Os facínoras atiravam sem parar com rifles papo-amarelo. No meio do destacamento estava nosso corajoso Severo que, mais que rapidamente, percebeu a enrascada em que estava metido. Mal chegaram no pé do morro, sob fogo cerrado, viram ser alvejado um pobre agricultor que ali passava, tardizinha, de volta da roça. Como Severo mesmo comentou: “a bala bateu no homem e ele caiu de cu trancado, nem estrebuchou”.
Severo, então, resolveu, num átimo, estabelecer a tática que mais havia treinado durante tantos e tantos anos: a retirada. Aproximou-se , se arrastando, do colega mais próximo , em meio ao ziguezaguear das balas e informou:
--- A coisa tá difícil ! Sustentem o fogo que vou buscar reforço !
Ao anoitecer, ainda sem poder tomar chegada, os soldados viram, por fim, os pistoleiros fugirem sem deixar rastro. Foram escapando , um a um, pelas portas dos fundos. Os que ficavam, continuavam a atirar em diversas janelas, dando a impressão que o batalhão ainda estava todo lá em cima. Por fim, o último escapou e só ao amanhecer o destacamento deu pela fuga da tropa. Já era muito tarde !
Em todo episódio, só houve uma baixa: a do agricultor. Sim, houve ainda um ferido leve: Severo ! Ele cortou o dedo enquanto, sentado no chão, escondido no canavial, vizinho à casa, descascava cana para chupar, enquanto as balas , por cima, cortavam as folhas e ele esperava por um reforço que não chegava, talvez porque não existisse e , mesmo se houvesse, sequer havia sido acionado. Foi garapa !

03/12/10

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Castelo de cartas

Entre uma e outra partida de “Buraco”, o menino toma o baralho entre as mãos e, com delicadeza e paciência, começa a erguer o seu castelo de cartas. Os movimentos são leves e cuidadosos, em slow motion. Ele percebe, claramente, que basta um movimento mais brusco, uma expiração mais profunda para que venha a implodir sua sutil arquitetura. Findo o trabalho, o castelo ergue-se impávido, à beira da mesa, meio desengonçado, com um ar de vitória contra a efemeridade e às dificuldades inerentes ao percurso. Como na vida, a argamassa que une todas as peças é a instabilidade, ela é o fio condutor que cola as cartas, aguardando a esperada e próxima lufada de vento.
Pois é , amigos, apesar da aparente filosofia barata do primeiro parágrafo, é sobre castelos de cartas que desejo falar nesta croniqueta de sábado. Nestes dias, temos todos nos chocado com as fortes imagens que saltam da TV : uma verdadeira Guerra Civil que irrompeu no Rio de Janeiro. Carros queimados, tiroteio, tanques subindo morros, correria, confronto entre policiais, exército e bandidos. Mais de trinta mortes computadas até hoje. Como explicar que a bela aquarela da Cidade Maravilhosa teime em tingir-se de rubro, nesta semana? Tínhamos o purgatório da violência diária, em módicas prestações, que macula todas as metrópoles brasileiras. Não nos acostumamos, porém, com esta tragédia por atacado, num país que se vangloria ser isento de guerras e confrontos mais sangrentos. O paraíso e o inferno sequer imaginávamos que fossem tão fronteiriços.
Mas vamos refletir, um pouco, sobre a arte de empilhamento de cartas, enquanto as balas varam os horizontes cariocas e, como sempre, a população mais pobre se vê, incomodamente, metida no fogo cruzado. A urbanização das grandes metrópoles brasileiras foi um reiterado crime cometido contra a população mais pobre e desfavorecida. Essa classe sempre viveu próximo ao centro das grandes vilas, pois ali conseguia emprego e, pela dificuldade de transporte, sobrevivia em cortiços e “cabeças de porcos” . À medida que as cidades iam crescendo e prosperando tangiam os pobres para os morros e favelas. Alijava-os da vida urbana, sem nada lhes dar em troca. O Estado, por séculos, só subia os morros com a polícia. A única política social era a repressão. Nada de saneamento, de energia, de escola, de postos de saúde. Emebelezavam os cartões postais das cidades e escondiam suas chagas sociais em prisões, favelas, sanatórios, cemitérios. No Rio, o primeiro projeto social em uma favela já aconteceu , pasmem vocês, há menos de vinte anos. Com o aumento crescente da desigualdade social , as favelas cresceram e se multiplicaram. E hoje, à histórica ação da elite brasileira de imprensar a favela, se opõe uma reação bem mais poderosa , contrariando a segunda Lei de Newton .
Nos anos setenta do século passado, o tráfico aportou nas favelas. Foi recebido de braços abertos. Ele passou a fazer o papel que o estado brasileiro nunca fez. Deu emprego, envolveu-se em movimentos sociais como futebol e Escolas de Samba, apoiando-os maciçamente e, mais, vendendo sua mercadoria justamente à elite opressora que se repoltreava em mansões a beira mar. Esta atividade, como era de se esperar, teve enorme capilaridade comunitária. E mais: organizou-se invejavelmente, enquanto o estado brasileiro, intencionalmente mantinha-se frouxo e desorganizado para facilitar os trambiques, a corrupção desenfreada. O tráfico, como uma máfia, agiu politicamente, comprando políticos, elegendo deputados, subornando a polícia e autoridades. Claro que, como num castelo de cartas, este equilíbrio é instável e , periodicamente, desmorona como acontece no Rio agora e como ocorreu em 2006 em São Paulo que se ajoelhou sob o julgo poderoso do Marcola e do PCC.
Por que desmorona o Castelo? Simplesmente porque, amigos, existe um acordo tácito entre o Estado e o Crime Organizado, com concessões de lado a lado, favores dispensados e trocados. De repente, o Estado cai na loucura de imaginar que é dono da situação e , abestalhado, pensa que existe lei . Talvez tenha até ciúmes da organização poderosa do Crime. Aí, o vento sopra por entre as cartas e o castelo rui. Instala-se o caos, as ruas se tingem de sangue e há baixas de todo lado. Mas não há vencedores. Aos poucos recomeçam as mesmas negociações, há sessões e concessões de parte a parte e as mãos ensangüentadas começam a de novo edificar o castelo implodido. Um Mito de Sífiso tupiniquim.
Temos dois países em um só. Dois Estados: o da Praia e o do Morro. O da Praia é minimamente organizado para as classes que o apóiam. O do Morro é profundamente organizado e politizado e tem plena consciência que a sua infelicidade não é obra do acaso, da fatalidade. Lá de cima dá para observar perfeitamente os conchavos e as negociatas. O Morro tem plena consciência da instabilidade do Castelo de Cartas e sabe que as cartas foram feitas para se jogar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Aprendizes da vida, operários do nada


