sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

66





                                                Há que se admitir que o veículo já não tem a pressão no turbo nem dele  se espera o desempenho no motor de tempos atrás quando foi fabricado.  Já algumas peças precisaram ser trocadas, alguns parafusos arrochados, porcas  substituídas. A pintura tem o esmaecimento inexorável do tempo, a pintura metálica perdeu um pouco o brilho, tem arranhões e alguns descascamentos,  não se pergunta pelo ano de fabricação: cuida-se do estado de conservação. Fosse possível puxar a folha corrida do calhambeque ver-se-ia que a bandeirada já deu cangapé, derrapamentos aconteceram em algumas curvas, abalroadas verificaram-se em alguns cruzamentos e um ou outro capotamento desavisado em estradas sinuosas que, afinal : nem só de  planícies e de highways se constroem as veredas da existência.
                                               O certo é que cá chegamos na extrema curva do caminho extremo, como diria de lá nosso Bilac. Os desenganos vão conosco à frente e as esperanças vão ficando atrás , como , do lado de cá, gritaria o Pe. Tomaz. Animadores de neto, iscas de assaltante e descuidistas, substituímos os lazeres cotidianos por tours em farmácias, laboratórios e hospitais. Saltando da fase produtiva da vida , entramos no limbo dos pré ou quase falecidos, aqueles que precisam provar junto à previdência , periodicamente, que mantêm o acinte de continuar vivos, apesar do olho de seca pimenta do governo estabelecido. Nossas teses, ultrapassadas, serão vistas sempre como primeiros sintomas do Alzheimer pelos familiares mais jovens. Até alguns direitos básicos como estacionamento privativo e gratuito,  prioridade em filas são engolidos a seco  pelas gerações atuais e motivo de revolta nos legislativos municipais. É que ao  mundo não interessa o passado, o vivido, o produzido: laranja chupada , bago no lixo !
                                               Carrego, no entanto, a serenidade dos que não guardam muitos fantasmas e esqueletos no matulão.  Sei que não trilhei sempre o caminho tido como correto na concepção pré-estabelecida pela sociedade. Abalroei algumas barreiras na minha corrida de obstáculos, vezes por descuido, vezes intencionalmente. Pus , a maior parte das vezes, minha sensibilidade, minha intuição e meu sentimento contrapondo-se com as frias veredas da razão. Neguei-me , sempre, a guardar muitas tralhas no meu baú, cinicamente, tentei colecionar o indispensável. Busquei , intensamente, encontrar uma força superior que , por acaso, dirigisse meus passos nas encruzilhadas pantanosas que , inevitavelmente iria encontrar. Infelizmente, nunca consegui me deparar com essa luz incandescente e transcendente, tive que usar a chama bruxuleante de minha filosofia parca e pênsil, para decidir em que prato  colocar os pesos na balança. Minha vida profissional foi, até aqui, uma extensão de  uma ética pessoal que tem fundamento   na minha formação alicerçada no judaico-cristianismo, mas , principalmente, nos livros laicos que, umbilicalmente, me têm sido íntimos companheiros de trajetória. Pelos erros e acertos posso dizer sem remorsos : “I Did It My Way “.
                                               Sempre tentei carregar o fardo da existência, com uma leveza mínima, não me faltou o bom humor em todo o meu caminhar. Não poderia levar muito a sério um filme , tragicômico, em que o ator protagonista morre no final.  66, assim, é uma idade mais que significativa. Dizem os amigos que indica por si só o presente que devo esperar dos familiares , meia-meia: o famoso par de meia lupo. Alguns outros adiantam que  o 66 não é uma idade, mas uma profecia, matematicamente, a metade da metade, restar-me-ia, assim uns 25% do bolo, com muita sorte,  para   usufruir daqui para frente.
                                               Feito o balanço da viagem , até este momento, sinto-me como o menino que degustou todo o pudim de leite e sabe que este doce lhe preencherá a existência mesmo que o futuro lhe traga o amargor e o fel das folhas outonais. Como se saltasse de um trapézio, sem rede de proteção, a essência de tudo está no voo efêmero mas mágico. Pouco importa que, do outro lado, um dia, as mãos dos parceiros não consigam sustentar as do trapezista voador. A vida é o que acontece entre o salto e o baque. Chegando a 66, só peço aos amigos e companheiros de jornada que evitem, daqui por diante, me dar os meios sentimentos, os risos pela metade, os afetos de meia. Isso acrescentaria mais um meio ao meu 66 e aí , apocalipticamente, eu viraria 666, o número da besta. E já basta ! Já temos um chegando no governo e o Brasil não suportaria dois dragões de sete cabeças !

