sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Tá escuro ? Pois Feche o furo !

 



                                                                    J. Flávio Vieira

 

                               Sóstenes  acabara de assistir na TV à suspensão do Carnaval em todo o Brasil, pelo segundo ano consecutivo,  por conta da pandemia. Folião de carteirinha, sempre tivera a festa de Momo  como um período de depuração, a possibilidade de jogar para o porão os infortúnios e chateações do dia a dia. Naqueles quatro dias, deixava de lado o terno e a gravata colocava a fantasia da vez e tinha a possibilidade de viver múltiplos personagens: o mendigo, o padre, o rei, o maestro, o palhaço, o pirata, o motorista de ônibus, o juiz togado. Sóstenes, com um nome grego ganho em pia batismal, sempre tinha a dúvida , depois, se se fantasiava era no Carnaval ou nos outros 361 dias do ano. Quem era o personagem , quem era o real ? O barnabé que se enfatiotava para trabalhar entre carimbos e folhas de papel almaço ou o marajá que teria o curto reinado de quatro dias ?

                        O certo é que a notícia embaçou-lhe  a alma. E ele ficou a pensar no mundão de tragédia que tomou conta do Brasil, nos últimos quatro anos: a lama de Brumadinho, o incêndio do Museu Nacional, a Covid que paralisa a Terra há dois anos, as labaredas da Cinemateca, o óleo invadindo as praias do Nordeste, os incêndios no Pantanal, o desmatamento da Amazônia, as inundações de Minas e da Bahia, a seca no Rio Grande do Sul, a crise hídrica, a inflação , os deslizamentos de Petrópolis... E até uma guerra entre Rússia e Ucrânia com riscos de as bombas terminarem por explodir para lá dos seus quintais. E, de repente, lhe veio a pergunta que pareceu inevitável:

                        --- Quem diabos foi que abriu a Caixa de Pandora ?

                        A sensação que lhe ficou foi que para compensar tantas calamidades juntas seria necessário um Carnaval de ao menos seis meses. Na balança da vida tinha toneladas de dissabores em um dos pratos e o outro continha apenas gramas infinitesimais de prazer e de felicidade. As cinzas que só viriam na quarta feira ingrata resolveram tomar conta de todos os instantes. Neste baile pálido e secreto que começaria hoje, Sóstenes percebeu que havia , mesmo assim, gente demais fantasiada de Satanás, de Drácula, de vampiro, de morte, de Freddy Krueger. Haja céu para tanto inferno, pensou entre dentes.

                        No sábado de Zé Pereira, Sóstenes  resolveu sair no Bloco “Tá Escuro ? Pois feche o furo!” . Meteu-se numa enorme caixa de papelão de onde saiam apenas sua cabeça, seus braços e suas pernas. Quando lhe perguntavam que fantasia era aquela , ele dizia que era uma urna eleitoral ou a caixinha de Pandora, o que afinal dava na mesma coisa. Eram sempre os mesmo foliões que enchiam uma ou abriam a outra. Escangalhada,  dali escapavam todos os males deste mundo: mentira, ódio, guerra, pestes. Às vezes, dentro, ficava apenas recolhida em um dos cantos , uma mocinha recatada e sonhadora chamada esperança.

Crato, 25/02/22

                       

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Nos Tempos dos meus Avós

 

No tempo dos meus avós, a palavra empenhada carregava consigo ares  de coisa sagrada e irremovível. Nem necessitava presença de testemunhas ou carimbo de cartório. O que foi dito estava escrito , como hieróglifo, nas paredes de um templo. Promessa feita era promessa cumprida, mesmo que sobre trancos e barrancos. Depois é que apareceram os políticos...  E havia lá, muitos anos atrás,  os extremados: aqueles que sob um mínimo empurrãozinho, frisavam o cenho, fechavam a cara e resolviam que a partir daquele momento pau era pedra e mingau se tratava de aço inoxidável. Estes dias, numa rede social, o escritor/pesquisador cratense Heitor Feitosa trouxe à baila, uma história de um desses “opiniosos” de carteirinha. Apelidado de Cirilo Grude, a figura que morava na Santa Fé. Consta que era remediado e excêntrico e, com mania de limpeza, usava uma roupa pela manhã e outra à tarde. A mulher reclamou daquele exagero que demandava muito trabalho na lavanderia e muito esfrega-esfrega. Cirilo, prontamente, disse que se o problema era aquele, estava resolvido. A partir daí, passou a vestir apenas a mesma roupa, diariamente, não trocava até que estivesse totalmente  em  frangalhos. O Grude que o acompanhava nos panos  terminou virando sobrenome.



