sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Gatos & Lebres

Cleudo despertou na quarta, no meio da tarde,  meio Rimbaud, após a Temporada no Inferno. Na boca, o gosto indefectível do cabo do guarda-chuva. Sons múltiplos , ébrios e dispersos ainda reverberavam-lhe  nos tímpanos, como carrilhões à distância. Odores os mais estranhos subiam-lhe pelas narinas como se enfrentassem as íngremes ladeiras dos Quatro Cantos: o acre cheiro do xixi e  o oleoso cetônico  das frituras mesclavam-se com o gasturento pituim, o  álcool, a maresia dos baseados, raramente contrabalançados pela fragrância saneadora da loló e do lança. No corpo ainda estavam atavicamente marcadas, como uma tatuagem, as cicatrizes muitas dos dias de folia; mas que agora, nas Cinzas, perspegavam-lhe uma incômoda sensação , como as marcas  indeléveis de um crime perpetrado. Zonzo, buscou o chuveiro como uma tentativa de ressureição mas, também, como se apagasse as provas de um ilícito. A água, escorrendo corpo abaixo, como uma massagem, aos poucos lhe foi trazendo flashes,  ainda que confusos, do dia anterior.
                                   Soltara-se , à deriva, pelas ladeiras de Olinda, já de manhãzinha. Uma Via Sacra pelas bodegas do Guadalupe, pelo Bar do Reggae, pelo Cavalo Marinho de Diles. Depois , sem nenhum amparo, seguiu pelo Amparo , atrás de  Troças a esmo, sem GPS e sem brevê : “O Ceroula”, o “Taqui Procês”, o “Segura o Cu”, o “Marim dos Caetés”, o “Eu Acho é Pouco” , o “Elefante”. Saltitava de bloco em bloco, como borboleta em campo de girassol. Lembrou que encontrou alguns amigos no percurso e acabou cultivando outros tantos. O frevo corria solto com sua batida frenética e suas circunvoluções em montanha russa. Na pista, o passo acrobático investia-se de equilíbrio de colibri e piruetas  de malabares.
                                   As imagens pareciam-lhe mais nítidas e sequenciais até o finalzinho da tarde, a partir daí, as recordações apareciam estroboscopicamente entrecortadas, sem conexões claras. O porre certamente contribuíra para a amnésia, como também as talagadas de loló e as “bolas” no “Maconhão”. Não conseguira decifrar o mistério da sua volta à casa. Como retornara ? Que alma caridosa o ajudara ?  De repente, como um clarão, abriu-se uma clareira na sua mente. Viu-se no Alto da Sé agarrado com uma loura escultural, aos beijos, envolto numa aula de nível superior de alfabetização em Braile. Um nome, de repente, saltou-lhe na cabeça : Iris ! Via-se numa viagem astral, como se do espaço observasse a repetição da cena, quando, nos amassos, tentava derrubar o muro de um casarão de mais de cem anos. Depois , viu-se com Iris, entre lençóis, numa casa pequena, de Olinda, dormindo de conchinha, ambos com sorrisos  pós-prandiais, fartos e realizados. Estes foram os derradeiros quadros que conseguiu arrancar da memória, como a cena final de um filme feliz : The End.
                                   Pelo resto do dia, Cleudo não conseguiu arrancar Iris dos  pensamentos. Onde estaria agora? Ainda a encontraria algum dia, para as cenas de próximos capítulos? Ligou para alguns amigos mais próximos, mas ninguém deu notícia do acontecido. Não havia testemunhas. Teria sido um sonho?
                                   Na quinta feira, começou o ano no Brasil. Os homens arrancaram as antigas máscaras momescas e colocaram as outras do seu cotidiano. Cleudo voltou ao trabalho, aposentando as serpentinas e os confetes. Aos poucos, Iris  foi-se  tornando etérea, evaporando-se junto com as lembranças do Carnaval. Na semana seguinte, no entanto, a lavadeira trouxe-lhe as roupas lavadas e engomadas. Junto devolveu algum dinheiro e papéis que ela havia encontrado na bermuda olindense. Enquanto separava o joio do trigo, encontrou um cartão de visitas lilás que lhe prendeu a  atenção.