Crato, 21/12/18

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O Camelo e a Agulha






Adélio Timbaúba  nasceu e cresceu em Matozinho. Filho de carpinteiro, aprendeu o ofício com  o pai : Seu Milão, criando-se entre tábuas, dobradiças, parafusos e polcas. Menino taludo, já ia substituindo, aos poucos, o pai que se viu quase que imobilizado  por uma congestão que lhe paralisou o lado direito e o deixou com a voz meio engrolada, como se vivesse, eternamente, comendo mingau de aveia Quaker.  Desarnado,  ainda adolescente, o garoto  já tomava conta da movelaria, recebendo encomendas de gamelas, baús, guarda-roupas, mesas e tamboretes. E foi nesta atividade que passou a sustentar os pais já velhinhos e , logo depois, a sua própria família. Adélio enrabichara-se de uma morena quartuda, de peitos estufados e insolentes como se recém calibrados a trinta libras na borracharia da esquina.  Em meio àqueles relevos e acidentes geográficos íngremes e perigosos da Luzia,  terminou fazendo derrapar os pneus do seu coração.  Os filhos se foram sucedendo, em escadinha, e, de repente, viu-se Timbaúba com um time de futebol de salão em casa. Os amigos resumiam fácil a vida do marceneiro:  De dia na Movelaria e de noite na Luzia !  
                                   Se os filhos multiplicavam-se a olhos vistos, a empresa do nosso carpinteiro não prosperava na mesma intensidade. É que  , de repente, começaram a surgir, no comércio local,  peças pré-fabricadas de plástico, de madeira prensada, a custo bem mais acessível. Tinham um certo frescor de novidade, de modernismo , o que acabava por torná-las mais palatáveis. Perdiam, porém, no quesito perenidade. As peças de Seu Milão e de Adélio passavam de avós para netos, serviam como itens de disputa em inventário. Mas quem mais se importava com perenidade ? As coisas todas passaram a ter a importância de uma garrafa pet, prontas a serem lançadas no monturo logo depois do primeiro uso. Em um determinado momento, Adélio viu-se apertado como pinto no ovo. Considerou, então, ter sido um milagre de Deus, quando Idelfonso Queiroga, o então  presidente da Câmara de Vereadores, o procurou para encomendar o mobiliário da nova sede do legislativo municipal.
                                   Era uma empreita de porte vultoso, naqueles dias bicudos: estantes, cadeiras para o plenário, mesas diversas, parlatório. Queiroga, falante como camelô de feira, informou que o projeto estava pronto e a verba disponível. Pediu, então, que Timbaúba apresentasse, o quanto antes, um orçamento detalhado. O certo é que nosso marceneiro, alegre como galo campina em apanha de arroz, providenciou tudo no fim de semana e na segunda feira procurou o presidente do sodalício matozense, ainda pela manhã. Demonstrou tudo , detalhadamente, orçando toda a obra em torno de vinte e cinco mil reais. Queiroga achou pouco a mão de obra de apenas dez mil reais e pediu , para a surpresa do carpinteiro , que a elevasse  para trinta mil.  Timbaúba quase viu as boticas de seus olhos saltarem das caixas. Logo depois, no entanto, o presidente informou que era preciso, também elevar a parte do material , que inclusive já estava previsto em folha, para cem mil. Explicou, então, a Adélio que aquela era a base das obras no estado e que não podiam fugir às regras estabelecidas por lei. Disse que não haveria problemas maiores e afirmou que bastava ele assinar uns papéis e recibos que tudo correria às mil maravilhas.
