sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

A Centelha


Um dia , ouvindo uma saudação minha a um ex-professor, ela confidenciou a amigos que gostaria que fosse  eu o escolhido par saudá-la em alguma solenidade. Achou, em meio a minhas palavras laicas, mas banhadas de poesia, que havia alguma coisa de sagrado nelas, afinal a poesia é sempre  um tipo de  prece, de oração . O tempo passou, encontramo-nos tantas e tantas vezes, pelas ruelas da vida e, infelizmente, o momento da saudação nunca chegou. Hoje, ela partiu e as palavras já não ressoam e já não parecem ter força ou sentido.

                                    A rigor, diante de uma vida tão longa e pródiga, nem deveríamos ter motivos para blues e tristezas, mas para celebração pela dádiva de uma existência tão fulgurante. Nossa madre foi uma criatura ímpar. Profundamente espiritualizada,  dirigiu os destinos de muitas gerações de caririenses, sem ranço, com profunda compreensão dos conflitos de idade, usando sempre o amor como mola mestra do educar. Soube acompanhar os tempos e suas mudanças,  vezes cataclísmicas e estonteantes, sem estardalhaço, com os pés fincados sempre no chão da sua religiosidade, mas com os olhos fitos no futuro.  Lembro que convidado para fazer uma palestra no seu colégio, sobre Gravidez na Adolescência, alguns professores preocuparam-se sobre a necessidade de apresentar imagens anatômicas e meios anticonceptivos, temendo mexer com sua susceptibilidade. Madre Feitosa assistiu a toda a apresentação com uma tranquilidade monástica, em nenhum instante demonstrou qualquer excessivo pudor ou mostrou-se incomodada  com as fotografias e as imagens projetadas. Sabia que, no fundo, o amoral reside na alma das pessoas e nas suas disformes relações com o mundo e não em frágeis palavras ou meras ilustrações.
                                   Sempre imaginei que a possibilidade de melhorarmos o planeta depende do nosso esforço em ampliar o sentido de família. Quando o homem conseguir entender que somos parte de uma imensa parentela, muito além do simples clã sanguíneo, e que nossa casa chama-se Terra, que somos todos irmãos, independentemente de cor, de raça, de reino, de religião, de condição social, a sobrevivência sustentável do planeta estará assegurada. Nossa Madre  não teve filhos biológicos, mas tornou-se uma invejável matrona bíblica, pelo simples fato de adotar  milhares de alunos como rebentos seus. Cuidou-os e orientou-os utilizando o mais poderoso instrumento pedagógico: a compreensão substituindo a punição; o diálogo aberto ao invés do autoritarismo; a força do exemplo  antepondo-se ao vazio das palavras. Não bastasse isso, nossa Madre Feitosa fez-se o esteio espiritual de muitos pais e amigos, orientando vidas, mostrando caminhos, confortando e amparando pessoas nas fases mais tenebrosas de suas trajetórias. Próximo dela tínhamos a certeza de que sua espiritualidade fluía das regiões mais abissais da sua alma. Não era um simples verniz, um mero adereço. Era uma pessoa de muitas certezas e poucas dúvidas.  A autoridade saltava do seu sorriso, das suas palavras doces, pausadas e medidas. E foi, certamente, esta centelha interior  que a manteve lépida, atuante, vívida por quase um século.
                                   Queria ter dito todas estas palavras antes da solenidade final a que todos um dia estaremos sujeitos. Mas teimo em encontrar no meio do desapontamento da perda, motivos de celebração e de regozijo. Turva-me a tristeza da impermanência, mas louvo e congratulo-me com vida por nos ter privilegiado por tanto tempo com sua presença. Destituídos da couraça material, sobrevivemos nas obras que edificamos. Alguns esculpem na lâmina das águas, poucos na dureza magmática das rochas. Madre Feitosa burilou almas, lavrou na seara do espírito. Seu sorriso e seu doce continuarão vivos , fulgurantes em todos aqueles que um dia dela se acercaram. A luz com que ela iluminou nossos caminhos era um mero reflexo da centelha do divino que dela se irradiava.

