sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O Defruxo-17 em Matozinho

 




 

                                               As notícias em Matozinho nunca chegavam a vista, sempre em módicas prestações mensais. Isolada do mundo, a vila necessitava das alvíssaras , caindo pingo a pingo, como numa destalaria, dos tropeiros , dos galegos , dos mascates. Nos tempos da peste, ainda não tinham chegado novidades de rádio, nem de telégrafo. O suicídio de Getúlio só foi pranteado uns cinco anos depois do ocorrido;  a derrota do Brasil, na Copa de 50, nem causou sobrosso: aportou com a notícia da vitória de 1958, aí pela metade da década de sessenta. Os mascates, assim, carregavam uma dupla função. Sortiam  o comércio local e, junto, num jornalismo pronto e informal, abasteciam de  novidades , Matozinho. Claro que, como bons profissionais de mídia, os galegos carregavam nas tintas, temperavam as estórias com pitadas  de exagero e surrealismo, tornando-as mais palatáveis e sensacionais.

                            Assim, na vila, a praga chegou primeiro que a notícia e pegou todo mundo meio de contrapé. Acredita-se que, por ironia, teria sido Afonso, também conhecido como Fon-Fon de Sumé, o caso zero de Matozinho. Chegara na noite anterior, já meio capiongo e despombalizado , tangendo  os burros carregados de quinquilharias. Hospedou-se , como sempre o fazia, na Pensão de D. Quinô. Queixou-se de uma quebradeira no corpo, de uma tosse de cachorro entalado  e de um estalecido que o vinha incomodando há uns três dias, desde a saída de Serrinha dos Nicodemos. O certo é que naquela noite Fon-fon tomou apenas um caldo de mocotó. Conforme o depoimento de D. Quinô: ele dormiu como um anjo e acordou também como um. Quando abriu os olhos  tava morto!

                            A partir daquele dia, os casos começaram a pipocar em Matozinho. O marido de D. Quinô seguiu na mesma caravana de Fon-Fon,  uma semana depois. Pe Arcelino caiu doente e esteve com a jumenta amarrada na porta, com a bagagem pronta, por mais de uma quinzena. Com uma semana já se contavam mais de cinquenta matozenses enfiados nas redes e cerca de mais de quinze que tinham ensebado o capim.

                            As boticas da cidade não davam vencimento aos atendimentos, as rezadeiras estavam roucas de puxar orações. Janjão da Botica tinha feito já calo nos dedos de tanto aplicar sanguessuga na clientela, para depurar o sangue dos enfermos. E quem matou a charada, foi Juvenal Tiburtino, um outro mascate, amigo de Fon-Fon, vindo da capital que estava empestada daquela mesma maleita: aquilo era uma tal de Carona, uma praga das estranjas e que estava matando gente, como gôgo em poleiro de galinha. Juvenal teve apenas o tempo de dizer aquilo e já dá meia volta, às carreiras: Vôte! Pernas pra que vos quero ! O diabo é quem fica aqui !

                            Matozinho entrou em pânico. Como combater um inimigo que ninguém via, nem conhecia ? Bicho cabuloso, esquisito que vivia mais escondido que quenga de beato.  Quem tinha alguma condição seguiu no rastro de Juvenal. Uns para fazendas, outros para outras paragens. As rodinhas de praça desapareceram. As pessoas se enfiaram dentro de casa e olhavam o mundo pelo buraco da fechadura. O comércio fechou, a igreja bateu as portas, a escolinha de D. Escolástica dispensou os alunos. Só ficaram ainda com algum movimento as atividades mais que essenciais: as bodegas, as boticas,  os bares , o cabaré. E, a mais essencial de todas,  a “Funerária Dessapramelhor” de Sebasto Rasga-Mortalha que, com o passar dos dias, começou a ter dificuldades de manter o estoque,  devido à procura excessiva dos envelopes necessários à postagem derradeira.  