                        Ramiro Maia, um dos maiores livreiros do Crato, contou-me que na construção do Grande Hotel, ali na Siqueira Campos, nos anos 40, um construtor havia empreitado a obra com o proprietário José Teles. Uma inflação galopante, à época, fez com que, imprevisivelmente, todo o material de construção quadruplicasse o preço. O construtor, um pobre mestre-de-obras, levou a construção até o final. Terminou falido, mas não quis voltar atrás no negócio acordado.

                     Essa inflexibilidade era bem típica dos coronéis do Nordeste. Um dos últimos de Pernambuco, o Cel. Chico Heráclito de Limoeiro, falecido em 1974,  carregava consigo incontáveis histórias parecidas. Já idoso, promoveram na cidade um jogo de futebol entre Limoeiro e a vizinha Nazaré da Mata. Chico não conhecia bem as regras do futebol, mas ali estava apoiando sua cidade e, também, trazendo a autoridade necessária para que não houvesse qualquer possibilidade de tramoias que prejudicassem o glorioso Limoeiro Football Club. Partida duríssima, transcorreu num zero a zero incômodo, até que, no finalzinho do segundo tempo, o juiz cai na besteira de marcar um pênalti contra o Limoeiro. Um assessor do Coronel corre e explica o que estava acontecendo e a tragédia prenunciada: perder para o Nazaré, dentro de casa! O Coronel quis saber que diabos era pênalti e o assessor explicou que botariam a bola naquela marquinha, defronte da trave, e chutariam direto pro goleiro. Com quantos na barreira ? -- quis saber o Coronel. Sem ninguém, vai ser gol certo, alertou o secretário. E aí, como é , o senhor vai deixar, Coronel ? Chico matutou um pouco e, respondendo, disse que tinha dado sua palavra que a lei seria mantida. O juiz marcou, tá marcado, ele é a autoridade máxima no campo, tem que bater o pênalti !  O assessor se agoniou: Mas Coronel, nós vamos perder ! Não é justo ! Chico, então, saltou de seus coturnos. Perder ? Perder ? Tu tá doido ? Vai bater o pênalti, sim , mas do outro lado, contra o Nazaré ! E  já de 38 na mão, avisou: a lei será cumprida, mas do lado de cá, num tem filho de uma égua nesse mundo que bata pênalti contra nós ! É preparando a bola  e a bala zunindo !

                        Aqui no Cariri, o Coronel Nélson Alencar , do Lameiro, tinha palavra pétrea. Era correto e nunca se soube de qualquer ato seu que se afastasse um milímetro da palavra empenhada. Contam que ainda menino, na cozinha de casa, queimou-se numa trempe do fogão. A mãe, então, reclamou: Também não sei o que quer menino em cozinha ! O filhote de coronel retrucou: Também não sei , minha mãe ! Desde aquele dia nunca mais, na vida, pôs os pés numa cozinha. Contam  -- e aí nunca se sabe quando a coisa é verdadeira ou já se banha de folclore—que a esposa , no quarto, grávida do primeiro filho, sofria com as dores do parto e , ao ver o coronel próximo, entre uma e outra contração, gemeu: “Estou sofrendo por sua causa !” O Coronel , calmamente, teria dito: “Pois se acalme, essa é a última vez que vou lhe fazer sofrer!” Verdade ou não, o certo é que a prole do nosso Nélson ficou apenas no primeiro rebento.

                        O meu avô Vicente Vieira, lá da Lagoa dos Órfãos, em Várzea Alegre, tinha um Engenho de Cana de Açúcar e fabricava rapaduras. Um dia, irritou-se porque alguns compradores levavam a mercadoria e ficavam de vir pagar depois e não apareciam. Ele fincou pé  e jurou que daquele dia em diante nunca mais venderia fiado.  Essas determinações pétreas e inflexíveis  não são fáceis de manter, por conta da possibilidades de exceções que comumente aparecem. Dias depois, chegou um sobrinho e afilhado do velho Vicente que era acostumado a comprar rapaduras , vezes a vista, vezes para pagamento posterior. O velho nunca tivera problemas com ele. O afilhado completou a caminhonete e, passando defronte da casa, apenas avisou : -- Padrinho, vou levando dez cargas ! Na quinta venho acertar !  Meu avô, então, lembrou da palavra dada anteriormente de que só venderia a vista. Por outro lado, sentiu-se constrangido em confrontar o rapaz que , além de parente e apadrinhado, nunca lhe tinha trazido problemas.  Pediu que o sobrinho aguardasse um pouco. Fez um cálculo rápido do valor da dívida. Foi no cofre, rodou o segredo para um lado e para o outro, abriu, tirou os dois contos de réis. Foi até ao carro e entregou  ao afilhado. Que diabos é isso , tio ? O velho Vicente, então, desvendou a solução que encontrara para não esfacelar a promessa. Estou te emprestando o dinheiro para você pagar a rapadura. O rapaz recebeu, meio confuso, o dinheiro nas mãos. Vicente disse: agora me pague ! O sobrinho lhe devolveu o dinheiro.