Crato, 28/12/2019

sábado, 21 de dezembro de 2019

Os convivas para a festa


O aniversário que celebraremos no próximo dia 24 de dezembro, que já se repete, festivamente, há mais de dois mil anos,  é de um simples filho de um carpinteiro da Palestina. Os pais, perseguidos, tiveram que emigrar para o Egito, não muito diferente do que fazem hoje hordas de africanos. Tentou mudar os rumos da história, buscando um mundo mais igualitário, embora soubesse que para todos estes visionários existe uma cruz armada e pronta a esperá-lo em algum Gólgota. Arrodeou-se de discípulos simples, entre eles um prostituta e vários pescadores e até um traíra a quem conhecia tão bem e sabia que fazia parte do script da sua vida.  Pregou a solidariedade, a compreensão e a tolerância.  Em momentos em que a luta era necessária, não vacilou:  expulsou os vendilhões do templo a chicote , sabendo que conspurcavam o sagrado e, com a antevisão que nos séculos seguintes eles se multiplicariam , abrindo lojas de departamentos em seu santo nome. Sabia, também, a importância da alegria, da felicidade e da celebração da vida, transformou barris de água em vinho nas Bodas de Caná. Aos que o agrediam, dizia que era preciso  oferecer o outro lado da face. Preso e julgado de forma parcial, foi levado à morte por um tribunal de exceção. Pilatos, num gesto que se repetiria reiteradamente na história, lavou as mãos, preferindo o beneplácito político da população, à legalidade.
                            Nosso aniversariante via nas crianças uma extensão do divino: nunca imaginou que seriam fuziladas nas favelas e nos morros como prendas de caça. Fugiu da pompa e das festas de gala e se misturou com o povo mais pobre e desfavorecido: os humildes serão exaltados, apregoava pelas montanhas. Acreditava que toda fatia de pão, por mínima que fosse, podia ser dividida, num repetido milagre de pães e peixes.
                            No dia 24 próximo é a festa de aniversário deste pobre palestino que mudou , definitivamente, o curso da história humana em nosso planeta. Assim, se você tem como irmãos apenas os que pensam exatamente como você; se não lhe interessa o planeta, nossa casa, como um legado para as futuras gerações; se os diferentes, na sua concepção, precisam ser exterminados; se a mentira faz-se a sua linguagem mais habitual; se caridade para você é um sentimento exclusivo do período natalino;  você não é um dos convivas desta festa . Se vocês pretendem comemorar à altura do aniversariante, fujam da pompa, dos votos de boca pra fora, dos perus e dos pernis. Abandonem os presentes e os amigos secretos. Basta um olhar carinhoso para o irmão ao lado, uma visão cristã para mudar as injustiças do mundo, um grão de solidariedade, a percepção que somos todos exatamente iguais, independente da cor da pele e do tilintar das moedas. Basta isso e a festa estará completa, Ele terá a certeza que toda sua luta e sacrifício  não foram inglórios, que existe sempre a certeza de que ainda restam discípulos seus,   cristãos verdadeiros no mundo,  além dos discursos natalinos e do brilho das árvores de natal.

Crato, 20/12/1952

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O docinho de Isabel Virgínia



                                                               Neste finalzinho de ano, minha filha mais nova, Flora, colou grau em Medicina.  Embora o mesmo feito tivesse acontecido com dois outros, anteriormente, Ricardo e Helena, que também seguiram a mesma vocação do pai,  e com a minha penúltima, Denise,  que buscou os rumos do Direito, a alegria é sempre renovada. Lembrei, imediatamente, quarenta e dois anos atrás, quando, no mesmo dezembro, um menino, filho de professores,  cheio de ilusões , olhos brilhantes,  degustava o gostinho de objetivo alcançado, parecido com aquele sabor de doce do leite de Isabel Virgínia. As folhinhas passaram céleres no calendário da vida. Como dizia o nosso Pe. Antonio Tomaz,  hoje: “Os desenganos vão conosco à frente e as esperanças vão ficando atrás”...