                            O prefeito Sinderval Bandalheira, diante da doideira do povo, fez vista grossa. Começou por designar a epidemia de Defruxo-17, coincidentemente o 17 era o número eleitoral do partido adversário de Sinderval.  Avisou que aquilo era um estalecido veio safado. Que ninguém fizesse corpo mole ,  fosse trabalhar, deixasse de covardia. Tinha  falado com um cientista de Bertioga, cabra levantador de espinhela caída, tirador de quebranto e olho-gordo e até desengasgador  de espinha de peixe.  Ele dera a receita tiro-e-queda para o Defruxo-17: chá de jalapa três vezes ao dia. O chá reverberou nas orelhas de Janjão da Botica, como música de rabeca. Ele tinha um estoque imenso , comprado , vejam só vocês, do maior fornecedor local da raizada: a fazenda de um sujeito chamado Sinderval. Coincidências acontecem nessa vida !

                            O que parecia um simples surto, no entanto, começou a se alastrar. O prefeito viu-se pressionado de vários lados, como  pé de milho em roça com maracanã. Precisou distribuir, com enorme contragosto,  o dinheiro público, que ele tinha como seu, sob pressão de uma horda de famintos que ameaçava saquear a cidade. Uma cunhada sua caiu doente, pegou uma tisga danada , um puxado infeliz e , empanturrada de jalapa, fez o check-in com São Pedro em pouco dias. Sinderval resolveu, então, dividir o ônus da calamidade e contratou um Secretário de Saúde. Janjão imaginou que seria o candidato natural ao cargo. Qual não foi sua surpresa quando viu a nomeação do Cabo Albertino, conhecido por todos como Cabo Tino, para a função ! Como justificativa, Sinderval  afirmou: aquilo era uma guerra e para tanto convocara um general para comandar as tropas contra o inimigo feroz, o Defruxo-17: Cabo Tino !

 

Defronte da prefeitura, um Tino, investido  em ares bélicos, à Duque de Caxias, fez sua ordem do dia para uma plateia escassa de funcionários:

                            --- Povo de Matozinho! Estamos em guerra! Desde este momento tô fazendo campana! Este tá de Defluxo vai ver com quantas tariscas se faz uma arapuca ! Defluxo!  17 é macaco ! Pois agora você vai enfrentar o King Kong, seu filho de uma Ronca e Fuça ! Se aprepare ! Quem já foi domador de circo, como eu, enfrentou manada de caititu  em carrasco, vai lá ter medo de um bicho véi miúdo e melenguento? ! Preparar, apontar, fogo !

                            E mostrando as mãos teatralmente, perorou:

                            ---  Se eu te pego, Defruxo, com esses dez dedos aqui , tu bota a língua de fora e chama mamãe !

                            Nos dias seguintes, já cedinho, o agora marechal  espalhou , pelas vielas de Matozinho, potes e jarras cheias de chá de jalapa e obrigava a quem passasse na rua a tomar uma talagada. Quem se recusasse a tomar a beberagem ia preso. Semanas depois, vindo do sitiozinho onde morava, a pé, deu com uma raposa raivosa, na estrada,  que o atacou, sem piedade e o teria matado, não fosse a ajuda dos cachorros da vizinhança.

                            No outro dia do atentado, lanhado como se tivesse caído numa betoneira, estirado na cama, coberto de gaze, só os olhos de fora, ouviu quando o soldado Jeremias ,que quase  tinha batido as botas, recentemente, quando pegara o Defluxo,  comentou com os colegas na porta de casa:

                            --- Tarzan não aguentou nem uma raposa  vindo de proa ?  Avali quando encontrar o 17,  por aí ! Vai ficar mais rachado  que salário de assessor parlamentar !

 

 

Crato, 27/08/24

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

A Arte de engolir promessa sem se entalar

 


“Promessas e bolachas nasceram para ser quebradas”
Jonathan Swift

 

                                               Semana passada,   aconteceu, em Fortaleza,  uma solenidade que uniu o nosso prefeito municipal, representantes da URCA e o Secretário Estadual de Saúde, onde foi apresentado um projeto para criação da Faculdade de Medicina de Crato, desta vez ligada diretamente à Universidade Regional do Cariri. A manchete ganhou o noticiário, com os bons auspícios de aceitação do pleito por parte de Camilo Santana. Por aqui,  a divulgação carregou consigo diferentes e díspares emoções. Com a autoestima cratense, mais baixa do que salva vidas de aquário, boa parte da população abriu sorrisos largos  e sonhou com os novos tempos propícios que virão. Uma ampliação dos nossos horizontes científicos, com melhoria da rede hospitalar, reflorescimento do atendimento ambulatorial e , na esfera econômica, um fortalecimento considerável, principalmente no setores  de serviços e de imóveis.