I

Existem poucas profissões tão especiais como a de agente funerário. A convivência próxima e diuturna com a morte , às vezes, faz desses seres figuras folclóricas, com cara de outro mundo. Poucos , porém, vêem de tão perto a fugacidade da vida e sentem como a transitoriedade da existência leva tão rápido ao socialismo final: reduzindo ao mesmo pó a ambição, o egoísmo , a miséria e a abastança do homem. Um amigo do ramo me conta das dificuldades do seu meio de vida. Primeiro, é difícil encontrar uma razão social para a empresa, pois é árduo fugir do aterrorizante, do mórbido e, muitas vezes, mesmo do ridículo. Nomes do tipo: “Funerária o Sorriso do Finado”, “Funerária Disparado para o Paraíso”, “Funerária Defunto Feliz”. Segundo, -- ensina ele -- é melhor evitar os slogans, por motivos idênticos : “Onde o Defunto tem vez” , “O defunto é duro, mas o pagamento é mole”, “Leva você ao céu e não pro beleléu”. Em terceiro lugar, -- explica ele com ar professoral-- o agente funerário deve evitar fazer visitas a doentes, porque sempre pode parecer que está ali por um escuso e misterioso interesse e o paciente poderá concluir que o volume que ele carrega no bolso, ao invés da carteira, seja a trena . Em quarto lugar, frisa o nosso fúnebre amigo, não é também de bom feitio lançar promoções como: “Pague um, leve dois” , “Compre o do sogro que a urna da sogra é grátis” e coisas do gênero. Não é de bom alvitre , por outro lado, aparecer como patrocinador de excursões, esportes radicais, etc. , já que o povo pode concluir que aquilo não é um patrocínio, mas sim um investimento. Por fim, o nosso papa-defuntos , como se desse o fecho em uma tese de mestrado, conclui: o gerente dessa mortuária atividade deve evitar falar , publicamente: “O comércio está fraco”, “Já não acontecem acidentes como antigamente”, bem como mandar brindes no Natal para os cardiologistas, os neurologistas e os mototaxistas ( decerto seus maiores fornecedores). Sempre achei esta profissão inóspita, talvez porque, como médico, ela seja uma extensão da minha e começa sempre onde meus cuidados terminam , como se fora um atestado da minha impotência como esculápio.

II

“katacumba”(este é o apelido profissional do meu amigo), para os íntimos “Katá”, me conta um caso acontecido na Paraíba. Uma funerária contratou uma doméstica de uma residência vizinha a um Hospital. Sempre que esta ouvia movimento no Necrotério, telefonava , e os agentes vinham, pronta e rapidamente, oferecer seus préstimos. O convênio vinha funcionando azeitadamente, até um belo dia, quando faleceu uma pessoa influente na cidade. A família, com previsão do êxito desfavorável, já tinha contactado uma outra Agência . Alertados pela empregada, ao chegarem ao Hospital, eis que os agentes conveniados topam com a outra funerária já em plena atividade. Abriu-se a discussão e, em pouco, as partes se engalfinharam, em meio às rosas, às velas e às orações. Os familiares do falecido correram e, quando abaixou a poeira, o resultado da batalha: alguns braços quebrados, hematomas vários e o falecido de cócoras, no canto da sala, olhando para tudo aquilo com um distante olhar de sarcasmo. Como “Katacumba “ mesmo diz: poucos conhecem tanto a alma humana como nós, manipuladores da morte e do seu séquito: hipocrisia, dor, sado-masoquismo, flores tristes e inocentes, religiosidade doentia, pérfidos interesses-- servidos em meio ao caldo, aos risos , às lágrimas e ao desespero...

III

Uma outra história ele nos narra, ainda dos tempos em que vivera em Várzea Alegre. Morrera um seu amigo em um sítio próximo e ele fora convidado para o velório. Defunto pobre e sem herança a deixar. Os colegas reunidos , como sempre acontece, passaram a encher a cara de cana, na tentativa de afogar as próprias mágoas e, também, claro, prestando uma homenagem àquele pau-d’água que se livrava do mundo. Acontece que o sítio era separado da cidade pela íngreme Serra dos Cavalos e, quando por fim, resolveram transportar o caixão para o cemitério varzealegrense, os amigos estavam todos bêbados: “mais cheios de pau que caixa de fósforo”. Na primeira rampa já não restava uma única flor por sobre o féretro. Na subida da serra, o caixão já ia sem tampa e, ao entrar em Várzea Alegre, sob o som alegre de “Alá, Meu Bom Alá...”, o finado já vinha galhardamente sentado no caixão e, jura “Katá”, por aqueles olhos que um dia o álcool haverá de comer, vinha respondendo em coro ao refrão:
--“Ô que calor, ôôôô, ôôôô...”

IV

“Katacumba” tem um capítulo só para historiar as falsas ressureições. No Sítio São Vicente aqui em Crato em pleno velório, entre uma e outra “incelença”, alguém notou que o finado que repousava na sua própria cama, como que elevava a mão por baixo do lençol . Aí o mais próximo gritou: --“Tá Vivo! ”, e foi uma debandada geral. Em pouco tinha gente passando na carreira em Nova Olinda; três trepados no mesmo coqueiro na Ponta-da-Serra e consta que até um aleijado jogou para longe as muletas que o atrapalhavam e era o pole-position na Prova de Fuga ao Defunto. Só pela manhã, um bêbado se aproximou e descobriu o estranho milagre da movimentação embaixo das cobertas: um pinto pulara do terreiro por sob a mortalha, tentando bicar algumas sementes que piedosamente pendiam das flores que circundavam o falecido.
De uma outra feita, num enterro concorrido, disserta Katacumba, o filho da falecida, debulhando-se em lágrimas, não desgrudava do féretro. Quando este já se encontrava na beira da cova, nas despedidas últimas, o rebento choroso se abraçou pela derradeira vez com a urna, inconsolável. A terra fofa do cemitério fez com que o rapaz escorregasse e o caixão, desequilibrando-se com o peso, caiu dentro da cova com rebento da finada, por cima . No impacto, soou aquele barulho grave e cavernoso, como de um surdo que prestasse a última homenagem à falecida.. Nisso alguém, impressionável, nas últimas fileiras, gritou: --“D. Maria enviveceu!!! “ Aí foi uma correria geral, tendo na frente do primeiro pelotão o inconsolável filho, que saltara da cova, num átimo, engatara a primeira e em pouco, certamente, receberia a bandeirada da vitória.
Uma outra história não menos insólita, nos traz Katá de Assaré. Uma velhinha muita cambota fora encontrada sem vida pelos familiares. De poucas posses, compraram um caixão barato, com ajuda de amigos piedosos. Na hora de pôr a carta no envelope, no entanto, notaram que era impossível: as pernas já rígidas, em forma de arco, não entravam na urna. A solução então foi cortar um pedaço da corda do cacimbão e, com ajuda de alguns circunstantes, forçar as pernas uma de encontro à outra, sob pressão e atarando-as com a corda para mantê-las assim. Deste modo conseguiram colocá-la dentro da fôrma que a aguardava para última viagem. As exéquias vararam a noite. De madrugadinha , em meio às rezas, o pedaço de corda ( já puído pela ação da umidade da cacimba) esgarçou subitamente. Aí as pernas, agora livres da contenção, pularam de repente para fora do caixão, como se a defunta fizesse menção de sentar. Foi um espalhafato, negro ganhando a capoeira, até ontem tinham feito a chamada e pelo menos três pessoas que estavam no velório não mais tinham dado notícia. Diz que um está em Canindé, um outro passou por Cabrobó e “Chico Canela Dura”, um sujeito tido como paralítico, que faz ponto na feira , telefonou ainda cansado de Marabá , avisando à família que estava indo embora: sabe Deus para onde.
V