                                   O certo é que depois daquela obra, as coisas melhoraram para Adélio. Logo depois foi contratado como assessor político de Idelfonso. De repente, o carpinteiro tornou-se pessoa importante na cidade, com casa própria no centro, carro novo , os filhos riscavam a cidade montados em motos e  D. Luzia , teria ido à capital, e  já fizera umas reformas nos acidentes geográficos que começavam a sofrer erosões por conta da gravidade. Andava, ainda, com os vestidos e adereços das mais finas grifes.
                                   Os matozenses , diante de tão acintosa prosperidade, não conseguiam explicar como a carpintaria de Adélio virara mina de ouro. Pelo sim, pelo não, apresentavam teorias conspiratórias as mais diversas para tentar chegar perto dos segredos daquele fenômeno.
                                   Semana passada, os vereadores acordaram com a serenata  das sirenes  da polícia em suas portas. Sete foram levados em cana, sob acusação de desvios de dinheiro público. Segundo o processo, teria havido superfaturamento nas obras da nova sede da Câmara Municipal e os assessores dos vereadores eram obrigados a devolver metade dos salários para seus chefes, sob alegação de que estavam ajudando-os em futuras campanhas.  Queiroga e os demais vereadores, ouvidos, foram soltos no mesmo dia. Jogaram a culpa toda nos seus assessores que, segundo eles, formaram uma quadrilha para roubar as parcas posses do município. A defesa deles foi a mais veemente tese advocatícia já pronunciada em Matozinho:
                                   --- Seu juiz, fomos enganados ! Não compensa a gente confiar nas pessoas ! Desculpa, viu ?
                                   Os assessores estão presos e incomunicáveis. Adélio, diz-se que avisado por Queiroga, que soubera da operação  através de um juiz amigo, no dia anterior, fez um pernas-pra-que-te-quero fenomenal. Ninguém sabe por onde anda.
                                   Dez dias depois, o prefeito Sinderval Bandeira e o presidente da Câmara, Idelfonso Queiroga,  foram   agraciados, na capital, pelo Ministério Público, com o Prêmio Asa de Águia, pelo seu empenho no combate incessante à corrupção. Dizem os matozenses  que, no quintal da repartição, enquanto a solenidade transcorria com toda sua pompa, dois personagens conversavam e riam alegremente, trepado cada um na sua árvore . Um deles, de barbas longas, comia uma goiaba e falava de coisas celestiais; o outro, enquanto chupava uma laranja meio azeda, fazia caretas e dizia que o companheiro da outra galha se equivocara : é mais fácil uma agulha entrar no fundo de um camelo do que um rico entrar no céu !