                                 

  Outra parte dos cratenses, percebeu, imediatamente, os tempos pré-eleitorais da novidade, época em que as promessas saltam das línguas,  como peixes na piracema. Tínhamos vivido expectativas similares com o sonho de uma outra extensão da UFCA para o Crato, encaminhada pelo Deputado José Guimarães, e que deu com os burros  e os éguas   n’ água. Professores da URCA, por outro lado, lembraram as deficiências estruturais  de muitos cursos já lá existentes e que poderiam, inclusive, se agravar, se o novo projeto não se fizer acompanhar de recursos novos e um olhar reanimador para as distorções antigas.

                                   As entidades médicas, por sua vez,  posicionam-se, invariavelmente, contra a criação de novas escolas . Temos duas Faculdades, atualmente, FMJ e a da UFCA,  e nenhum Hospital Escola a lhes dar suporte.   Um pouco pensam na qualidade dos cursos e dos profissionais que dali brotarão, empunhando seus  diplomas e prontos a usá-los como navalha ou bisturi. Mas, também, marcam território, de olho numa reserva de mercado. Temos, no Brasil, em quantidade, médicos suficientes para atender à população, existem, no entanto, na distribuição deles,  realidades perversas. 60% dos profissionais estão fincados na região Sul e Sudeste e, nos estados, a maior parte estabelece-se na beira mar. Os interiores, o Nordeste e principalmente o Norte muitas vezes têm sua medicina exercida pelo Pajé, pelo Balconista da Farmácia e pelo Meizinheiro, com se vivessem no Século XIX. Pudera ! Até militares andam receitando em portas de palácios! Quando a proposta de abertura de novas faculdades se faz nas capitais, as entidades calam-se, tergiversam. O que é ótimo em alguns locais, para eles,  parece péssimo em outros. O que vale na minha casa não serve na do vizinho.  

                                   A chegada de novos empreendimentos mexe, imediatamente, com incontáveis e múltiplos interesses econômicos e políticos. Lembro do alarido, com a implantação da nossa URCA, nos anos 80. Diante da nova realidade, crua e irretornável, os embates arrefecem e todos se unem em busca do novo caminhar.

                                   Não tenho dúvidas quanto à possibilidade de o Crato instalar uma Escola Médica de excelência, emparelhando-se em nível com as melhores do Nordeste. Tradição é o que não nos falta e, no Cariri, temos já um invejável arsenal de ótimos profissionais nas mais diversas especialidades médicas. Claro que os primeiros passos são sempre trêmulos e temerosos, mas precisaremos fazer os consertos e acertos com a carruagem em pleno movimento. Com a total insensibilidade do governo Federal para com a Educação e as Universidades, em particular, penso que a iniciativa estadual  surge como a mais viável, até porque temos um cratense como titular.

                                   Partidos políticos, em plena efervescência pré-eleitoral, pulam das tamancas, denunciando o que chamam de manobra eleitoreira. Ao Zé Povinho não interessa a briga de comadres. Daqui um pouco as conveniências e conchavos os unem ou separam. Que venha a Faculdade, apesar dos pruridos de grupos que, na sua maior parte, visam apenas à saúde dos seus bolsos e às benesses dos seus apaniguados.  Cabe-nos incensar e elogiar a iniciativa por um lado e, pelo outro, cobrar , incessantemente a promessa feita. Com um olho no gato e o outro na sardinha.  É que, nos últimos tempos, temos engolido mais promessas quebradas que bolachas fraturadas e já andamos com engulhos e ânsias de vômito.  Que ao menos a Faculdade de Medicina possa minorar um pouco nossas náuseas.

 

Crato, 19/08/2020