sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Urano de asas partidas

“ o universo é uma tremenda loira
que vive no infinito
eu faço cócegas no seu pé”
                                                  Geraldo Urano




                                                               Existiram tempos menos poéticos do que os que vivemos agora?  Nos Estados Unidos,  Trump estrompa todas as regras de pacificidade entre os homens. A Síria se tornou um imenso cemitério a céu aberto, onde a dor e o sofrimento tomaram tintas de normalidade. Hordas de migrantes cruzavam oceanos, em precárias embarcações, fugindo de um mundo conflagrado e , quando escapam da morte, se  defrontam com  o rosnar de ódio e ranger de dentes do primeiro mundo. Guerras de fundo religioso estão a demonstrar a ineficácia das religiões universais em estabelecer convivência harmoniosa entre os homens, em fazer da teoria dos seus livros sagrados uma prática humana cotidiana.  O mundo guina perigosamente no sentido do individualismo e do massacre de minorias. O planeta se divide entre aqueles que são ricos ( dizem que por  mérito)  e aqueles que são miseráveis, segundo os afortunados,  por inteira incompetência e merecimento.  No Brasil, um cleptocracia  estuprou  uma democracia ainda nos cueiros. Todos os poderes estão igualmente corrompidos com o intuito único de legalizar , oficializar e monopolizar o achaque  aos parcos recursos públicos. As classes abastadas , com uma sanha que beira à hidrofobia de Pit-Bull, atacam os mínimos e mais primários direitos humanos. Erguem-se, novamente, milhares de pelourinhos em praças públicas, país afora,  para o chicoteio impiedoso de descamisados, homossexuais, mulheres,  inimigos políticos, índios, trabalhadores, estudantes. Conquistas sociais centenárias caem por terra com decretos bizarros votados em conchavos noturnos e sombrios. Revogam-se as Leis Áureas e do Ventre Livre. Os recursos naturais são espoliados, sem nenhum pudor, que se lasquem os nossos filhos e netos!  
                                     Lembrei-me disso, esta semana, quando nos despedimos do maior poeta caririense da minha geração : Geraldo Urano. Sua poética fazia com que se quebrassem todas as barreiras cósmicas, históricas e geográficas. Como se entendesse que por mais distante que todos estivéssemos na viagem, ocupávamos todos o mesmo barco , seja em direção ao éden ou ao precipício. Em meio à moléstia incapacitante e traiçoeira que o acompanhou , como uma amante possessiva, por quase cinquenta anos, continuou na sua arte, como um pássaro que mesmo mortalmente ferido, de asas partidas,  permanecesse cantando. Por que ? Simplesmente porque , num planeta tão opaco , insípido e inodoro  o canto é essencial. Ele se torna a única possibilidade de demonstrar outras perspectivas banhadas de luz e de esperança.
                                   Quem vê de longe, o poeta, em meio ao caos e a estupidez humana, deve-se rir da iniciativa que parecerá pueril. Como uma criança que colocasse o pintinho mortalmente ferido debaixo da cumbuca e batesse em cima, ritmicamente, na certeza de que recobrará as forças e o sentido.  Mas, por incrível que possa parecer, acredito que a possibilidade de salvar o passarinho está mais nas mãos da criancinha do que nas daqueles que empunham o gatilho da espingarda.
                                   Não vejo futuro generoso para uma humanidade contábil, burocrática, atenta unicamente às operações de somar e multiplicar. Os códigos da vida são bem mais amplos do que os códigos de barra, impossível decompor a vida num máximo divisor incomum. Aldous Huxley se interrogava se este mundo não seria apenas o inferno de um outro planeta. O certo é que aqui coabitam também um paraíso e um purgatório. Inferno dos pobres, purgatório dos remediados, paraíso dos abastados.
                                   Os poetas , profeticamente, vislumbram um éden comum a todos. É utopia, sim, mas como subsistir sem ela ? O mundo fica mais triste e chato sem Urano, que deu suas lições e, hoje, está fazendo cócegas no pezinho da loura  universal. E ela gargalha...