A mais incrível estória contada por “Katá”, no entanto, é difícil de se constatar a veracidade. Segundo ele ,ano passado, a Câmara de vereadores de Belorizonte criou um imposto para os túmulos, uma espécie de IPTU post mortem. Os familiares que não pagassem, parece coisa do outro mundo, veriam seus entes queridos serem arrancados dos túmulos e recolhidos ao ossário público. “Katacumba” relata que, após um dia de intensa atividade, sentou e cochilou, no intervalo de dois sepultamentos. Teve um sonho que mais lhe pareceu uma aparição: Assistiu a uma “Reunião da Associação das Almas desencarnadas e corpos Despejados”. O conclave se passava em uma etérea paisagem e era presidida por um espírito chamado Allan. Falavam sobre a medida tomada pela Prefeitura de Belorizonte que , em pouco, com a voracidade dos prefeitos brasileiros, deveria se estender para todo o país. Caíra por terra um dos mais sagrados direitos, o do “REQUIESCAT IN PACE” . Nem mais na morte se poderá ter paz, os jazigos perpétuos passam a ser Jazigos temporários.
Alguns espíritos reclamavam dos parentes que, se já os só visitavam no finados, agora, que já tinham posto as mãos na herança, não iriam ter nenhum ímpeto em pagar o novo imposto e estariam desobrigados até daquela anual penitência. As almas mais antigas ( se é que é possível pensar em idade, nesse caso) eram as menos preocupadas, elas diziam que ninguém é lembrado depois da terceira geração, até porque poucos tiveram o privilégio de conviver com os bisavós e é quase impossível lembrar-se daquilo que não se conheceu. A união de todos no ossário municipal era ,assim , o socialismo final da natureza, a junção de todos no mesmo pó, a comunhão dos elementos : sem passado, sem história e sem vãs lembranças .
Uma alminha atarracada ralhava com os outros, dizendo tinha acertado quando solicitou em testamento a cremação, destarte ,tinha livrado o Estado e os familiares desse derradeiro contratempo , embora soubesse que suas cinzas estavam lá no sótão da casa , menos lembradas que as do cinzeiro da sala e qualquer dia desses ,certamente , seriam enxotadas numa faxina qualquer.
O depoimento mais surpreendente, no entanto, foi de um espírito andarilho que disse ter nascido no nordeste brasileiro e logo novinho abandonado numa lata de lixo por uma mãe solteira. Por sorte foi resgatado por uma doméstica que morava na Favela “Suvaco do Urubu”, em Recife. Começou cedo a fazer pequenos furtos e foi adotado pela FEBEM de onde o expulsaram com a maioridade. Passou então a trabalhar como vigia de uma pequena indústria , casou, depois de ser despejado de duas ou três casas por não ter podido pagar o aluguel; ganhou no jogo do bicho uma pequena soma e comprou uma casinha, onde passou a morar com a família . Por conta de infidelidade separou-se e , mais uma vez na rua, deixou a casa com a mulher. Viajou ao Pará, na tentativa de melhorar de vida, passou a ser grileiro, até ser expulso ( pensava ele que pela última vez) , massacrado como tanto outros em Eldorado do Carajás . Sem familiares, sem passado, estava ele ali, prestes a ser expulso de novo, como um Ahsverus onipresente, uma reencarnação de Adão, condenado à expulsão eterna do paraíso .
Katá diz, pedagogicamente, não entender porque os homens, sendo livres para tomar os caminhos que melhor lhes aprouverem, passam a vida a criticar as estradas e veredas que os outros escolheram. A estrada, boa ou ruim, pavimentada ou asfaltada , curta ou longa, seja qual for ela, enfim, inexoravelmente termina aqui , conclui ele, apontando para o Cemitério.
“Katacumba” despertou do sono, acicatado por um colega que o chamava para mais um enterro. Olhou para um céu azul resplandecente que o convidava para a vida com todos os seus gozos e marchou, pisando na terra que o tentava sorver com os seus vermes, suas lições de nada e seus mistérios...Saiu.
Junho/ 99

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Eufrazino e a Montanha Russa

Eufrazino contemplava o mundo por sobre as pilastras dos seus cinqüenta anos. A estrada estava bem mais curta para adiante do que para trás, talvez , por isso mesmo, aquela mania de ficar olhando a vida pelo retrovisor. O passado aparecia cada vez mais brilhante e promissor no seu cristalino já meio embotado pela catarata. A vida parecia-lhe aquilo mesmo : semeamos, semeamos, mas os frutos vão sempre se oferecer opimos no pomar do vizinho.
Tempo ! As verdades se refaziam a cada instante, como num caleidoscópio. De nada adiantava aquela frase puída, rota, áspera : “No meu tempo, meninos, era assim... “ Esta experiência apenas a ele dizia respeito. Era como se prescrevesse, hoje, um Capivarol para um enfarte do miocárdio; como se tentasse rodar um Blue –Ray na vitrola a manivela. Os filhos tinham vida própria, seguiam estradas por ele mesmo trilhadas, a despeito dos conselhos, das conversas. Os namoros , da praça haviam se transferido para os motéis ; o “esquentamento” agora carregava o nome de HIV; a eternidade dos casamentos media-se nos apressados ponteiros dos segundos; a virgindade transformara-se numa espécie de ararinha azul; os porres ganharam status de “viagens”: heroína já não era necessariamente o feminino de herói e craque não designava mais apenas o super-atleta. Tempo !
Eufrazino molhou-se daquela solidão única. Já não possuía xarás. Quem diabo ia impingir um nome esdrúxulo daqueles num filho, num mundo cheio de Daniéis, Andrés, Tiagos, Lucas, Matheus ? Eufrazino ? Mesmo que surgisse num descendente um Eufrazino Neto, sabia que lhe seria dificílimo carregar o peso . Ele seria certamente minimizado por um prenome mais palatável : quem sabe Ygor Eufrazino ? Assim, ao menos, o inocente teria a possibilidade de mimetizar a piada e assumir-se definitivamente como Ygor. Onde andavam aqueles costumes tão comuns na sua geração ? A fuga de namorados para forçar o casamento ? Os matrimônios feitos à força, no casa ou morre? As águas que lavavam a honra das moças que caíam em tentação, para que rios agora correm ?
Tempo! Há pouco vira a esposa entregar às quatro filhas preservativos com detalhadas explicações sobre o uso. O namorado da filha, nos fins de semana, dormia com ela, no mesmo quarto, na sua casa e isso tranqüilizava a todos: não estavam na rua expostos a violência nossa de todos os dias. A mais velha tivera um produção independente e mesmo com a insistência do namorado, negara-se a casar. O neto estava agora com os avós e era a alegria da casa. Eufrazino sabia , perfeitamente, o quanto tinha sido importante para sua formação as experiências vividas e passadas pelos pais, mas agora tinha a clara percepção que todas precisaram de upgrade. Não dava para contemplar a paisagem contemporânea com as pupilas do passado. E, como numa montanha russa, a velocidade das mudanças é estonteante. Lembra bem que há bem pouco dissera à filha mais velha:
-- Pode namorar como quiser, mas transar, só depois do casamento!
À segunda,poucos anos depois, já facilitara um pouco:
--“Filha, pode transar à vontade, mas não esqueça da camisinha, viu ?”
À terceira, dois anos depois, já precisou uma maleabilidade maior:
-- “Filha, não me preocupe que você transe, sei que sua geração é assim mesmo, quebrou todos os tabus, mas a privacidade é uma coisa importantíssima, é a nossa única fronteira! Te peço uma coisa, só, por favor, não filme a transa e bote no You Tube! “
Semana passada, diante da última filha, chegando à adolescência, Eufrazino, finalmente, tranqüilizou-se. Ufa! Basta de tanto upgrade! Vendo a menina sair, toda produzida para uma festa rave, suplicou:
--- Tudo bem , Georgina, divirta-se! Mas vou te pedir uma única coisa, filha. Sei que vai rolar o maior barato, a transa vai ser geral e sei também que agora, depois desse Big-Brother vocês vão filmar tudo e colocar no You Tube. Pois bem, filha, que seja o rala-e-rola pelo menos com um homem, viu ?