                        -- Pronto ! Tá pago ! Emprestei o dinheiro a você ! Pra você eu empresto ! Agora fiado, fiado não vendo mais rapadura é nunca !

 

Crato, 17/02/2022                        

 

 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Beretta

 


 

                                               Os mais erados, como eu,  devem lembrar do Coroné Ludugero, um grande comediante dos anos 60. O Coroné – personagem  interpretado pelo caruaruense Luiz Jacinto da Silva -- ficou famoso em todo Brasil  junto com seu escadinha Otrope – o comediante Irandir Costa – que com ele contracenava, ambos encenando textos do grande escritor Luiz Queiroga. Luiz é tio  do compositor Lula Queiroga e da grande dama do frevo pernambucano, Nena Queiroga. O Coroné e Otrope faleceram, precocemente, num acidente aéreo, no Pará, em 1970, quando faziam shows de enorme sucesso Brasil afora. À época, trazendo um pouco de humor à tragédia, contou-se que Otrope, ao perceber a queda do avião, aflito, teria avisado a Ludugero: Coroné, danou-se ! O avião tá caindo ! E ele, na maior calma do mundo, teria retrucado: Qué que tu tem a ver com isso, Otrope ! Deixa pra lá ! O avião lá  é teu ?!

                                    Tenho uma parenta casada com um alemão e  que mora em uma cidade do interior da Alemanha. Numa das suas vindas ao Cariri , ela me falou sobre o choque cultural que se tem ao morar em outros países. Contou que, num fim de semana, estava em casa sozinha e , em pleno inverno, viu pela janela, um senhor idoso sair embriagado de um bar da vizinhança  e, a caminho de casa, tropeçar e cair desacordado. Ela percebeu, rápido, o perigo. Ele ficou com o rosto dentro de uma poça d´água e era pleno inverno na Europa. Ela rápido correu de casa e socorreu-o, conseguindo virá-lo e afastar da poça que lhe trazia um risco imediato de morte. Ligou depois para a polícia que, prontamente, acudiu e transportou o velho para um hospital. Quando o esposo voltou do trabalho, contou-lhe a história, felicíssima pela boa ação. A reação dele, no entanto, foi inesperada. Deu-lhe a maior bronca! Devia ter ficado na dela, ela não era socorrista e não tinha nada que se meter com a vida alheia !  

                                    A primeira história é uma anedota, mas  a segunda, um relato verdadeiro. Estão as duas separadas por quase cinquenta anos,  mas me parecem perfeitas para uma reflexão. À medida que a população das cidades cresceu e as vilas incharam  junto com elas, as pessoas aos poucos foram deixando a comodidade da zona rural e se apinhando em pequenos lugares nas metrópoles. Esperava-se que , dividindo cada vez mais os mínimos espaços, aglomerando-se nas ruas, nos metrôs, nos ônibus, nos estádios, fossem ficando cada vez mais próximas e gregárias. Não foi isso que ocorreu. Continuam todos isolados nos seus nichos estreitos.  Mesmo  residindo numa metrópole , continuamos a dividir nosso cotidiano  com alguns  familiares ( cada vez mais resumidos) , poucos colegas de trabalho e um ou outro amigo. Mesmo a tecnologia abriu nossos espaços gregários só virtualmente: temos milhares mil amigos nas redes sociais, conversamos com grupos de WhatsApp, conectamo-nos com pessoas na Cochinchina, mas todos não passam, em verdade, de uma espécie de Holograma. E, claro, para nós, o desaparecimento de qualquer um deles, nenhum impacto causa em nós. Não temos vínculos afetivos maiores.  Cada qual na sua concha, cada um no seu casulo, perdemos, totalmente, a visão holística do mundo. De dentro do aquário, o peixinho acredita que aqueles os vidros representam os limites do  universo. Nem adianta avisá-lo de que uma explosão nuclear está próxima de destruir o mundo. Existe lá vida do outro lado do vidro ?

