sexta-feira, 31 de julho de 2020

O Drakkar aportou em Matozinho


A notícia pipocou como uma bomba rasga-lata na praça de Matozinho. Reunidos de tardezinha, os aposentados , por fim,  viam a plateia engrossar, com os funcionários que saltavam dos armarinhos da cidade e os barnabés libertos das repartições,  geralmente mantidos, com respiração mecânica,  pela prefeitura . Os velhos traziam a pauta das reuniões, até porque, com tempo suficiente, compilavam as fofocas pelo rádio e nas bodegas e boticas locais, as verdadeiras amplificadoras da vila.
                                    Naquele dia, coube a Cassandro Jurubeba sacar o item principal da sua cartola, sentado no encosto do banco de marmorito da pracinha , que ascendera à condição de palco. Caju, como era conhecido em Matozinho, vivera por mais de vinte anos em São Paulo e, dependuradas as chuteiras, voltara,  trazendo na mala um pequeno pé-de-meia, um sotaque carregado e uns vinte quilos de pabulagem. De tanto evacuar goma, na volta de Sampa, os amigos levantaram um dossiê de Caju. Descobriram que tinha sido um mero comerciário de muamba na vinte e cinco de março. Bem apessoado, terminou por ganhar a atenção de uma sunsei, filha de um lojista das imediações. Contra a vontade da família ,  casou com a mocinha. A partir daí, levou uma vida folgada, morando num apartamento na Liberdade e sem precisar dar murro em ponta de punhal. Mas não há solução que não traga junto seus problemas. Sumioko, a esposa, era adepta do amor livre e diziam que era falsa à bandeira, ao hino e aos brasões matrimoniais.  Aposentado, segundo os caminhoneiros matozenses que levantaram o dossiê, Caju não aguentou mais as galhas que enganchavam já até na antena da TV Gazeta. Disse arigatô a Sumioko e retornou à Matozinho.
                                   Pois bem, empertigado, na testeira do banquinho da praça, Caju trouxe o primeiro item à discussão. Tinha lido no jornal que pesquisadores do Ceará descobriram que os cabeça chatas descendem não de índios, negros ou portugueses, mas sim de Vikings. Ele , cabelo bosta de rolinha e pele puxada à cambuí, informou que já sabia disso há muito tempo. Seu avô era gazo como alfenim puxado, tinha olho verde como bico doce,  e era um lazarino com mais de dois metros de altura. Aliás, se gabou nosso matozense raceado com japonês: quase toda a família era desse jeitinho. Além do mais,  um escancha avô seu, disse ele, tinha ido para o Pará na época da Borracha e se tornara um dos maiores navegantes dos igarapés da Amazônia. Caju pontuou que sentia em suas veias correr o sangue nórdico. Se morasse na capital seria , certamente, um jangadeiro à Amir Klink.
                                   A coisa pegou fogo. Bastava olhar para os circunstantes da rodinha para desconfiar que o DNA escandinavo havia se diluído com o passar do tempo. Zé Grande, também conhecido como escada de tirar maxixe, sentado no banco da frente, não envergava mais de meio metro. Alguém mostrou Turíbio Caninana , tomando umas talagadas no Bar do Giba, na esquina, com aquele cabeção que quase matou a genitora, entalado no canal do parto. Do outro lado da rua, numa cadeira de balanço, já meio esquecida, a velha Norvina Caçundé , envergava uma grossa camisa de crochê e cobria-se com um lençol de flanela em plena tarde de um mês de outubro, quando em Matozinho dava pra fazer pipoca e assar milho verde na quentura da calçada. Alguém quis saber como aquela neta de norueguês  saiu tão friorenta daquele jeito.  Levantamento feito, rapidamente, entre os circunstantes da praça, no momento,  pelo IMBROMA, o instituto de pesquisas de Matozinho, mostrou: sessenta cabelos de mola de isqueiro, oitenta olhos escuros como chão de oficina, cinquenta caboclos com menos de metro e meio, trinta com cabeças de mamãe-sofreu, trinta e cinco com cabeça de cabaça. O único branco e com olho claro era Juventino Canabrava que teve um vitiligo tão infeliz, que juntou mancha com mancha,  e ficou com cara de Michael Jackson.
                                   Ameaçada a teoria da descendência de sangue azul do cearense, Caju irritou-se.  Disse que não sabia da vida dos outros, mas da dele tinha certeza. Sentia nas veias aquele afã de desbravar os mares bravios. No sonho,  pressentia a maresia entrando pelas narinas. Sua avó, segundo ele, falava engrolado de não se entender e era ruiva e comprida como um dia de fome.
                                   Até aquele momento, o velho Anfrízio Maia, o filósofo da praça, ouviu tudo calado, com aquele cuidado de caçador na espera . Só então , pausadamente, fez suas apreciações. A origem nórdica do cearense era uma balela. Uma invenção de pessoas racistas que considerando menores as etnias indígena e afro , procuram arrumar uma maneira de pôr uma falsa nobreza na sua descendência. Não muito diferente da montagem das árvores genealógicas que nunca têm galhos que pendam para as senzalas e para as ocas.