11/11/10

sábado, 6 de novembro de 2010

Mayaras

No último dia trinta e um de outubro, quando a apuração das urnas no Brasil sagrava uma vitória arrasadora da candidata Dilma Rousseff, certamente milhares de tucanos, país afora, mascaram aquele gosto de cabo de guarda-chuva . Claro que as pesquisas já previam matematicamente o resultado, mas sempre resta aquela esperança derradeira: na simpatia, no acaso, na macumba. Em São Paulo, no ninho brasileiro desta ave meio combalida, a estudante de Direito Mayara Petruso, inconformada, postou no seu Twitter uma mensagem antológica : “ Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um Nordestino afogado por dia!”. Ainda à noite, diante da repercussão, ela extinguiu seu perfil na Rede Social, quando acordou para a dura constatação que deveria ter depreendido dos seus estudos de Direito: cometera um Crime inafiançável. Já era muito tarde! Milhares de internautas já haviam testemunhado a loucura da Mayara, já haviam copiado o site e comentado. No dia seguinte, o escritório de advocacia “Peixoto & Cury” , onde nossa futura causídica estagiava, a demitiu sumariamente e ainda lançou nota de repúdio à atitude da estudante, na imprensa . A OAB de Pernambuco protocolou uma ação contra ela e deverá ser seguida por muitas outras sucursais da mesma instituição. A estréia de Mayara na vida profissional não parece ser das mais auspiciosas.
Por incrível que possa parecer, a opinião de Mayara não é muito diferente da média da elite paulistana. Para eles o Nordeste é uma África brasileira, coberta de “Jecas do Século XV” como já definira Paulo Francis . Com duas únicas serventias: fornecer marginais para assaltos no Sul do país e algumas praias excêntricas para os eventuais e perigosos safáris dos sulistas. O Nordeste, olhem o mapa, seria como um peso que São Paulo tem que carregar eternamente nas costas. O mapa da nação existe apenas de Minas Gerais para baixo: para o sulista o Nordeste é uma linha imaginária que separa este Brasil próspero do Caribe e de Miami. Basta voltar-se para a recente campanha eleitoral e ver o ar de superioridade , o preconceito explícito, o ranço com que tiveram que engolir a fragorosa hecatombe do vôo tucano.
E não apenas flui das fontes sulistas o preconceito . Nossa pretensa elite nordestina, da varanda da Casa Grande, ainda vê as classes mais desfavorecidas como se contemplassem a Senzala. Vejo-os todos os dias reclamando dos Programas Sociais do Governo, dizendo que agora já não mais existe ninguém para trabalhar na agricultura, nas casas, nos jardins. Só não informam quais os salários que propõem para seus trabalhadores e qual o vínculo trabalhista. Vi nossos blogs cuspirem fogo contra as bolsas famílias, chamando-as de bolsa-fome, bolsa-miséria e que estavam apenas viciando o povo. Na Campanha, claro, de olho nos votos, mantinha-se um silêncio obsequioso. A Caixa Postal vivia entupida com mensagens imputando Lula de : analfabeto, corrupto, burro, cachaceiro. A candidata do Governo, então, recebeu todo tipo de preconceito: guerrilheira, homossexual, assassina.
Pois bem, são muitas as Mayaras neste país, algumas, inclusive, dormem conosco e privam do nosso convívio mais íntimo. Presas todas ao passado, nem percebem que o Brasil, lentamente vem mudando e os pelourinhos vêm tombando paulatinamente. Luiz Inácio entra, definitivamente – queira-se ou não—na história como o melhor presidente do país em todos os tempos e o mais popular. Ele mesmo : Nordestino, pau-de-arara, tido como analfabeto, pobre e acaboclado. E mais, elegeu a Dilma, a primeira mulher presidente e ex-guerrilheira . E mais, perdeu apenas na região Sul, não foram os nordestinos , os votos da fome, dos grotões que a elegeram. As Mayaras estão na contramão da história: não há água suficiente no Tietê e no Paraíba para afogar tanta gente. Mas, quem sabe, vivam eternamente poluídas por terem que banhar tantas mentes torpes, tanta ambição, tanto egoísmo ? O povo, Mayara,felizmente já aprendeu a nadar...

J. Flávio Vieira

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O Boi botou em Mestre Alfredo

Debruço-me, frequentemente, sobre uma coleção de fotografias antigas que coleciono há muitos anos. As fotos todas me parecem muito familiares, como se houvesse já bebido aquelas paisagens, convivido com aqueles transeuntes. Não fosse o incréu que sou, imaginaria ser um fenômeno de Dèjá Vu, algo explicável nos meandros de outras encarnações, nas páginas do Budismo, do Candomblé, do Kardecismo. Dia desses fitei uma que mostrava o nosso Cassino Sul Americano, aí pelos idos da década 20 do século passado, captada pelas lentes mágicas de Pedro Maia. Nela percebi as ondas inexoráveis e devastadoras do tempo, tudo se transmutara: A paisagem, as pessoas, o vestuário, os filmes, até o cinema; tudo havia sido engolido pelas moendas das horas , dos minutos, dos segundos. Junto, percebi, se transformaram também os costumes, a moral, os hábitos, as verdades. Como se a vida fosse uma grande peça de teatro, em que, ato após ato, se trocam o figurino, o cenário, os atores, a platéia, a música, a iluminação, a dramaturgia. Só o script , no fundo, é o mesmo : uma tragicomédia onde se embatem num vendaval de ilusões: esperanças, aspirações, vaidades, interesses, torpezas; tudo encenado à beira do abismo. Em pouco, cai a cortina e tudo recomeça.

Tudo neste mundo está submetido ao crivo afunilado da ampulheta. Tudo é efêmero, etéreo, transitório. A roupa mais linda e deslumbrante que vestimos hoje é a cafonice de amanhã. A verdade mais cristalina de agora será a mentira deslavada da aurora seguinte. O certo-errado, o ético-criminoso, o santo-profano, o belo-feio, a virtude-pecado precisam ser cuidadosamente datados. A beleza feminina no Século XIX apresentava-se como uma figura de Botero, hoje como a noiva do marinheiro Popeye: a Olívia Palito. A virgindade, antes de ontem adorada como top de linha, hoje se cadastra nos livros do IBAMA. Zeus e Júpiter há poucos séculos deuses furiosos e de poder incomensurável, agora dormem placidamente nos livros de Mitologia. Tudo muda, tudo passa, as coisas são fluidas e escorrem para o ralo do tempo, sem que ao menos demos conta disso.

Assim também são as palavras. Elas envelhecem e ficam caducas como as pessoas que as pronunciam. Expressões tão significativas outrora como : “Furado que só tábua de Pirulito”; “Mais lascado que pauzinho de rolete”; “Tremendo mais que Toyota em ponto Morto”, “ Mais melado que balcão de Correio”... quem diabos mais sabe o que é isto nas novas gerações? Rolete, Tábua de Pirulito, Ponto Morto ? E os Correios agora se melam por outras causas. Há poucos anos , quando uma pessoa entendia por fim uma situação qualquer, dizia : “ Ah, agora caiu a ficha!” Era uma referência às fichas utilizadas nos orelhões, agora já comandados pelos cartões telefônicos.

Aqui no Cariri, existiam muitas expressões nossas : “Botou, como o Boi botou em Mestre Alfredo!” ;”Eu sou como pequi verde, não abro de jeito nenhum!”; “Mais conhecido que arrastado de penico”; “Mais desmantelado que o PTB de Nova Olinda”. Pois é : O tempo botou em Mestre Alfredo sem nenhuma pena, aposentou o penico e o seu arrastado, abriu o pequi em banda e desmantelou definitivamente o já desmantelado PTB da terra do Mestre Expedito do Couro.