Crato, 10/02/17



sábado, 4 de fevereiro de 2017

Sérvulo : Luz e Sombra


J. Flávio Vieira


                                                             Só existe uma coisa permanente neste mundo : a Impermanência. Estamos todos embarcados no mesmo trem do tempo infinito, em vagões diferentes e, pouco a pouco, vão desembarcando passageiros. Nunca se sabe qual será a nossa estação final. O certo é que ela chegará sem aviso prévio, sem anúncio dado pelo maquinista. Cada um terá o direito de observar uma paisagem temporal por sua janela, conversar com os passageiros do lado, cumprimentar o companheiro de viagem logo à frente, mas cada um de nós, apesar de seguirmos na mesma direção, perlustramos díspares embarcadouros e nos dirigimos a portos diferentes. Somos todos prisioneiros do espaço e do tempo. Fugindo de explicações esotéricas, só existe uma maneira uma forma de se abrir um portal entre tempos e gerações :  A Arte. Com ela é possível fazer com que se quebrem barreiras geográficas, temporais, espaciais e, mesmo sem a presença física do passageiro,  viandantes futuros poderão dialogar e serem tocados  por escrituras rupestres que incontáveis grafiteiros no passado foram debuxando pelas paredes do trem. A Arte tem essa capacidade mítica de burlar este fatalismo intrínseco ao nosso cortejo candente pelo planeta.
 
                                      Esta semana desceu do comboio um desses nossos queridos companheiros de travessia. Sérvulo Esmeraldo era cratense de carteirinha. Antes de se tornar artista plástico de renome internacional, transitou por muitas linguagens : Gravura, Ilustração, Pintura e a Escultura. Degustou, também, o sabor de muitas escolas como o Figurativismo, a Cinética, a Abstração, o Construtivismo. Permanece, mais claramente, na nossa memória afetiva, as esculturas geométricas de linhas, sombras e luz que foi espalhando mundo afora. Ligado umbilicalmente ao Cariri, estas formas devem ter brotado, naturalmente, das tortuosas e íngremes ruas do Crato, do relevo da nossa Chapada. E foi aqui, que ele, no ano passado, quase como um testamento, resolveu fazer sua última Exposição. À medida que o desembarque se aproximava , Sérvulo  retornava mais e mais , sentimentalmente, às suas raízes. Tinha a certeza, absoluta, que a última parada do seu trem seria na Praça dos Pombos.
                                      Sérvulo mantém aquele desígnio profético de que ninguém é profeta na sua terra. A cidade não lhe retribuiu a paixão desenfreada . Fica na nossa paisagem natural apenas uma escultura, no Alto do Seminário, doada por ele mesmo no seu retorno derradeiro. Permanece como um legado artístico que observa do poleiro a degradação arquitetônica da Vila de Frei Carlos. Edifícios em caixão , significativos ao funeral que se vai perpetrando. Monumentos públicos estéreis. Ruas frias e sem história,  demonstrando a incompetência fenomenal que sempre tivemos de fazer conviver o moderno com o tradicional, de fazer dialogar o passado glorioso com o presente desbotado.  
                                      Sérvulo parte e deixa sua arte estampada nas paredes do nosso trem. Ela continuará a encher os olhos dos futuros passageiros que, agora, terão outros cenários a desfrutar,  além dos que passam freneticamente pelas porta e janelas  do trem. Se se observar direitinho, ele continua sentado em uma das poltronas, discretamente, conversando com os que passam, apressados,  tangidos pela vida. Sérvulo , como um monge tibetano, ensina,  dia a dia ,  que , na vida e na arte, tudo se resume ao equilíbrio entre Sombra e Luz. O pássaro adejou as asas e partiu, mas fica entre nós o seu canto !


Crato, 03/02/17