IRISMAR M. ANJO
MASSOTERAPEUTA
Rua  do Rosário , 320
Bom Sucesso - Olinda - PE
Fone- (81) 9989374022
                                  
                                    




                                              Abriu as janelas do rosto num sorriso. O destino parece  trouxera de volta seu amor carnavalesco. Iris voltava a ser uma realidade palpável, pensou consigo mesmo, enquanto degustava o adjetivo mais que adequado. Pensou em ligar imediatamente, identificar-se, marcar encontro e a sequência daquilo que pensara ser um filme, mas agora descobria que se tornaria uma série. Olhou o cartão, novamente, com cuidado e seu entusiasmo, de repente, enuviou-se.  O nome Irismar lhe pareceu meio dúbio: atirava para tudo quanto era de lado. Havia , ainda, uma mescla do  prenome da sua Iris  com o sobrenome que parecia mais uma premonição do que um substantivo próprio. Preferiu deixar que a Iris ,que viera num sonho, esfumaçasse-se naquela típica fugacidade impressa em todas as coisas do Reinado de Momo. Como se mordesse um caju e se deleitasse com o inefável docinho escorrendo pelos cantos da boca, mesmo sabendo que ele podia ser apenas o prenúncio do travo que  lhe embotaria o paladar no finalzinho do último ato.

Crato, 23/02/2018  
                                  


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Longa vida, ágeis mãos...


“Eu sou uma parte de tudo, tal
como a hora é uma parte do dia.”
Epicteto

               
                                              
A vida, amigos, olhando assim de relance, parece carregar consigo uma injustiça congênita. Alguns nascem em palácios e outros em manjedouras. As oportunidades nos são distribuídas de forma díspare e pouco  equânime. Numa extremidade muitos passam fome, na outra alguns fazem dieta. Se repararmos direitinho, no entanto, existe um socialismo vital que funciona como uma balança de precisão. A Morte nos iguala a todos: o produto final de sonhos, aspirações, ambições , querelas e vaidades  é sempre o mesmo : o pó. Além de tudo , equanimemente, a cada um de nós só é permitido viver um pequeno e ínfimo fragmento da história da humanidade. Com sorte, vararemos uma centúria, seremos testemunha ou protagonistas de alguns fatos históricos e o destino final de cada um , por mais aventuroso e épico que o pretendamos,  sempre desaguará na foz do esquecimento. A única possibilidade que nos resta para ampliar e esticar um pouco a pequena quantidade de vida que nos é presenteada,  é buscar fazê-la mais intensa, mais pulsante. Podemos turbiná-la com os combustíveis propulsivos mais corriqueiros: com Esportes, com Vícios, com Virtudes. Sempre é bom, no entanto, lembrar: se acendemos a vela nas duas extremidades, existe sempre a possibilidade de se ter um brilho bem mais intenso, mas , possivelmente, a parafina consumida rápido, tornará a luz mais incandescente, porém mais fugaz.
                                   Nestes dias comemoramos uma história de vida que, simplesmente, quebra a inexorabilidade desta regra. O percurso de um desses raros visionários que cedo entendeu : diante de uma tragédia social reiterada, planejada meticulosamente , sempre era possível fazer a nossa parte, mesmo ante as crônicas cegueira e surdo-mudez dos governos instituídos. O Padre Ágio Moreira escolheu o trabalho social como intensificador de sua existência. Intuitivamente, despertou para as forças libertadora e transgressora da Arte e foi assim que, há 50 anos, fundou a SOLIBEL -- Sociedade Lírica do Belmonte -- aqui em Crato. Inserida numa comunidade periférica e rural, de pequenos e pobres camponeses, a Música , simplesmente, mudou destinos, transformou mentes e corações, imantou gerações com novos valores e novos encantos, abrindo horizontes e perspectivas. É que a Arte tem esse poder único de conectar espíritos e de inseri-los como peça única e  insubstituível da grande colcha de retalhos universal. E imaginar que a música erudita, tida sempre como de elite e inalcançável aos mais humildes,  seria capaz de enfeitiçá-los e enebriá-los ! Emociona-nos ver, hoje,  a nobreza aplaudindo os humildes camponeses que provam que é possível manejar tão bem a enxada e a foice como o violino e o violoncelo ! Parece claro que todas as nossas diferenças  são uma questão inerente ao acesso e à oportunidade.
                                    Quebrando todas as normas, o brilho do nosso sacerdote o fez longevo, fazendo com que sua missão ultrapassasse uma centúria e, ao contrário do que seu nome pareceria indicar, não recebeu lucros da sua messe e do seu trabalho hercúleo nunca auferiu nenhum ágio.
                                   São estas pequenas e individuais ações que movem as catracas do mundo. A evolução da humanidade sempre dependeu de visionários que conseguem enxergar para além dos muros do seu pomar. Melhorar um pouquinho o colorido do meu retalho faz com que toda a colcha fique mais bela e mais fulgurante. Que país construiríamos,  se a caridade fosse substituída pela justiça social e se os governos instituídos gozassem da mesma força e sensibilidade do nosso Padre Ágio Moreira ?!  A SOLIBEL , apesar de todas as desesperanças e percalços dos últimos tempos , ensina-nos todo dia a música e a coreografia de novos tempos que se prenunciam.

Crato, 02/02/18