A imagem que se vê hoje projetada é apenas a realidade momentânea, uma pequeníssima amostra de uma infinitude de outras que se sucederão. Suas crenças, seus valores, suas verdades são apenas grãos num celeiro de possibilidades universais. Só existe uma coisa perfeitamente imutável neste mundo : a Mudança.

21/10/10

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Resgate Heróico no Poço do Sabugo

Taí! Digam agora que não há possibilidade de consenso em Matozinho! Perguntem a qualquer guri, em beira de rua, qual a página mais dramática na história da vila e dou minha cara a bofete, se a resposta não for única e inequívoca: O Desmoronamento do Poço do Sabugo. O episódio se passara muitos anos atrás, mas a tragédia havia sido perpetuada, geração após geração, pela aguçada língua do povo. E, claro, como em toda história oficial ou oficiosa, o fato foi ganhando novos matizes, novos temperos com o fito de a especiaria ir se tornando mais palatável, mais adaptada aos mutáveis mistérios desta espécie de culinária. A versão que escolhemos nos foi narrada pelo velho Felinto Gomes, um cabra mais sério que fundo de touro, econômico de gestos e palavras, um homem muito mais propenso ao substantivo que ao adjetivo e advérbio. O leitor há de me interrogar se é esta a descrição mais confiável da história. Quem lá diabos é que sabe? Esta escolhi confiado no aval que Felinto me apresentou: um bigodão negro que lhe imprimia uma cara austera como se tivesse engolindo, a contragosto, um anum.
Tempos de seca tirana em Matozinho. Até menino chorava lágrimas liofilizadas. O prefeito Sinderval Bandeira andava com a moral mais baixa que diferencial de cururu. O açude do Sabugo há mais de dois meses que batera piaba. A Vila se via abastecida , a duras penas, por carros pipas que próprio filho do edil alugava à prefeitura. A água vinha de Bertioga: salobra e barrenta. Os matozenses reclamavam mais do que bode em dia de dilúvio . Bandeira, na tentativa de melhorar um pouco mais a popularidade, conseguiu, com o governador, a construção de um poço Amazonas. Imaginava que, se tudo desse certo conforme as previsões do marcador de cacimba, haveria condição se sanar o problema ao menos parcialmente. Corria o risco de ver o filho perdendo a boquinha, mas , por outro lado, quem sabe, semeava um pouco de esperança no povo. O próximo ano , não podia esquecer, era ano eleitoral.
A escavação começou em ritmo acelerado. Sinderval contratou Pedro Pebote e seus seis filhos e o pau comeu no centro. Os Pebotes tinham este estranho sobrenome e eram dados a um carteado e a uma caninha, mas trabalhavam com afinco. Em uma semana haviam aberto já um bueiro enorme. Desapareceram buraco adentro. A construção poderia até andar mais rápida, não fosse o terreno pedregoso e a necessidade de botar fogo em pedra várias vezes por dia. Os tiros se ouviam de longe e, se de início assombraram o povo, em pouco já faziam parte do cotidiano da vilazinha. Apenas um contratempo ocorreu: cavavam, cavavam e nada do veio d´água. Um dia, descidos mais de quarenta metros terra abaixo, finalmente a água brotou com facilidade para alegria de Quinca e dos seus Pebotes. Sinderval regozijou já contabilizando a futura colheita na boca da urna.
Os Pebotes iniciaram, então, a parte final do trabalho. O revestimento interno do cacimbão com tijolos, montados numa enorme manilha aposta, cuidadosamente, no fundo do poço. O ofício , de risco, mantinha os pedreiros e serventes suspensos por um andaime, controlado por um sistema precário de roldanas. Aparentemente a história vai chegando ao final, mas se faz mister abrir, antes um parêntesis.
Os Pebotes vinham recebendo semanalmente os seus proventos. Acontece que os Cangatis, que faziam oposição a Sinderval, levaram a Quinca, uma denúncia. A verba destinada à construção do poço, pelo estado, previa o triplo da mão de obra cobrada pela equipe e, pior, eles estavam assinando recibos, ingenuamente, como se percebessem o total da verba prevista. Descoberta a tramóia, os Pebotes se revoltaram. Avisaram, numa sexta-feira á tarde, que estavam parando as obras e que só voltariam ao trabalho se lhes fosse devolvido o roubado, e mais : iam espalhar a Bandalheira. Sinderval informou que houve um mal entendido , que fossem para casa, fechassem o bico. Ia resolver o problema.
À noite, não se sabe bem como, aconteceu a tragédia que marcou indelevelmente a história de Matozinho. Houve um acidente, o poço desmoronou em parte e, pior, os Pebotes estavam presos lá embaixo, nos escombros. A notícia se espalhou rápido e causou comoção na cidade. Neste preciso ponto as versões divergem sobremaneira. O que segue é pois apenas um dos ramos da mesma história: o ramo Felintiano.
Segundo Gomes, o desmoronamento, na verdade, ocorreu por mero acaso, mas , ao contrário do propalado por Sinderval, cedo da noite e, consequentemente, não havia ninguém no momento. O prefeito ao saber do ocorrido, mandou, na madrugada, buscar os Pebotes de urgência, avisou a suas famílias que iam trabalhar em hora extra e os esconderam na fazenda de Sinderval de forma incomunicável. Espalharam então a notícia do ocorrido e que iam tentar um resgate heróico daquelas operários tão queridos.
Em pouco, o açude do Sabugo encheu-se de uma multidão de curiosos. Armaram barracas negociando bebidas, meninos vendiam Dim-Dim e pirulito. Outros guris empinavam papagaio e jogavam peteca. Organizou-se, rapidamente, uma brigada de salvação. Conversa vai, conversa vem, preferiram cavar um poço paralelo ao outro para o resgate, uma vez que o original corria novos riscos de soterramento e não havia segurança suficiente para trabalhar dentro dele. Formou-se uma imensa galera na beira do poço pronta a dar pitacos e palpites e as apostas começaram a correr soltas: quantos dias até chegar lá; quantos sobreviventes; quem escapa dos Pebotes; a corda quebra ou não quebra. Sinderval, desde este dia , não saiu mais da boca do poço e chorava como um desalmado. Por mais de uma vez tiveram que dar palmatoradas em meninos que jogavam pedras dentro do poço e furaram a cabeça de mais de uns cinco socorristas. O Poço do Sabugo virou a grande atração de Matozinho. Passados uns dez dias, finalmente, a brigada informou que o novo poço tinha chegado na altura dos escombros. Sinderval marcou para o dia seguinte , a gloriosa data do resgate. Cuidou, no entanto, de fornecer na noite anterior, canadas e mais canadas de aguardente aos renitentes que vararam a noite. Lá para as três horas da manhã, toda a audiência já estava capotada, em volta do poço. A negociação já havia sido feito com os Pebotes, sob juras de silêncio obsequioso. Os pedreiros foram colocados, na madrugada, dentro do poço recém-escavado, sem que ninguém visse.
Pela manhã, então, na presença de quase toda cidade, deu-se o resgate milagroso. Desceram primeiro dois socorristas para ajudar na perigosa tarefa.A corda desceu, poço abaixo, e, como por milagre, um por um dos Pebotes foram retirados lá de dentro. Fora, um Sinderval banhado em lágrimas, abraçava a todos e amparava os familiares que urravam num misto de alegria e desespero. Não cabiam perguntas em meio a tanta felicidade. Como haviam sobrevivido embaixo d´água , sem comer? Como haviam passado de um poço para outro, se o segundo, por erro de cálculo, era bem mais raso do que o primeiro?
Após a saída dos Pebotes, Sinderval, num ato solene, lacrou definitivamente os dois poços. Fez isso mesmo sabendo que após o resgate os dois socorristas que mergulharam primeiro , não mais foram encontrados. Ficavam ali, selados, como um monumento à bravura indômita da gente de Matozinho : os que sobreviveram e os que se perderam no buraco. Como o povo tem mais sede de heróis do que de água, Sinderval foi eleito no ano seguinte com uma votação recorde. E foi desde este tempo que os pedreiros do Poço do Sabugo passaram a ser conhecidos pelo estranho sobrenome, dizem que batizados pelo velho Felinto Gomes : Pebote, uma mistura de peba com caçote.

