sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A Tela é sempre um Auto-retrato

 


 

"A arte nunca é casta. Deveria ser mantida a longe de

todos os cândidos ignorantes. Nunca se deveria deixar que

gente despreparada se lhe aproximasse. Sim, a Arte é perigosa.

Se é casta não é Arte.”

                                                       Pablo Picasso

 

 

                               Diante de uma obra estranha e inusitada, tantas e tantas vezes pode nos bater a pergunta: Isto é Arte ou é Pornografia ? E esta questão tem se arrastado, em diversas nuances, na história do mundo. No Século XIX, um pintor francês, Gustave Coubert, debuxou um óleo sobre tela polêmico conhecido como “A Origem do Mundo”. Nele, em primeiro plano, estampava-se a genitália ouriçada de uma modelo deitada e despida. Só recentemente descobriu-se tratar-se da cortesã Constance Quéniaux, amante de um rico diplomata turco-egípcio chamado Khalil Bay. A tela, guardada a sete chaves, por incontáveis proprietários, o último deles o psicanalista Jacques Lacan, só em 1995 conseguiu, definitivamente, encontrar um pouso no Museu D´Orsay em Paris.

                            Recentemente, em uma rede social, um amigo fotógrafo postou uma foto de uma criança comendo, numa rua de São Paulo, uma quentinha dessas doadas por entidades de apoio social. A humildade da criança em trabalho infantil contrastava com a placa grande que lhe encobrira todo o corpo: “Vende-se e Compra-se Ouro”. Uma senhora fez um comentário dizendo que achara a foto de extremo mal gosto, que ele deveria procurar paisagens bonitas e poéticas para serem retratadas. Polêmica ateada !

                            Durante uma das Mostras Cariri das Artes, o multi-artista  João Nicodemos , numa oficina de Artes Plásticas, pintou um grande mural, com ajuda dos seus alunos,  em Juazeiro, apresentando com inúmeras mulheres , no seu cotidiano. Ao final, enquanto de longe os alunos observavam a arte coletiva, o facilitador, rapidamente, pegou o pincel untado de tinta vermelha e saiu cortando os pescoços femininos da obra, para o espanto de todos. Era um protesto contra a onda terrível de feminicídios que assola o Cariri. A organização da Mostra, incomodada,  chamou o artista ,  pediu-lhe, encarecidamente, com promessas de futuras contratações,  que desse vida, novamente às mulheres decepadas. Em uma das outras Mostras, uma peça lindíssima do grupo gaúcho “Oi Nóis Aqui Travêis” , chamada “Cassandra” ,sofreu protestos  por alguns setores mais radicais de Crato, por utilizar atores despidos na apresentação, inclusive com crônicas publicadas em rádios, acusando-a de pornográfica.

                            Uma outra performance, mais recente, causou também estardalhaço na cidade. A trupe nua, englobando homens e mulheres, em teatro de rua,  em determinado momento, fazia uma enorme roda e ficava examinando os fiofós uns dos outros. As redes sociais ( a lixeira de toda sociedade moderna) explodiram em protestos, imputando-a de esculhambação e que se fazia mera pornografia maquiada de peça de teatro. Na verdade, o grupo protestava, sim, contra a mania perniciosa e repetitiva dos falsos moralistas que vivem se preocupando com a vida do próximo, buscando controlar suas opções sexuais, como verdadeiros controladores e fiscalizadores dos ânus alheios.

                            Afinal o que é Arte e o que é Pornografia ? Acredito que a Arte carrega consigo a capacidade de nos mostrar a vida e o mundo por outros ângulos e perspectivas. A Arte estende horizontes, dissipa as barreiras e os obstáculos que o censo comum vai espalhando ao longo do nosso caminho. Diante de um quadro de Picasso, de Iberê Camargo, de Van Gogh ou de Dali percebemos , imediatamente, que existe mais beleza entre o céu e a terra do que a nossa mente amestrada , acostumada, domada  e domesticada conseguia antevê. A Arte, assim, faz Alice cair na toca do coelho e descobrir outros países com suas maravilhas desconhecidas.

                            A Arte, também, carrega consigo a possibilidade da denúncia, de mostrar as deformidades dos caminhos da humanidade, de forma poética ou ríspida, impedindo que tudo ganhe tintas de perigosa normalidade. Foi o que fez João Nicodemos degolando as mulheres; o fotógrafo clicando o contraste entre a pobreza e a opulência distante; os atores observando o traseiro alheio. Todos conseguiram , com Arte, cutucar os adormecidos e mostrar que a pornografia não está na obra de arte mas reside, sim, no Trabalho Infantil, na Homofobia, no Feminicídio. E conseguiram seu objetivo : chocar.  Os que protestaram apenas se sentiram incomodados por terem sido despertados do sono de normalidade. Quando o General, observando o imenso painel Guernica, de Picasso, que mostrava o genocídio de civis na Guerra espanhola, o perguntou se tinha sido ele que tinha feito aquilo, o pintor matou a questão: Não, general, foi o senhor, eu apenas pintei !