                                   --- Conversa pra boi dormir, seu Caju ! Conheci sua avó! Ela era uma  mãe de santo  adorável e querida. Que importa para nós que tenha vindo num navio viking ou num negreiro ? E ela só passou a falar engrolado, seu Caju, depois do derrame que teve !
                                   Jurubeba deu brabo. Baixou o nível. Jogou na cara de Anfrízio e dos pracianos que não tinha culpa se eles eram uns pés rapados, sem origem, filhos de guaiamum !
                                 ---Você mesmo Anfrízio, deve ser filho de alguma dama de paga da rua do Caneco Amassado!
                                   Anfrízio não se alterou nem perdeu a fleugma. Desculpou-se e afirmou que tinha se enganado. Olhando bem, Caju tinha herdado alguma coisa da sua herança viking, agora percebia !
                                   --- Ah ! Agora reconhece, Anfrízio ? Os da senzala  reconhecem os da Casa Grande ? O que você vê em mim dos vikings ? A altura ? Os olhos? A bravura ? O cabelo sarará ?
                                   Anfrízio, sem se apressar, fechou:
                                   --- Não, Caju ! Não ! Sabe o que foi que tu herdou dos teus avós vikings ? Os chifres !

Crato, 31/07/2020

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Os Muros Vazados do Paraíso



Paraisópolis  é a segunda maior favela de São Paulo.  Como é tão frequente no Brasil, fica contígua ao Morumbi, um dos mais chiques bairros da capital. São exíguos os limites, por aqui, entre o inferno e o paraíso. As extremidades da extrema miséria e opulência suprema se tocam. Morando em casas apertadas, acolhendo , em geral, várias gerações de uma mesma família, o nome Paraisópolis até parece uma ironia, como se algum humorista tivesse-lhe pespegado esse nome esdrúxulo  para a risada da plateia. Em tempos de pandemia, Paraisópolis perfaz a isca ideal para a propagação da Covid. Grandes articulações comunitárias, no entanto, desenvolveram uma profunda mobilização e, mesmo com todas as dificuldades de acesso aos Serviços de Saúde, o bairro tem apresentado níveis de contaminação bem abaixo da média paulistana. Há presidentes vigiando, rua por rua,  casos suspeitos e voluntários distribuindo cestas básicas nas suas vielas mais escondidas.
                                   Paraisópolis ficou conhecida, nacionalmente, em dezembro do ano passado, quando, num baile Funk, a polícia encurralou centenas de participantes, levando à chacina de nove adolescentes. A favela, como regra geral, tem poucas possibilidades de lazer. Uma biblioteca, casas de shows , como a Casa da Juliana e o Baile DZ7, onde aconteceu o massacre de dezembro. Todos esse empreendedorismo desenvolvido pela própria comunidade de mais de cem mil habitantes,  com 80% da população  de migrantes nordestinos.
                                    Dados do IBGE (2019) mostram que mais de 30% dos paulistanos não frequentam espaços de lazer e culturais, por conta da distância. Há mais de dez anos, a comunidade  lutava por um  que pudesse minorar esse sufoco. Desde 2013, por fim, iniciou-se a construção de um parque de quase 70.000 metros quadrados, que tem previsão de término para outubro próximo. Surgiu, então, um problema inusitado, mas perfeitamente esperado no centenário apartheid brasileiro. Incomodados com a proximidade, condomínios de luxo do Morumbi enviaram carta, com abaixo assinado, solicitando a construção de um muro de três metros para proibir o acesso de moradores do bairro pobre para o bairro rico. Nada mais sintomático e simbólico que esta  reivindicação.
                                   É que os muros já existem. Eles estão em volta das grandes mansões como as do Morumbi. E, invisivelmente,  eles proíbem que os menos afortunados tenham livre acesso aos serviços de saúde, à justiça, aos espaços culturais, à escola, à terra, à moradia, à segurança, ao emprego e   à dignidade mínima de viver. A história do Brasil pode ser resumida na construção reiterada e contínua de muralhas, cercas  e paredes sociais. As capitanias hereditárias foram apenas se fragmentando, com o passar dos anos, mas continuam presentes no imaginário do país , com os novos donatários erigindo as novas amuradas.
                                   A Prefeitura de São Paulo negou-se a acatar o projeto do renascido muro da vergonha. O Morumbi, o verdadeiro Paraisópolis,  não percebe que não existem muros altos o suficiente para mantê-lo feliz , seguro e imune, se do outro lado ruge e urge o Infernópolis. Mais dia, menos dia, as extremidades fronteiriças se tocam em curto e faíscam.  A felicidade plena é sempre um bem comunitário, o desabrochar da rosa meu sorriso não tem nenhum sentido e é até ofensivo num jardim de lágrimas.
                                   As muralhas visíveis e concretas são bem mais fáceis de se demolirem e delas se erguerem pontes. O grande desafio são as paredes ocultas, dissimuladas e impalpáveis, fantasmas que sobressaltam nossos sonhos de nação, nesse pesadelo de mais de quinhentos anos.

