sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A Palavra Sagrada




Houve um tempo em que a palavra empenhada carregava consigo força de lei. Não existiam cartórios, tabeliões, reconhecimento de firmas, avalistas. Valia a palavra simples pronunciada, que se firmava no ar como se nas tábuas da lei de Moisés. A honra de qualquer vivente punha-se à prova quando o compromisso oral, aparentemente frágil e  volátil, era pactuado. Os homens diagnosticavam-se como probos e honestos,  utilizando-se a escala de honradez da palavra assentada. Claro que vicissitudes e tormentas, no curso da vida, poderiam fazer com que fosse impossível cumprir os contratos verbais. Talvez, nestes tenebrosos momentos, ficasse ainda mais visível a retidão e a dignidade humanas. Devedores, tantas e tantas vezes, preferiam a morte à desonra. Não raro, por outro lado, assistiam-se a cenas de generosidade por parte daqueles mutuantes que alargavam prazos do pagamento, dispensavam débitos ou reemprestavam dinheiro  para que devedores se soerguessem e, depois, ressarcissem suas dívidas.  Os bancos e os advogados ainda não tinham estabelecido a avidez dos juros e a frieza siberiana das relações mercantis.

                                    Mas um dia, chegaram os bancos, os agiotas , os notários, os cheques  e os protestos. Pessoas precisavam de um empréstimo e já não mais procuravam o compadre, mas o gerente. As casas comerciais passaram a desconfiar dos clientes. A venda a crédito dispensou a cadernetinha do bodegueiro, substituindo-a pelo papagaio. A palavra empenhada perdeu sua notoriedade e começaram a pulular os malacas, os velhacos e os malandros. A retidão perdeu a sua importância e a sabedoria, a trapaça, a astúcia encheram-se de magnetismo e de   glamour.  Os comerciantes, rápido, desenvolveram um serviço de inteligência próprio, uma espécie de SPC e compartilhavam experiências e histórias de velhaquice entre si. Começaram, também, a exigir referências nas compras a crédito e nos empréstimos bancários.
                                   Essa é uma história de  um comerciante do Crato, oriundo, como tantos e tantos outros, das terras de Jardim. Homem sério, positivo, ainda da geração da palavra sagrada.  Um dia chegou na sua loja, um fiscal do Banco do Brasil, que tinha como função tomar informações pessoais junto a pessoas ilibadas e referenciadas pelos próprios clientes.
                                   --- Seu Chico, por favor, sou fiscal do Banco do Brasil e queria lhe pedir algumas informações sobre um cliente. O senhor conhece o Sr. Bernadino Fogaça ?
                                   O experiente comerciante lembrou imediatamente do Foguinho, como era chamado. Velhaco de carteirinha, era daqueles de quem os comerciantes do Crato tinham medo de vender até a vista.
                                   --- Foguinho?  Conheço demais! É gente da casa!
                                   --- Seu Chico ele é um bom pagador?  Cumpre com suas obrigações ?
                                   --- Olhe, meu amigo ! Eu só lhe digo uma coisa: na época de inverno bom, ele não paga a gente vivo não, agora em ano de seca, eu não sei informar ! Pode até ser !
                                   Seu Chico tinha um fornecedor de sola, de longa data. Um tal de Filismino Varjota. Morava em Parnamirim, no Pernambuco. O certo é que Filismino, em uma de suas viagens,  fez uma proposta de empréstimo no Banco do Brasil e o colocou como informante. O fiscal do banco, novamente, foi ter à sua porta.
                                   --- Seu Chico, tudo bem? Sou do Banco do Brasil e queria lhe pedir informações sobre um cliente que nos fez uma proposta de empréstimo. Filismino Varjota, o senhor conhece?
                                   --- Conheço demais. Gostava muito dele! Rapaz bom ! Pena que tenha morrido ainda novo !
                                   --- Morrido, seu Chico ? Quando ? Pois semana passada ele esteve lá no Banco e parecia tão saudável !
                                   --- Pois é ! Eu também me admirei. Naquele mesmo dia,  ele passou aqui e me disse que estava aperreado e me pediu para adiantar os duzentos contos de réis que ia receber do empréstimo do banco. Ele me disse que viria pagar terça feira passada como sem falta e, lembro como hoje, disse assim: Eu só não venho pagar terça, escreva aí: se eu estiver morto ! Eu emprestei!  Hoje já é sexta e ele nada ! Morreu, coitado ! Só pode ! Vou mandar celebrar uma missa na sé na intenção da alma dele! Coitado !