                            Os nus de “A Origem do Mundo” , do “Cassandra” ou da peça “Hair” realçam e ressuscitam apenas a beleza que, um dia, foi arrancada do paraíso à fórceps e a rebatizaram com o nome de pecado.

                            O que é Arte,  o  que é pornografia ? Quais os limites? Existe, em psiquiatria, um teste desenvolvido pelo psicanalista suíço Hermann Rorschach. Ele apresenta às pessoas planchas de borrões de tinta indefinidas e pergunta-lhes o que estão vendo. Com as respostas obtidas , o teste revela importantes matizes e entretons da nossa personalidade. O quadro à minha frente é sempre uma espécie de espelho, eu vejo o que sou. As obras de Arte são uma espécie de Teste de Rorschach, se bonito se feio, se arte, se pornografia depende dos olhos de quem as observa e não do que elas estampam ou representam. Se você acha a paisagem pouco definida ou enevoada e começa a criticá-la, é preciso verificar se você não é míope, se não tem catarata ou, quem sabe,  se não são  os seus  óculos que estão embaçados.

 

Crato, 25/09/24

                             

 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Os Matozíadas

 


 

 

E Matozinho, apesar da opinião contrária de seus habitantes,  não é diferente do resto do país. Cidadezinha mixuruca, perdida como uma Atlântida tupiniquim, ali as sensibilidades ficam é mais aguçadas quando se aproxima a temporada de caça ao voto. É que a prefeitura,  em vilazinhas que tais,  assume funções variadas: de indústria, de comércio, de prestação de serviços. E, ademais, a administração pública é o maior empregador e empreendedor em burgos como Matozinho. Assim, existem dois tipos de morte por ali: a morte natural , trazida pela velha da foiçona ou a outra morte, mais a varejo e penosa: “ficar de baixo”  na política local. Eleições são sempre um divisor de águas, um embate que transpõe, em muito, o lúdico e o lotérico e beira as margens da própria sobrevivência. Ficar “de baixo” ,por quatro anos ,corresponde a ser lançado no purgatório, com promessa de promoção às labaredas do inferno   e até garantia  de tridente de satanás no traseiro.

                                   Se as coisas tornavam-se sempre tensas na proximidade das urnas, como se o rastilho de pólvora entrecortasse a tabacaria, naquele ano , em Matozinho, surgiu um fator agravante: uma fagulha a mais próxima do estopim. Historicamente, a briga se intercalava entre dois grupos principais: os Cangatis  e os  Chinchorros. Eles vinham se alternando no paço municipal e na Câmara há mais de trinta anos. Os Cangatis eram chamados pelos adversários de “Caga-pra-ti”  e  os Chinchorros, por sua vez, denominados, pela equipe contrária de “Cachorros”. Contavam-se, ao longo do histórico eleitoral, baixas de lado a lado, geralmente entre cabos eleitorais que emendavam os bigodes em tempos de eleição. Pois o fator agravante foi que , naquele ano, além dos candidatos tradicionais dos Cangatis e Chinchorros, apareceu um tercius. Ou seja, o famoso Fla-Flu tradicional e quadrienal transformou-se numa melhor de três. E, para piorar ainda mais o clima já saárico, Belô de Miné tinha reais condições de levar a taça.  Ele era uma figura extremamente popular em Matozinho. Semianalfabeto, fizera a vida como camelô, vendedor de “Pomada do Peixe Elétrico” e tinha conversa envolvente e fácil e, talvez estrategicamente, se fizera sempre extremamente prestativo e caridoso. Minervina, sua mãe, era uma das mais importantes rezadeiras da vila e queridíssima de várias gerações de portadores de espinhela-caída, engasgo de espinha de peixe, picada de cobra e mau-olhado. Belô elegera-se vereador em várias legislaturas e, agora, resolvera tentar pular para uma tarisca mais alta da gaiola. E ganhara , rapidamente, enorme simpatia da população que já cansara da cantilena eterna dos Cagaprati-Cachorros.

                                   Lançadas as pré-candidaturas: Sinderval Bandalheira pelos Cangatis, Castrofo Jurumenha pelos Chinchorros e Belô , por ele mesmo, o pau começou a cantar, antes que tocasse o gongo. E os comentaristas políticos enchiam a pracinha da matriz de N. S. dos Desafogados, com suas avaliações sempre parciais e puxadoras de brasa para seu lado da sardinha. Bom é Sinderval ! Tá ganho pra Belô ! Castrofo mata no peito e marca o gol de primeira ! O velho Anfrízio Maia , com a experiência que os anos lhe trouxeram e uma frieza  de serial killer , vendo o embate interminável e insolucionável, antes de que todas as cartas do baralho tivessem sido traçadas e jogadas na mesa, advertiu os apaixonados:

                                   -- Menino ! Vocês tão contando com o ovo ainda no fiofó da galinha ! Os espertalhões ainda estão arrumando as pedras do xadrez no tabuleiro ! Fiquem quietinhos aí ! Vocês não sabem ainda a quem foi que os homens venderam nós !