Crato, 23/07/2020  

quinta-feira, 16 de julho de 2020

O Delírio de Valírio


A sensação é de que tinha sido tomado por um transe, como se aos sons cadenciados do batuque tivesse baixado o  caboclo.  Uma estranha certeza invadiu lhe a alma, uma leveza quase que impalpável , um bem estar só minimamente perceptível. Como se tivessem-lhe aberto as grades da prisão. Aquele ar de quem recebeu aviso de férias, aquela fragrância de sexta feira à noite, como se o carcereiro lhe gritasse o “Teje Solto!”  Dominou-lhe  a atmosfera de junho e  julho no Nordeste brasileiro, quando os céus se iluminavam de fogos e de riscos de balões, as noites roubavam um pouco o frio nórdico e se abrasavam nas fogueiras dos terreiros e o cheiro do milho assado e do pé-de-moleque era um ciclone solapando desejos e dietas.  Envolvido por aquela aura inexplicável, Valírio saiu como que vagando por um destino incerto, mas incompreensivelmente  sabido.
                                   De repente, viu-se transpondo o grande portal da velha Exposição do Crato. Fitou mais de um vez o grande pórtico para ter certeza absoluta. E lá estava, em letras imensas: 69ª Exposição Centro-Nordestina de Animais e Produtos Derivados- 2020. Olhou, novamente, para ter certeza absoluta de que não se tratava de uma miragem e soletrou:  69ª Exposição 2020 !  Respirou aliviado ao certificar-se de que tinha desaparecido a denominação de EXPOCRATO. Para Valírio, aquela mudança tinha sido um divisor de águas. Desde que a Exposição se transformara numa insulsa EXPÔ, as coisas nunca mais foram as mesmas.  E foi extasiado que atravessou o portão, espremido em meio a uma imensa  turbe tão brasileira:   brancos, pardos, negros, sararás, pobres e ricos, grã-finos e vaqueiros.
                                   Os galpões estavam repletos de animais que eram a principal atração, pasmem vocês ! Nas vielas do parque, estranhamente ainda não reformado, espalhavam-se incontáveis vendedores: roletes de cana, brinquedos artesanais sem o made in china, filhós em balaios, tapiocas, pipoca, bombons, alfenins , o cachorro quente de Enoque estava estabelecido numa guritazinha logo próximo à entrada principal. Os meninos se apinhavam em frente aos vendedores de bolas de assopro e bastava um descuido, escapado o cordãozinho das mãos,  subiam elas aos céus sob o choro desesperado dos guris. Mas logo se acalmavam nos parquinhos que naquele ano tinham preço bonificado: cinquenta centavos por rodada.  
                                   De repente, um boi se soltou de um dos galpões e foi aquele desespero, um salve-se-quem puder  danado: alpinismo em árvores e mourões. De um lado, numa das barracas rústicas, um vendedor ambulante comenta com outro que naquele ano não cobraram nada deles e o dono da barraca confirma: o preço do terreno também foi bem baratinho, um incentivo para os pequenos comerciantes !
                                   As barracas de palha, empilhadas de gente, sentada ou  de pé à beira do balcão,  acomodavam pessoas de todas as classes sociais. Bebidas e tira-gostos  eram servidos de todas as marcas, ao bel prazer da freguesia: do caviar à buchada, da pinga do brigadeiro ao whisky escocês. Lá  embaixo,  o Inferninho estava em festa, um som tresloucado e alto por cada barraca. O amor derramava-se em juras saltadas de línguas trôpegas, em apalpos e fugas em busca do Cafundó. Às vezes o amor era  doado no varejo, vezes outras  negociado no grande balcão de negócios em que se transformara o mundo.