Crato, 29/11/19
                                  

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Espinhosa em Matozinho


Toda cidadezinha interiorana que se preze tem lá os seus filósofos de pé de calçada. Forjados nas lidas do tempo, temperados na estrada da vida, eles vão, dia após dia,  criando uma filosofia própria e particular, capaz de trazer luz em momentos de maior perplexidade. Em Matozinho, isso não era diferente e o maior deles, o mais consultado e reverenciado, tratava-se de Tutu Espinhosa. O homem viajara por Seca&Meca, trabalhara na marinha mercante, singrara por muitos mares e só quando aposentou a âncora e o anzol resolveu voltar para Matozinho. Barbas brancas, gestos medidos milimetricamente, Tutu tinha uma incrível paciência na arte de escutar. Vezes acreditava-se que o homem sofria das oiças ou era meio lesado , como se tivesse fumado maconha quiabada. Matutava ao ouvir os problemas que lhe chegavam ao oráculo e só depois de muitos minutos saltava com a resposta que, em geral, tinha precisão cirúrgica e saía de uma comparação objetiva e pragmática, bem difícil de ser contestada.

                                               Espinhosa morava sozinho em uma casa simples na saída para Bertioga. Tivera muitas mulheres, segundo consta ( uma em cada porto), mas , com o peso dos anos, terminou por decidir carregar o fardo só. Dizia sempre: Já que algumas vieram antes e, depois de comerem a coalhada, foram embora, não é justo arranjar alguém agora pra beber só o soro !
                                               O certo é que Tutu funcionava como um conselheiro em Matozinho. Suas soluções aos problemas mais complicados passaram a ser registrados nos arquivos linguísticos da vila, passando de geração em geração. Inclusive terminaram por criar uma certa jurisprudência, uma espécie de Suna, sacados em outras situações similares.
                                               O velho Pedro Cangati, possuidor de uma récua de filhos, escolheu o mais inteligente para ir estudar na capital. Resolveu dar diploma ao menino e justificava a iniciativa, sem nenhum pejo: Vou formar esse menino advogado que é pra ele sustentar eu e minha mulher quando a gente estiver velhinho e sem mais poder trabalhar. Tutu elogiou a iniciativa  mas  os dissuadiu da expectativa.
                                                --- Seu Pedro, formar filho é uma coisa especial. Mas cuidem vocês mesmos de arranjar escapatória pra velhice, viu ? Tirem o cavalinho da chuva! Tu já viu, alguma vez nessa vida, passarinho novo dando comida em bico de passarinho velho ?
                                               Tutu foi responsável pela melhor definição dada a um político de Matozinho.  Cocisfran Medanha lançara-se candidato a prefeito uns três anos antes do pleito. Zoadava pelos cantos das ruas, prometia mundos e fundos. Não perdia qualquer evento : renovação, aniversário, quermesse, entronação de santo, velório. Fez-se especialista em pagar pequenas promoções: rodadas em mesa de bar, bolas de futebol, velas para procissões. Carregava em um dos bolsos notas de dois reais e no outro de cinco ( cota máxima de patrocínio que estabelecera).Nunca dava um não.  Qualquer pendência maior, fazia quebra de asa, protelava para datas mais longínquas. Os eleitores  perceberam, rápido, suas maquinações: muita fumaça e pouco fogo. Perguntaram ao nosso filósofo um diagnóstico de Cocisfran e a conclusão não poderia ser mais concisa e exata:
                                               --- Olhe! Cocisfran é uma soca-soca toda especial. Com ele não se mata passarinho. Ele só tem a espoleta! Não tem pólvora nem chumbo !
                                               Quinca Jurumenha , já entrado na oitava década, enviuvou. Nos primeiros meses, o velho murchou, retraiu-se, parecia que ia seguir , em poucos dias, os passos de D. Minervina. Depois de uns seis meses, no entanto, tirou o fumo da lapela, criou marra , cobriu-se de perfume e talco Rossi e partiu para a luta e para caça. Logo, logo, encontrou uma pretendente de uns dezesseis anos que se botou pra cima de Quinca como o boi botou em Mestre Alfredo. O capim novo caiu no cocho de Jurumenha como mel em beiço de diabético e o velho se assanhou. Criou sustança nas canelas, apaixonou-se e marcou casamento. Os familiares tentaram, a todo custo, mostrar para ele os perigos inequívocos da empreitada. “Ela quer é tua pensão, Quinca! Acorda !Salta desse barco, seu maluco!” O noivo, no entanto, pensou com sua braguilha: E pra que diabos mesmo eu  quero essa pensão ?  Pra deixar pra quem , pra gastar com coroa, com vela de sete dias e missa de corpo presente ? Perdido por um, perdido por mil !  Pelo sim, pelo não, Quinca resolveu consultar o experiente Tutu. Procurou-o e informou a situação. Casamento marcado com menina de dezesseis anos, ele com oitenta e lá vai pedrada. Que que tu acha, Tutu ? Espinhosa ruminou um pouco, com os olhos fitos no telhado e, depois de alguns minutos , matou a charada.
                                   --- Quinca, tu entrou agora mesmo no açougue de Ramon. O homem matou um boi erado. Logo na frente do balcão ele botou a cabeça do bicho para vender. Mais atrás a carne traseira tá exposta nos ganchos. Logo mais atrás, no fundo, a parte dianteira e, finalmente, lá no fundo da quitanda, dependurada num cantinho, bem longe, a rabada. Pois tu tá mais ou menos assim, Quinca, nesse momento.
                                   --- Assim , como? --  Quis saber o projeto de noivo.
                                   --- Desse jeitinho, Quinca. De frente de tu, bem pertinho, o chifre facim danado de pegar. Lá longe, bem longe, difícil de botar a mão como o diale, a rabada. Tu tá muito mais perto das pontas do que do rabo. Desse jeitinho, homem de deus !
                                   Semana passada, na TV da praça de Matozinho, estava passando um programa eleitoral. No meio apareceu Ciro Gomes. Falou bonito danado, com uma facilidade de camelô de feira. No meio, no entanto, do seu conversado, começou a lascar o pau em todo mundo: no presidente, no ex-presidente, nos prefeitos, nos senadores, nos deputados, no padre, no bispo, nos vereadores,  no papa, no pastor, no síndico do prédio, na polícia, no exército, num passarinho que passou tirando fino na careca dele. Todos na praça comentavam a desenvoltura do político: desarnado, palavra fácil, discurso aprumado, entonação de locutor de FM. Alguém, da roda, então, resolveu perguntar a Tutu o que ele achava do Ciro Gomes. Nosso filósofo sintetizou :
                                   --- Cabra inteligente da peste! Devia ser mascate. O difícil para política é que ele tem labareda demais e extintor de menos.  O problema dele é um só: ele sabe acender a broca  nos quatro lados da roça, mas esquece, sempre, de antes, fazer os aceiros.