                                   Emparelhados os cavalos nas convenções, deu-se o tiro para a corrida eleitoral. Matozinho tinha o seu Ibope pessoal que funcionava nos bancos da praça e, rápido se percebeu que Belô tinha botado uns três corpos de vantagem no páreo. E, prematuramente, tomou a cidade aquele clima do “já ganhou”. Até os Cachorros e os Cagaprati andavam já de crista baixa. De repente, as profecias de Anfrízio se confirmaram. Sinderval, numa quebrada de asa, avisou que desistira da candidatura e iria apoiar Castrofo. Macacos velhos, acostumados com cumbucas, entenderam que era melhor continuar dividindo o bolo por dois, do que correr o risco de ter que fazê-lo por três ou mesmo ficar por fora da partilha.

                                   A notícia pegou Belô no contrapé. Sabia, perfeitamente, que, com a união das duas famílias, seu Titanic iria a pique. À noite, mandou seus cabos eleitorais avisarem que iria fazer uma declaração oficial na praça da matriz sobre a puxada de tapete. Chegou choroso, com um lenço na mão, queixando-se da trairagem dos inimigos, como se não soubesse que política monta-se em areia movediça e que ganha quem ilude melhor.

                                   Abertas as urnas, o choro de velório de sogra de Belô, não surtiu efeito. Castrofo foi levado ao trono. Logo depois, como se previa, o armistício estratégico entre os Cangatis e Chinchorros se dissolveria.

                                   Credita-se a Jojó Fubuia, o pau d´água e poeta da vila, o registro em feitio de “Lusíadas”( ali chamado de “Matozíadas”) daquele episódio para os anais da gloriosa história da vila de Matozinho do Mato Dentro.   

                                  

Belô  partiu lá na frente

E com a ajuda da gente

Montou o cavalo do cão

Mas fecharam a cancela

Froxaro a cia da sela

Belô lascou-se no chão

 

Na  inleição, pode crê

Cabe a nóis escolher

Que chibata quer de novo

E aguentar sem sobrosso

Fumo fino ou fumo grosso

No cachimbinho do povo

 

 

                        Crato, 18/09/2020              

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Restaurante Guanabara : vira-se a última página do menu...

 Este texto foi escrito em 1998, no aniversário de 40 anos do Restaurante "O Nenen". Chegou-me , hoje, a notícia de que foi uma das vítimas da Covid-19. Reproduzo aqui a croniqueta, como um réquiem a um dos templos sagrados da boêmia cratense.

 

                                     Um Nenen de 40 Anos                                                 

 


Assim como o banheiro da nossa casa, o bar é um lugar sagrado. .É no botequim que o homem se despe das suas vestes morais, onde  joga por  terra as eternas  máscaras que usa continuamente ,nesse baile sem graça que é a vida quotidiana. O fascínio do bar vem, justamente ,dessa capacidade de  mostrar o rei nu, de lá se encontrar o ser verdadeiro, desmascarado, com todas suas fraquezas, frustrações  à mostra, após alcançarem o alvará de soltura dado pelo álcool. 


Ali se encontram , frequentemente, Mr. Jekyll e Mr. Hyde, às vezes em cordial palestra.O bar é uma extensão do divã do psicanalista, um dos únicos locais da face da terra onde ainda é possível arrancar alguma verdade das profundezas abissais da alma humana. Por isso os poetas amam os botequins. Basta lembrar o gênio de Carlos Pena Filho ao descrever, com toda sensibilidade desse mundo,  um dos mais tradicionais bares de Recife,  “O Savoy”:

 

                              “São trinta copos de Chope,

                              “São trinta homens sentados,

                              “Trezentos desejos presos,

                              “Trinta mil sonhos frustrados.”

        

         Comemoramos nesses dias os quarenta anos do Bar-Restaurante “O Nenen” . Quase meio século de portas literalmente abertas à boêmia de Crato. Digo literalmente abertas, porque esse recanto, por incrível que pareça, de há muito se  mantinha escancarado: 24 horas por dia , 365 dias por ano e, ultimamente, sentindo o incômodo supérfluo   , aboliu totalmente as portas: Para que usar trancas se nunca  fecha? 


Há quarenta anos  “O Nenen” é uma espécie de Pronto-Socorro ou UTI da boêmia cratense: o lugar onde se bebe a derradeira cerveja da noite ou a primeira do Dia ou onde   se busca cura para a ressaca, para o famoso ” gosto de cabo-de-guarda-chuva”.

        


A História oficial é a história do baile, do homem com todas suas vis e mimetizantes máscaras, do guerreiro glorioso, forte, vencedor das adversidades, virtuoso e sem máculas. A história de um povo, porém, para ser verdadeira, deve mostrar o homem despido da sua pompa, o homem na alcova e no banheiro, com todas suas fraquezas, ambições e defeitos. “O NENEN” é um compêndio completo da recente história do Crato: uma mescla de aspirações grandiosas, amores perdidos e sonhos desfeitos, na eterna busca do homem pelo impalpável e inatingível da vida que, como dizia um dos nossos mais célebres boêmios, é um pau-de-sebo com uma cédula falsa em seu topo.  

 

 CRATO, 16/01/98