                                               Como num estroboscópio, sucederam-me imagens dos primeiros e duros  tempos de luta de um cirurgião geral no interior de um pobre estado do paupérrimo Nordeste. A Residência estafante.  O difícil começo de vida, os sucessos e insucessos. Os plantões davam-nos a certeza de que íamos dissipando o valioso tecido da vida: estávamos sempre de guarda enquanto o mundo palpitava do lado de lá dos nossos portões. Postos na terrível fronteira entre a saúde e a doença, entre a moléstia e o bem-estar,  a vida e a morte, vezes confortava-nos o restabelecimento dos pacientes, outras exasperava-nos a nossa impotência frente à inexorabilidade da velha da foiçona. Antes de reclamar do afastamento inevitável  dos filhos e da família, compreendíamos que, abraçando a Medicina, adotávamos, imediatamente, uma família bem mais ampla e desamparada. Se os proventos não pareciam proporcionais aos esforços, rápido o médico entendia que há outras formas de pagamento bem mais gratificantes e duradouras que o simples tilintar das moedas.
                                               Pensei em tudo isso quando na solenidade observei a mesma sensação de alegria e realização  no rosto de Florinha. E percebi que a corrida estava apenas começando, os ônus e bônus da profissão, como num videogame estão espalhados nas várias etapas futuras deste Mortal Combat. Tantos anos depois, certamente, a minha experiência de vida  tem pouco a ensinar às novas gerações. Mudou o mundo, mudaram os costumes. A nova leva de médicos está profundamente ligada à Tecnologia. Vivemos em tempos de Cirurgia Robótica, de Telemedicina, dos incontestes avanços da Informática e da globalização. Novos medicamentos, novas técnicas, novos instrumentais de terapêutica e diagnóstico subverteram, quase totalmente, o esculápio hipocrático de pé de leito. A relação médico-paciente  ficou mais distante, seguindo a distância regulamentar que se tem inserido entre todas as  pessoas. Como a relação passou a ser mais comercial, o fórum para resolver os conflitos não mais é o diálogo, mas os tribunais , sob a égide do Código de Defesa do Consumidor. O coleguismo nas escolas foi substituído pela competição. Universidades caríssimas formam turmas orientadas muito mais ao mercado do que às almas. A visão social da Medicina , tão preponderante entre nossos pais e avós, foi descartada em alguma lixeira hospitalar. O médico hoje trata as doenças visíveis e observáveis pela imaginologia, já não os interessa as suas causas. Falta-lhes a percepção de que a maior parte das mazelas que acomete o grosso da população de esfomeados do país não é curável pelos medicamentos, mas por ações políticas. Sentem-se e sentam-se no topo da pirâmide e não lhes interessa mudar essa realidade confortável. Afinal, se ali chegaram, acreditam ter sido por mérito pessoal. Como se nessa corrida até o topo, todos tivessem largado nas mesmas condições e alguns já não tivessem, à sua disposição,  escadas e elevadores especiais. Tendo investido muitas vezes fortunas na formação, alguns empenhados no mercado financeiro por trinta anos, o Juramento Hipocrático  da solenidade é mera retórica e formalidade.
                                   Se o arsenal tecnológico evoluiu da água para o vinho, o mesmo não aconteceu com a dor, o sofrimento, a miséria, a angústia, a depressão. Todos eles continuam bem presentes, vívidos e multiplicados. Se novos remédios surgiram,  doenças novas nasceram ou renasceram : a AIDS, a Dengue, a Zika, a Chikugunya, a Gripe, o Ebola,  a Desnutrição, o Suicídio,  o Autismo, a Pobreza-- esse imã potentíssimo de doenças e achaques. As enfermidades criaram marra e  atacam os guerreiros da saúde: hoje os médicos sofrem de quadro depressivos, de suicídios, de doenças cardiológicas bem mais que a população que eles tratam.
                                   Assim, tenho pouco a oferecer aos meus colegas recém formados. Até porque continuo crendo que  o encontro de uma alma com outra alma, de um coração com outro coração tem um poder de cura muitas vezes acima dos medicamentos mais modernos. A sensibilidade social para o médico, no meu entender, faz parte intrínseca da nossa Arte. Uma atividade profundamente humanística não pode prescindir da ética, do desprendimento, da bem querença, do fazer o bem sem interessar a quem. Sem isso, qualquer profissional, por mais habilitado que seja, não passa de um simples técnico, um hábil consertador de fogões ou tv´s, faz artesanato, mas não faz Arte. Como Pedro Nava, entendo que ler Machado de Assis ,Balzac, Manoel Bandeira, na nossa atividade, é tão  importante quanto estudar  nos livros de Cirurgia e de Medicina Interna.
                                   Queria, de coração, passar estas crenças para a geração de Florinha. Mas sei , perfeitamente, que rirão de mim e terão a clara certeza de que estou velho demais, a caminho da demência que já se esconde pelas esquinas e vielas à frente. Essas minhas verdades servirão pouco para vocês. Esqueçam tudo ! Mas lembrem-se :  sejam felizes ! Torço para que vocês também,  daqui a alguns, assistindo à formatura dos filhos, ainda deleitem-se como se lambessem o doce de leite  da nossa Isabel Virgínia.

Crato, 12/12/19