Crato, 21/11/2019

sábado, 16 de novembro de 2019

A Baixa Costura de Matozinho


D. Tudinha Catonho , contam os mais erados de Matozinho, teria sido a primeira costureira a se estabelecer, profissionalmente, na vila. Eram tempos em que as roupas ainda precisavam ser costuradas artesanalmente. Clientes compravam peças de pano nos mascates ou armarinhos da cidade e levavam para a costureira preparar vestidos para as mulheres e calças e camisas para os homens. Ainda não havia chegado a imposição da moda, trazendo a variedade de estilos e a necessidade de trocar as vestes antes que se rasgassem e puíssem miseravelmente. O sortimento de tecidos, a maior parte puxada a  algodão,  também contava-se nos dedos das mãos: morim, chita, brim e popeline,  e só alguns mais remediados, nos fins de ano, compravam seda ou cambraia de linho para missa do galo. Os sapatos dos meninos e meninas adquiriam-se com dois ou três números maiores, preenchiam-se os bicos com algodão que se esvaziando, pouco a pouco , à medida que as crianças iam crescendo.

                            O certo é que D. Tudinha terminou sendo levada ao Corte & Costura por extrema carência local. No início da vila,  não havia uma só matozense com habilidade para a arte e ela , naturalmente, abraçou a causa.  Viúva, viu nas linhas, agulhas e carretéis, a possibilidade de alimentar a récua de sete filhos menores que  se entaramelavam , toda hora, nas suas pernas.  A necessidade fez o peixe pular fora do aquário. O diabo é que, a bem da verdade, D. Tudinha nunca tivera a mínima vocação para a costura. Armara-se, é certo, de uma velha máquina Singer, ainda movida a munheca e, dia e noite, com uma disposição de mãe que deseja salvar a ninhada, ouvia-se, ininterruptamente o nhoc-nhoc-nhoc do mecanismo. No que tange à pouca perícia de nossa modista, havia quase que um consenso: o grande problema  não dizia respeito à costura em si, mas ao corte. Manejava mal a tesoura, a trena e o abridor de casas. Faltavam-lhe aulas de geometria.
                            O certo é que suas peças viraram folclore em Matozinho. Camisas com uma manga maior que a outra; calça com uma perna boca de sino e a outra skinny; bermuda masculina com a braguilha pra trás; paletó pegando marreca, justificado como a última moda em Paris;  calção de menino com ri-ri de lado, segundo ela para evitar enganchar no pinto, na hora do pipi.
                            Fubuia, o cachaceiro da cidade, contou no Bar do Giba que soube, recentemente, que o grande  Pierre Cardin, mestre da alta costura da França, estava vindo a Matozinho para conhecer e aprender com D. Tudinha. Segundo ele, tudo aconteceu quando soube de uma batina que nossa costureira tinha feito a pedido do Pe. Arcelino.  Tudinha , utilizando todas as técnicas do antropofagismo , misturara muitas formas, grifes  e tendências.
                            --- O Cardin se encantou com a obra de arte da batina. A gola era de palhaço de circo. A parte de trás , tinha uma capa, parecendo um fraque de maestro de orquestra. As mangas apresentavam duas ombreiras grandes, como uns trampolins, e, nas beiradas,  caindo penduricalhos em cascata, copiadas, certamente, da farda de algum general de carreira. Na frente, a batina tinha  uma centena de botões e amarravam-se, do outro lado, com umas argolas de pano,  inspiradas, com certeza, nas calçolas de Maria Justa lá da Boite Sorriso da Noite. Na cintura, havia um cordão de São Francisco, grosso como corda de ancorar navio. A partir da cintura, a batina não caía em formato de saia, mas transformava-se em calça que terminava no meio da canela, mostrando os cambitos finos de Pe. Arcelino, brancos como hóstias  e contrastando com umas meias roxas, tipo semana santa,  que subiam de canela acima como cobra engolindo caçote. Cardin precisa ver isso pessoalmente, jamais a alta costura vai ser a mesma, depois da batina de  D. Tudinha !
                            Segundo Fubuia, Pe Arcelino terminou por desistir de usar a indumentária. É que , na rua, não tinha sossego, por onde passava o povo derrubava-o, tirando medida, batendo foto, para encomendar uma peça igual.
                            Semana passada, os matozenses estavam aguardando o governador do estado que prometera vir à cidade, para a inauguração de algumas obras do prefeito Sinderval Bandeira. Na praça, uma grande comitiva aguardava Dr. Francalino Candeal. O homem, recentemente, sofrera um grave acidente de carro e, comentava-se, ficara bastante avariado depois do ocorrido.
                            De repente, a sopa que fazia a linha Matozinho-Capital, parou defronte à praça. O primeiro a descer foi um homem de paletó, tudo encurvado como se fosse apanhar alguma coisa no chão, torto , andando com dificuldade e portando uma enorme corcunda, em feitio de mochila , nas costas. Sinderval adiantou-se e o abraçou efusivamente:
                            --- Meu Governador ! Bem vindo a Matozinho !
                            Só então percebeu que se tratava , na realidade, do juiz de direito Onefasto Pereira. Sinderval tomou um susto danado.
                            --- Dr. Onefasto, me perdoe! Eu o confundi com o governador. Mas  o senhor , que eu saiba, era todo linheiro como uma taboca. Que diabos aconteceu ? Foi um ramo? Caiu dum avião?
                            Onefasto, com a cara de poucos amigos, retrucou:
                            --- Teve nada não! Continuo o mesmo, prefeito! Foi o diabo dum paletó que encomendei a D. Tudinha! Pra andar dentro do bicho é preciso um contorcionismo danado. Coisa de dá nó cego em cobra de cipó.