                                   E eram muitos os palcos. No picadeiro , terminadas os embates pecuários,  um sanfoneiro, acompanhado de um zabumba e um triângulo,  lembrava os bons tempos de Gonzagão no  parque. Do outro lado, Mestre Aldenir dançava o seu Reisado, com sua Trupe, sob o olhar de uma vasta plateia e de Dona Edite do Coco que já aguardava a hora de puxar a dança. Numa esquina um aboiava, na outra um violeiro pinicava a viola, no outro extremo um bêbado recitava Patativa. Pras bandas do Inferninho,  uma grande latada abrigava um Forró típico de Pé-de-Serra, à moda da Casa Grande de Seu Elói, um rela-bucho desenfreado. Contrabalançando os páramos celestiais, havia, no lado oposto, um palco com música Gospel para os crentes e, num outro pólo, um animadíssimo Bar do Reggae, com vários malucos belezas entoando o “I Wanna Love You”.  Num outro ponto, uma barraca animadíssima juntava o pessoal da seresta, comemorando a Volta do Boêmio, no seu eterno retorno.  E era tão grande o parque,  que era possível um outro local com música dos Anos 60 e sua Festa de Arromba, embalada por Batista. E também o Paraíso do Brega que acolhia um sem número de fãs com a bandinha puxando Amado Batista e Reginaldo Rossi,  bem prá lá das margens do Inferninho. E a Turma do Rock descabelava-se , testando a labirintite, ao som do Iron Made, puxado pelo “Na Cacunda”,  num cantinho esfumaçado e mais reservado da Exposição.
                                   Havia ainda um palco maior, próximo à  saída,  para a Vila Jubilar. Ali, uma multidão curtia o som do que há de melhor no Cariri e no nosso universo: Abidoral Jamacaru, João do Crato, Luiz Carlos Salatiel, Pachelly, Luiz Fidelis, Zé Nilton,  Ranier Oliveira, Calazans Calou, Nicodemos, Dihelson Mendonça,  Lifanco, Jairo Starkey,  Ibbertson Nobre.  
                                   Todos felizes, um parque para todos os gostos e todos os bolsos. Viu alguém perguntando se nesse ano não ia ter aqueles shows do Forró de Isopor e do Breganejo. Alguém disse que tinham montado uma estrutura na pras banda do Palmeiral e estavam cobrando ingressos caríssimos para quem quisesse e tinha uma ruma de abestado que resolvera fazer sua Exposição por lá. Bom apetite !  Aquela  Exposição era a que ele sonhara: numa metade o Inferninho, na outra metade o paraíso.  Alguns policiais dormiam pelos cantos por falta de serviço.  Mas alegria de pobre dura pouco. De repente, despertou do sonho.  Sentiu uma fisgada perto do cotovelo. Abriu os olhos e estranhou quando viu uma mulher de branco, mascarada,  segurando seu braço. Pensou consigo: meu Deus ! Foi porre ? Onde arrumei essa trepeça ?
                                   Valírio juntou forças e perguntou:
                                   --- É um pique, é ? Tamo no show de Abidoral ? Na Exposição ?
                                   Só então entendeu, quando ela ríspida explicou:
                                   ---  Que Exposição ? Tu tá doido ? Em ano de pandemia ? De Lockdown ? Tu tá é com muita febre ! Isso é delírio ! Sou a enfermeira ! Vou fazer o remédio !
                                   --- Oxe ! Delírio, não, meu nome é Valírio !  E quem me trouxe pra cá ?
                                   --- O Senhor tá na UPA ! Você num queria não, meu amigo, mas você foi COVIdado ?

Crato, 16 de Julho de 2020