Crato, 15/10/10

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Concriz

Nestes dias, após a eleição do Tiririca, com um recorde de votos e a reação da inconformada elite brasileira querendo a todo custo cassá-lo, sob a acusação de analfabetismo, tomei a velha sopa de volta para Matozinho. Lá já se havia de há muito provado que existem outras universidades na vida além do banco da escola regular. Confunde- se tantas vezes inteligência com informação; ciência com sapiência; conhecimento com honradez. Matozinho, antes do Brasil, já havia provado não existirem tais similitudes.
Já falei de Pedro do Rodo que se fizera um dos maiores líderes políticos da cidade. Semi-analfabeto, evoluíra ,de simples crediarista, a ocupar os mais importantes cargos políticos : vereador, prefeito por várias legislaturas, deputado estadual, secretário de agricultura do estado. Sabia falar a doce língua de seu povo, comunicava-se muito bem, sem riquififes, sem ponto-e-vírgula. Nunca perdera uma eleição em Matozinho e enfrentara, por diversas vezes, candidatos embebidos no saber teórico dos rios universitários. Sabedor das mais profundas necessidades do povo, preocupava-se no o arroz-com-feijão, pragmático fugia dos elefantes brancos como o cão do crucifixo. De que adiantava asfalto nas ruas, sem saneamento? Praças bonitas arrodeadas de casebres? Televisão na sala, sem panela no fogo? Pedro sabia de cor e salteado essa cartilha: o supérfluo não podia vir antes do essencial. Estratégico, alimentava esse mito, o mesmo que perpetuou Cancão de Fogo e João Grilo: o do beradeiro, com cara de abestado que dá nó em pingo d´água e piau em professor de faculdade. Aprendera que a esperteza é a única defesa do pobre. Vestia-se e portava-se como um lesado, um Zé-Mané : fingia-se de morto para tomar de graça o caldo do velório e tirar dedada no coveiro.
São muitas as peripécias do nosso Rodo, mundo afora. O povo de Matozinho foi colecionando, nas páginas da oralidade, estas mungangas, como um dia já tinha coletado as de um outro Pedro : o Malasartes. Reuni duas dessas passagens , no intuito de mostrar que existem Tiriricas e mais Tiriricas mundo afora e que geralmente, apesar do nome, não são ervas daninhas.
Em época de Pedro , o principal político do estado era Tranquilino Rubião. Ao contrário dele, Tranquilino era culto, formara-se em ciências políticas na Sorbonne e dominava várias línguas. Talvez, por isso mesmo, criara grande afeição por Pedro, aproximação essa que se fizera também no campo da política partidária. Ambos transitavam no velho PTB, em tempos de Getúlio e de Brizola. Estas duas histórias aconteceram, com intervalo de muitos anos, em tempos em que coincidentemente Rubião era governador e Pedro prefeito de Matozinho.
Um belo dia Pedro adentra o Palácio do Governo, na capital, e se dirige diretamente para o gabinete do governador, onde tinha passagem livre e acesso facilitado. Ao penetrar na sala de Rubião , após os cumprimentos de praxe, “do Rodo” vai direto ao assunto. Estava precisando construir uma creche na Serra da Jurumenha, pois as famílias ,,trabalhando na roça não tinham com quem deixar os filhos. Além de tudo, aquela localidade sempre se mostrara um colégio eleitoral importante na Vila e, ademais, tinha sido promessa de campanha. Rubião comprometeu-se com a causa, pediu, no entanto, que o prefeito trouxesse alguma coisa mais concreta, um projeto ou coisa assim. Pedro explicou que não tinha como fazer esse tal de Projeto que aquilo era especialidade da SUDENE que vivia projetando, projetando e nada fazendo. Tranquilino imaginando a dificuldade para se confeccionar um bicho daquele em Matozinho, resolveu facilitar:
---- Pedro, pois traga ao menos um croquis do local onde você pretende construir a creche, entendeu? A gente calcula , por aqui, o orçamento e eu libero a verba!
Pedro se despediu rápido e agradeceu pela acolhida. Negócio feito !O quanto devia Matozinho a Tranquilino ! Aqui, necessitamos de uma pequena explicação. Nas terras matozenses existiam muitos sofreus. Aquele pássaro bonito, multicolorido e cantador e que em alguns lugares se chama também de Corrupião. Em Matozinho, conhecia-se o bicho como Cronquis. Pois bem, na semana seguinte, Pedro , sorriso nos lábios, salta no gabinete de Rubião, com um cronquis mansinho no dedo e vai logo gritando:
--- Pronto Rubião, taqui o cronquis que você pediu! Foi o bicho mais cantador que eu encontrei em Matozinho! Por falar nisso, rapaz, onde é que eu pego o dinheiro para fazer a creche, hein?
De uma outra feita, Pedro resolvera , finalmente, encanar água em toda cidade, puxando, por gravidade do Açude do Sabugo. As casas ainda eram abastecidas por ancoretas carregadas em burro . Na época da seca, então ,ficava toda a vila a mercê de carros-pipa. “Do Rodo” partiu para a capital, no intuito de pedir, ao governador os canos. Não seria fácil de conseguir, uma vez que a quantidade necessária para a obra era enorme. Após descer na rodoviária da capital, quando se dirigia ao hotel, Pedro viu , no pátio da REFESA, uma montanha de canos, das mais variadas dimensões, aguardando embarque. Informou-se e soube que pertencia ao governo estadual e estavam transportando para um projeto de irrigação no norte do estado.No gabinete do governador, Pedro expôs, então a situação do abastecimento de água em Matozinho e pediu ajuda do governador. Traquilino não negou ajuda, mas por conta da crise , informou : só poderia adiantar alguma coisa no ano vindouro. Pedro, então, humildemente explicou que passando defronte da REFESA tinha visto vários canos pertencentes à administração estadual, jogados a um canto e todos furados. Solicitou, então, ao governador, que liberasse, por enquanto ,aqueles canos furados, que ele aproveitaria, de alguma maneira, em Matozinho e já daria prá ir tocando a obra. Rubião, então, interrogou-o se tinha certeza de que eles estavam nessa situação. “Do Rodo’ confirmou : hoje mesmo havia verificado in loco a questão. Tranquilino conhecia o prefeito e sabia que, na sua simplicidade, não era homem de mentira. Redigiu, então, de próprio punho, um bilhete ao diretor da autarquia, solicitando a liberação dos canos para Pedro.
O prefeito de Matozinho, de posse do documento, se avexou. Contratou três scanias truncadas, encheu com os canos da REFESA, apresentando o bilhete do governador e partiu para a vila. Uma semana depois, recebeu um telefonema de um governador chateado. Tinha sido enganado por Pedro, que havia descaradamente mentido para ele, os canos eram todos novos e iam para o Projeto de Irrigação.
--- Você mentiu para mim, Pedro ! Eu confiei em você, você me prometeu que os canos eram velhos e imprestáveis e são novinhos em folha!
Pedro , não se alterou e respondeu de lá:
--- Num se avexe não, homem de Deus! Eu não menti de jeito nenhum! Eu nunca disse prá vocimicê que os canos eram novos, eu disse que os canos eram furados !
Rubião, irritado, saltou do lado de lá:
--- Pois é! Esses canos que eu liberei são novinhos em folha, não são furados de jeito nenhum!
Pedro, então, fechou o firo:
--- Governador, todo cano é furado! Se num for furado, cuma é que corre água pro dentro dele, homem de Deus?