                                    Esta semana, na Lombardia italiana, a polícia foi alertada por vizinhos sobre o risco de uma árvore prestes a cair em um jardim. Lá encontraram dentro da casa, estranhamente fechada,  uma senhora, Marinella Beretta, de 70 anos,  mumificada em sua cadeira de rodas dentro de casa.  Havia falecido   há mais de 02 anos, sem que ninguém tivesse dado pela falta: um familiar, um amigo, o padeiro, o vendedor. Na Itália, é bom lembrar, mais de 70% dos idosos vivem sozinhos. Marinella não é exceção.

                                    Um jornal italiano resumiu, com perfeição, o ocorrido: a grande tragédia não  foi o desconhecimento da sua morte, mas  não terem notado que ela estava viva. Mas a quem interessava, não é ? Afinal  o avião não nos pertence !

 

Crato, 11/02/22

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Hipotermia

                                                                                                              J. Flávio Vieira

 Esses são tempos, amigos, em que a Utopia foi substituída pela Distopia. Eduardo Galeano dizia que a Utopia tinha a função de nunca nos fazer parar. Como a cenoura que se dependura na vara diante do cavalo. Estes, no entanto, são tempos em que paralisados, apenas observamos, tacitamente, o teatro de horrores ao nosso redor. O massacre de um negro no Rio que cometeu o crime hediondo de reivindicar seu salário de trabalhador informal em um quiosque. Vítimas de inundações, no sudeste do país imputados de culpados por sua tragédia por não terem “visão de futuro”, eles a quem não é dado nem o direito de vislumbrar saídas no presente. A Ômicron sendo recebida com salvas e boas vindas pelo governo brasileiro. Desmatamento recorde, índios caçados com bichos como no Século XVI. Casais agora não mais criam filhos, mas pets. Qualquer poodle de madame vale, na atual bolsa de valores da sociedade de consumo, milhões de vezes mais de qualquer menino de favela. E o país reiteradamente dividido entre pau-de-araras e bacanas, onde as pessoas são classificadas e rotuladas pela cor da pele, pela conta bancária, pela geografia de origem. No Brasil, claro, esta distopia é bem mais aguda e visível, mas , basta reparar direitinho para se perceber que ela é uma outra pandemia, bem mais antiga e muito mais difícil de se combater. No último dia 19 de janeiro, faleceu em Paris o fotógrafo suíço René Robert, de 85 anos. Ele era reconhecido, mundialmente, por fotografar astros da Música Flamenca espanhola. Entrado na oitava década , a partida de Robert nem causaria maior furor na imprensa e, certamente, estaria reservada a um pé de página do Le Monde, não fosse pela estranha Causa Mortis que poderia está estampada na sua Certidão de Óbito: Indiferença. René, numa das suas caminhadas, em pleno inverno europeu , sentiu tonturas e caiu em uma rua movimentada próximo à Praça da República na capital francesa. O local, próximo ao bairro judeu do Marais, é movimentado, badalado, apinhado de cafés e restaurantes e de uma chusma grande de turistas. A queda aconteceu por volta das 21 h e Robert ali permaneceu, sem que ninguém o ajudasse, sem que nenhum transeunte dele se aproximasse para perguntar se necessitava de ajuda, sem que um cristão ligasse para a polícia ou para uma emergência. Por volta das 06 h do dia seguinte, um morador em situação de rua ( pasmem vocês !) chamou o socorro. Robert foi levado ao hospital, mas ali já chegou sem vida por conta de Hipotermia. E o caso do fotógrafo , que teve grande repercussão mundial, por conta do seu prestígio como artista, é apenas a ponta do iceberg. Segundo associações francesas que prestam assistência a Sem-Tetos, na França, mais de seiscentos miseráveis morrem anualmente, nas ruas , de indiferença, como aconteceu com o René. E é sempre bom lembrar que no Brasil em torno de 250.000 pessoas vivem ao relento, só em São Paulo residem, atualmente, em praças, marquises e abaixo de viadutos, mais de 30.000 viventes. Certamente, como o próprio governo avalia, são incontáveis pessoas sem visão de futuro e que deviam poderiam morando em mansões no Morumbi e na avenida Atlântida. O caso de René é um emblema dos tempos distópicos em que vivemos ou sobrevivemos. Todos , como astronautas, dentro de suas cápsulas aparentemente indevassáveis. Ligamo-nos apenas eletronicamente com as outras pessoas, os filamentos de humanidade se esgarçaram. E é a frieza extrema, chamada de hipotermia, que matou Robert, que invadiu a mente e coração dos homens e mulheres e que nos levará ao extermínio pela mesma doença : a Hipotermia. 

 Crato, 04/02/22