Crato, 14/12/18    
                                  

sábado, 8 de dezembro de 2018

De calça justa e camisa de força










O pior governo é o mais moral.
Um governo composto de cínicos
 é frequentemente mais
tolerante e humano.
Mas, quando os fanáticos
 tomam o poder, não há
 limite para a opressão”.


                                           Os sintomas e sinais parecem evidentes. Pela mortandade exagerada de símios é possível prever os prenúncios da  Febre Amarela.  Nem o governo eleito assumiu ainda o barco à deriva, entregue por um timoneiro bêbado, percebemos, claramente, que o trocaremos por um outro em que faltam vários cabos e parafusos na caixola. De bravata em bravata, de arroubo em arroubo, já causaram ferimentos no corpo diplomático mundial, como se tivessem quadruplicado a insanidade do Adélio. O que vem aí, parece-nos uma Frenocracia: o governo dos loucos. Já cutucaram, com vara curta, o Estado Palestino, os Judeus, Cuba, Venezuela  a Rússia e a China, antes mesmo de terem subido a rampa do Planalto. Dão ordem explícita para a polícia executar  a quem designar, por seu livre arbítrio, como bandidos e, claro que junto, terminarão por ser abatidos também inocentes que serão, rapidamente, tidos como meros efeitos colaterais do remédio aplicado. A maior parte dos ministros escolhidos ( arrancados do nosso  BBB : Bíblia, Boi e Bala)  e divulgados na mídia com estardalhaço como futuros combatentes da Corrupção pátria,  não passaria no rastreio de RH de qualquer firma privada, principalmente por conta da Folha Corrida que teria que apresentar.
                                               No último surto, o futuro governo pôs-se a esculachar os cubanos  o que terminou por redundar na saída de mais de 8000 médicos que aqui trabalhavam no Programa Mais Médicos desde 2013, geralmente estabelecidos em zonas paupérrimas, nos grotões do Brasil e em áreas indígenas e de acessibilidade quase que impossível. Rápido, noticiou-se na mídia amestrada que mais de 90% das vagas tinham sido rapidamente ocupadas por médicos brasileiros, como se as equipes de Cuba estivessem tomando o mercado de trabalho dos profissionais tupiniquins. Aos poucos, no entanto, se foi percebendo que o buraco era muito mais embaixo do subsolo. Desistências foram aparecendo, lugares inóspitos e distantes continuam sem pretendentes e prevê-se que dos quase quatrocentos médicos, cubanos na sua grande maioria, que cuidavam da saúde indígena, 90% ficarão sem subsitutos. 
                                               Temos, no Brasil, quase 450.000 médicos, se distribuídos harmonicamente país afora, inexistiria a grave crise de assistência médica com que convivemos. O grande problema é que desde o período colonial há gravíssimas distorções de distribuição. 60%  destes médicos estão concentrados  nas Capitais que , juntas têm uma população próxima a 50 milhões de habitantes. Os outros 40%  apenas estão  no interior do Brasil que possui uma população três vezes maior de 160 milhões de habitantes. No Ceará são quase 10.000 médicos residindo em Fortaleza contra três mil fixados em todo o interior que tem uma população três vezes maior que a beira mar. O programa Mais Médicos foi uma das primeiras tentativas exitosas, em toda nossa história, para tentar minorar um pouco esta calamidade. Segundo o prof. Drauzio Varella:  O Mais Médicos foi o programa de interiorização de maior alcance e duração. 
                                               Quais as causas de tamanhas distorções?  São multifatoriais! Passam pela própria formação médica voltada para a superespecialização. Apenas 1% dos estudantes procuram, hoje, residência  em Saúde Pública.  Médicos formam-se, no Brasil,  para tratar quem pode pagar pelo tratamento. A maior parte das novas escolas são particulares, com mensalidades que variam entre R$ 5.000,00 a 12.000,00. Isso representa um investimento grande na carreira que muitas vezes, com a pós-graduação, pode chegar a 12 anos. Frequentemente, os estudantes tomam empréstimos bancários para  pagar as universidades, empenhando por muitos e muitos anos sua vida profissional. Por outro lado, existem graves problemas de estabilidade no emprego oferecido pelas prefeituras , além do não oferecimento de condições mínimas de trabalho. O salário é apenas uma pequena parte desta equação. Tirante isso, existem ainda questões ligadas à própria filosofia de vida, ao deslocamento do profissional com suas famílias para locais sem infraestrutura   mínima para uma sobrevivência mais digna. Entidades médicas propõem que talvez se estabelecêssemos uma carreira de estado para médicos do PSF, com salário digno, dedicação exclusiva e possibilidade de ascensão, como os juízes, haveria condições de ao menos minimizar esta tragédia cotidiana. Como, no entanto, financiar esta carreira, se só no Ceará necessitaríamos perto de 3000 profissionais só para o PSF, em tempos bicudos, de governo de sensibilidade social embotada e com congelamento nos orçamentos por 20 anos ?
                                               A saída dos Médicos Cubanos trará um agravamento surpreendente num holocausto histórico que já se vinha arrastando secularmente. Mas isso importa? A quem ? A elite brasileira já fez sua boa ação do milênio quando chorou e protestou pela morte da cachorrinha do Carrefour. Os que sofrerão e padecerão são a escória da escória do país: pobres, negros, índios, flagelados , nortistas e nordestinos. Devem  estes parasitas é morrer logo, para deixar de envergonhar o país, não é mesmo ?  Bandido e pobre , os bons, lembrem, devem estar mortos ! Bom dia , amigos ! Vocês ainda têm aquela panela velha e a colher de pau ? Vou ali tomar o meu bromazepam e ver se compro minha calça justa e minha camisa de força para as solenidades de janeiro !

Crato, 07 de Dezembro de 2018