07/10/10

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Claro-escuro

Recostado numa preguiçosa, abaixo de uma velha jaqueira, o velho Sinfrônio Arnaud contemplava os canaviais do Cotovelo, com vista privilegiada. Um sol já meio bemol, de quatro da tarde, parece envernizar as folhas das canas que brilham e tremeluzem tangidas por um renitente vento de agosto. Arnaud punha-se a pensar nos destinos de Matozinho que vira crescer quase que de dentro da sua fazenda e hoje, varadas mais de oito décadas, empinava o umbigo e criava ares de gente lorde. Certo que ,como todo novo rico, ainda mesclava costumes matutos com atitudes grã-finas: a meio caminho entre a buchada e o caviar. Uma conversa, pela manhã, com um político neófito da vila, o pôs a matutar sobre o tempo que tudo vai engolindo com sua bocarra de Jaraguá. As verdades monolíticas de ontem dissolvem-se ,como por encanto, sob a ação inexorável das horas e do amálgama gelatinoso resultante esculpem-se novos costumes, novos paradigmas aparentemente sólidos e indissolúveis.
Metido tantos anos na política da cidade, construíra quase que uma nova constituição de leis populares, de limites e fronteiras intransponíveis nas campanhas eleitorais. Naqueles idos -- lembra-se com um sorriso mal disfarçado, nosso Sinfrônio – político não roubava. Primeiro, porque não havia sequer dinheiro em caixa: as verbas da prefeitura dependiam da arrecadação municipal de impostos cobrados a pessoas paupérrimas, a comerciantes pequenos. Tantas e tantas vezes precisou tirar do próprio bolso para cobrir as obrigações de final de mês. A palavra “ladrão”, assim, era termo proibitivo em qualquer circunstância e redundava, inevitavelmente, em faca no vazio , tapa no pé-do-ouvido, tiro de papo amarelo nos peitos do insultador. Qualquer alusão, também, a possíveis desvios sexuais padrões de candidatos ou parentes destes, resolvia-se nos campos de batalha e não nos tribunais. Sinfrônio mesmo comentava, com orgulho , que sua terra não possuía veados e nem mulher metida a homem : “ isso é putaria da capital e de Bertioga” , costumava dizer. Permitiam-se, apenas, fofocas atinentes a teúdas & manteúdas, mijos fora do caco , gambiarras dos candidatos do sexo masculino, até porque isso, se não acrescia, também não tirava voto de ninguém. O adultério masculino via-se como uma atividade normal e comum, já o feminino tinha leis específicas não muito diferentes das islâmicas.
Debaixo da jaqueira, Arnaud pensava na conversa que tivera pela manhã com Seginaldo Trancoso, um vereador em ascensão em Matozinho e só então percebeu como, definitivamente, aqueles bons tempos tinham sido mastigados pela engolideira do tempo. Trancoso contou que resolvera se candidatar pela primeira vez a vereador e, pouco conhecido, ninguém botou fé na sua candidatura. Tinha apenas uma bodeguinha na Vila e muitos conhecidos. De maneiras que ele, correndo nas laterais do campo, sem que ninguém percebesse bem, terminou sendo eleito. No pleito seguinte, no entanto, os adversários, já acordados, caíram de pau. Espalharam logo a notícia que ele era veado. A princípio Seginaldo disse ter ficado um pouco chateado, mas sustentou o dedo no apito: estava na chuva era prá se molhar. Pois, segundo ele, o tiro saiu pela culatra, aconteceu que perseguido, virou vítima , as florzinhas da cidade votaram todas nele que terminou como um dos mais bem votados na cidade. No último pleito, relatou Seginaldo, candidatei-me novamente e , aí, eles mudaram a tática: espalharam a fofoca que eu era corno. Aguentei calado novamente, embora sob protestos da minha santa esposa . Pois bem, desta vez é que a vitória foi arrasadora: todos os cornos de Matozinho votaram em mim e terminei como o mais votado e ainda presidente da Câmara. Na próxima eleição -- falou com franqueza Seginaldo para Sinfrônio -- estou achando que vão espalhar por aí que sou ladrão, pois é , vou sair logo candidato a Senador, não vai ter urna para suportar tanto voto !
No horizonte, Sinfrônio observou o sol desaparecer pro trás dos morros da Serra da Jurumenha . A noite invadia de sombra o Cotovelo. O mundo e a vida fluíam em meio à luz e a treva, num jogo eterno de claro-escuro.

J. Flávio Vieira
30/09/10

sábado, 25 de setembro de 2010

Balé

Ínvios caminhos trilhou a Medicina em terras de Santa Cruz! O primeiro médico aqui aportou ainda nas caravelas de Cabral : Johannus Emenelaus. E devemos ao holandês Guilherme Piso que veio a Pernambuco com o Conde Maurício de Nassau, no Século XVI, o primeiro Tratado de Medicina das Américas. Nosso conhecimento médico, como nossa cultura, sofreu intenso processo de miscigenação: um pouco aprendido dos portugueses, dos jesuítas, dos afro-descendentes, dos holandeses, franceses, judeus e dos índios. Nossos primeiros profissionais de médicos só começaram a ser formados por aqui a partir do Século XIX, com a inauguração da primeira Escola de Medicina, a de Salvador, que coincide com a chegada da família Real. Todos profissionais daquela geração carregavam consigo características interessantíssimas: exercendo uma ciência que ainda se banhava em fontes empíricas, tinham uma profunda formação humanística e ética no exercício da Arte hipocrática. Para eles, o exercício da medicina era antes de tudo impelida por vocação e fazia-se muito mais sacerdócio do que emprego; mais Arte do que Ciência. Tinham uma profunda proximidade com as famílias e eram reverenciados como membros delas, como um parente próximo, como um amigo. Participavam do cotidiano das pessoas e tratavam não apenas os males físicos, mas leniam também as agruras da alma. A partir do Século XX, à medida que a Medicina se foi firmando mais e mais como Ciência; os novos profissionais começaram a se aproximar das máquinas, dos acessórios de diagnóstico sofisticados, voltando-se mais para o tecnicismo e menos para a alma; mais para a superfície e menos para os recantos mais abissais da natureza humana.
O ouvinte , certamente, verá essa evolução como natural. O mundo mudou: a TV, o DVD, o Computador , a Internet , a Midia, imprimiram uma velocidade estonteante aos tempos modernos. Os contatos hoje se fazem muito mais virtualmente do que na esfera real. Já existe Cirurgia Robótica permitindo que um médico em Nova York opere um paciente em São Paulo, sem que nunca tenha visto seu cliente e sem que nunca tenha a impossibilidade de conhecê-lo um dia. Muitos sites já disponibilizam consultas virtuais, à distância. Já não existe espaço para o contato físico entre as pessoas, para o toque , o olhar, a escuta. O médico hoje formado, com certeza, não poderia ter permanecido o mesmo de anos passados. Hoje ele é tem uma formação muito mais técnica e muito menos humanística e as vocações são criadas através de um dos deuses da modernidade : o Mercado. Temos profissionais da mais alta qualificação , nas mais variadas sub-especialidades, capazes de tratar com esmero e maestria: dedos, fígados, olhos, cérebros; mas muitas vezes impossibilitados totalmente de cuidar de pessoas na sua holística vivência, na sua divina complexidade. A convivência entre os próprios colegas, também, sofreu uma grande deterioração, simplesmente porque não há mais colegas nos tempos atuais, existem concorrentes da mesma fatia de mercado. Tenebrosos tempos modernos!
Esta reflexão, amigos, talvez um pouco crua para um dia de sábado, brota em meio à tristeza que tomou conta da nossa cidade no dia de ontem. Partiu na inevitável viagem, um dos últimos luminares da fase áurea da Medicina caririense dos últimos 60 anos: Dr. Eldon Gutemberg Cariri. Querido de todos, recepcionou milhares de cratenses na chegada a este mundo de lágrimas, com um carinho e lhaneza quase que beneditinos. Pasmem vocês ! Ele sabia ouvir as pessoas! Não era um parteiro , mas um simples acólito da natureza. Acompanhava as gestantes por horas a fio, sem qualquer interferência no processo natural do parto: nem fórceps, nem medicamentos para apressar o processo e nem pensar em cesáreas desnecessárias! Longe dele a correria desenfreada dos dias de hoje, a velocidade estonteante das criaturas em busca de que? Para onde? Dr. Eldon, como um condor, não precisava de esforços desnecessários : sabia plainar, conhecia as correntes favoráveis de vento e flutuou vida afora, com a leveza de um bailarino. Discreto, sem arroubos, sem arrufos, exerceu seu sacerdócio por tanto tempo, antenado com os precipícios tenebrosos do espírito humano. Poliglota, leitor voraz, pianista, percebia claramente que a formação humanística é tão importante para o médico quanto o conhecimento técnico. Ontem, o condor pousou com a mesma leveza com que tinha empreendido o vôo por mais de oitenta anos.
Dr. Eldon parece deixar ensinamentos profundos às novas gerações. A paciência é capaz de mover montanhas. A Técnica isolada, apenas fabrica ótimos mecânicos para consertar relógios, rádios, computadores: não tem instrumentos suficientes de curar pessoas. E mais : a Ética precisa sobrepor todo conhecimento e toda a Ciência. Sem Ética não existe nada além da barbárie. O bailado suave do Dr. Eldon vai fazer falta num mundo cada vez mais propenso às lutas marciais do que ao Ballet.

25/09/10

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Hospital Regional do Cariri - Benefícios para quem ?


As décadas que se estenderam de 1960 a 1980 se caracterizaram, no Brasil, por um amplo movimento privativista da Saúde. O modelo da atenção era todo centrado no Hospital, priorizando-se o tratamento ao invés da prevenção. Nestes quase trinta anos, com incentivo governamental, pulularam os serviços hospitalares em todo o país. No Cariri, inúmeros serviços surgiram neste período, nos legando uma grande oferta de leitos hospitalares. Com a queda da Ditadura Militar e o advento da Constituição de 1988, sob a orientação do Movimento da Reforma Sanitária, criou-se o SUS que buscou, nestes mais de vinte anos, em inverter o caótico modelo de atenção hospitalocêntrico. A saúde, ao menos legal e filosoficamente, passou a ser um direito do cidadão e uma obrigação do Estado, devendo ser distribuída de forma integral e equânime entre todos os brasileiros. O grande gargalo do Sistema, viu-se com o passar dos anos, à medida que se ia melhorando a gestão e a gerência, está no financiamento inadequado. O sonho , amigos, é muito maior do que a verba destinada à sua consecução e , pouco a pouco, vem se transformando num pesadelo. A grande rede hospitalar, criada anteriormente, com a inversão do Sistema para prevenção, com os programas de Agentes de Saúde e PSF, viram as verbas a eles destinadas murcharem e foram pouco a pouco fechando as portas ou se afastando para atender apenas os planos de saúde e particulares. Em todo o país, começou-se a ter um sério colapso no atendimento hospitalar para a população, com denúncias diárias de desassistência nos noticiários: Emergências lotadas, falta de plantonistas, carência de leitos em UTI. No Cariri, esta realidade não é diferente do resto do Brasil.
Assim, quando apareceu a promessa da construção de um Hospital Regional Público por aqui, todos respiraram aliviados. Finalmente teríamos uma solução à vista para o crítico atendimento de Urgência/Emergência no sul cearense ! À medida que a edificação começou celeremente, em Juazeiro do Norte, algumas preocupações começaram, novamente a nos bater às portas. Como será feito o custeio do Hospital, que já foi anunciado, pelo Secretário de Saúde anterior que orçaria , mensalmente, em torno de dez milhões de reais? Sabe-se que a Saúde trabalha com tetos financeiros fixos e limitados e que não existem verbas novas para suprir as onerosas necessidades do novo serviço. Os municípios da região terão que financiar, com seus já parcos recursos, o novo e importante hospital. Como o lençol é curto, não há como alguém não ficar com frio! Realocadas as verbas, inviabilizaremos vários serviços hospitalares credenciados que já sobrevivem a duras penas. Se fecharem as portas, os paciente serão todos direcionados ao Hospital Regional que terá uma sobrecarga terrível e padecerá, no seu nascedouro, da mesma patologia que acomete os incontáveis serviços de emergência Brasil afora ( basta ver a tragédia do IJF em Fortaleza): filas enormes, pacientes internos em corredores e macas, equipes trabalhando em regime de guerra. Para que o Hospital Regional funcione a contento, ele necessitará de uma rede hierarquizada e referenciada de qualidade e com resolutividade. Como resolver esta equação com tantas incógnitas ?
Um outro fato recente vem deixar todos profissionais de saúde da região com a pulga, literalmente, atrás , dentro e na frente da orelha. Lançado o Edital para o esperado concurso que escolherá os futuros profissionais de saúde e da administração, vimos que se entoava, novamente o “Samba do Crioulo Doido” ou , melhor, “Do Crioulo Sabido”. Primeiro, não se trata de um Concurso, mas de um mero processo seletivo. Depois, serão todos contratados, após o processo seletivo(?), sob regime de CLT, ou seja, sem nenhuma estabilidade e pior, com um salário miserável, bem abaixo , inclusive, do que se tem no mercado caririense. Eles, no Edital, oferecem em torno de R$ 375,00 líquidos , por um plantão agitadíssimo de 12 Horas. O mais preocupante, no entanto, é que o Hospital foi, literalmente, terceirizado, entregue a uma empresa privada, mas que, atualmente, rotula-se com o vistoso nome de OSCIP: Organização Social Civil de Interesse Público. No caso específico do nosso Hospital Regional ela carrega a razão Social de Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar – ISGH. O Sindicato dos Médicos tem orientado toda a categoria a não se inscrever para realização da seleção e, com certeza absoluta, o ISGH terá grandes dificuldades em fechar quadros em especialidades imprescindíveis como : Neurocirurgia, Anestesia, Cirurgia Vascular, Cardiologia.
Vivemos um quadro sui generis. O SUS sempre teve a Medicina Privada como o grande vilão da Saúde no Brasil. Era ela imputada como centralizadora das verbas da saúde e como responsável pelos desvios reiterados de recursos para enriquecimento próprio. De repente, vemos uma grande onda de privatização retornando, sob o manto aparente novo das OSCIPS. Quem se beneficia disso tudo? Os profissionais de saúde, está mais que provado, não irão para o trono. Pelo que se percebe, os usuários do SUS, também, não terão suas agruras e sofrimentos minorados. Corre-se o risco de apenas reeditar a mesma história interminável e cansativa: o couro da população sendo tirado para ser espichado, novamente , no curtume do lucro e da ganância.

J. Flávio Vieira