sábado, 29 de abril de 2017

Afrodízio sapeca alho no Vampiro

       


J. Flávio Vieira

                                               Afrodízio  Chinchorro subiu, ontem, num banco da Praça Siqueira Campos,  e cuspiu, quase aos berros, um discurso mais inflamado que olho de menino com conjuntivite. Quem o visse de longe, teria a certeza que se tratava de um Bakunin , ou um Engels falando à massa, depois de lhe terem pisado na unha encravada. Chamou todos à luta, conclamou o povo para invadir as ruas que lhes pertenciam por direito, contra os despautérios  promovidos pelo governo com suas medidas assassinas , que rasgavam e picotam a CLT, restabeleciam a Escravidão no Brasil  e destinavam a aposentadoria  apenas para  uns poucos macróbios : Matusalém, Noé, Tália Márcia, Dr. Borges, Belo Leite.
                                   --- Às armas se for preciso ! Dignidade ou Morte ! -- Vociferou Afrodízio , com rosto vermelho como se untado de urucum.
                                   Na Siqueira Campos,  muitos manifestantes já se concentravam, esperando o deslocamento até o Giradouro, percebendo que , na perspectiva do estupro, à vítima cabia ao menos o direito de espernear. Bandeiras vermelhas, pobres, professores, religiosos, organizações sociais se mesclavam , numa brilhante colcha de retalhos, uma pequena mostra daquela maior que compunha, historicamente,  a grande aquarela brasileira. Estranhamente, agora,  faltavam os membros antigos da indignação seletiva : as panelas de Teflon e as Hilux com seus adesivos Verde-amarelos. À Mídia, também, já não interessava a transmissão das levas de manifestantes, agora apelidados de vândalos e de barreira aos verdadeiros trabalhadores que seriam aqueles que não adeririam à Greve. A turba se perguntava, então,  se quem estava impedindo as pessoas de trabalharem eram eles ou o governo que produziu, em pouco mais de um ano, quatorze milhões de desempregados.  Por que servir pão de ló para os  legislativo e judiciário e só  mucunã para o povaréu ?
                                   A fala dura e progressista de Afrodízio, nosso Lênin tupiniquim, mostrou-se a  todos como típica dos tempos bicudos em que vivíamos. Chinchorro nunca fora de se manifestar publicamente, levara sempre vida reclusa e pacata. E mais : sempre fugira do trabalho,  como vampiro do alho. Até os quarenta , como filho único, vivera à sombra frondosa da mãe, pensionista de um alto funcionário da Receita Federal. Depois que seu guarda-chuva foi fazer a contabilidade com o Criador, rápido   engraçou-se da viúva de um procurador e continuou levando a vida agora sob novo patrocínio. Não precisa achar nada, só procurar o que fazer, como seu antecessor. Nem em outubro, com sol a pino, se conseguia ver suor escorrendo do seu topete. Assim, o discurso de Afrodízio desencadeou emoções díspares na plateia. Os empresários locais tomaram aquilo como uma gozação: logo quem vinha a público defender e incitar os trabalhadores, um preguiçoso de carteirinha! Os manifestantes, por outro lado, entenderam a revolta de Anfrízio como sintomática dos novos tempos : até ele -- quem diria ? -- estava se sentindo prejudicado, a que ponto o descalabro governamental tinha chegado !
                                   A turba, finalizado o discurso inflamado  e inflamável , aplaudiu-o freneticamente. Aguardavam-no para a passeata e as manifestações que se seguiriam. A coisa está feia, comentaram com ele, até Anfrízio vai fazer greve ! O homem, no entanto, ainda rubro e meio encolerizado , fez chegar ao ápice sua indignação :
                                   --- Não ! Não ! Não ! Contra esta bandalheira toda, a safadeza generalizada que agora governa esse país, eu deixo aqui o meu protesto .  Vocês, políticos,  para não trabalhar ainda precisam roubar , afanar e lascar os outros  ! Vocês não são dignos do ócio ! Irresponsáveis ! Não quero me misturar com salafrários feito vocês !  Amanhã, mesmo vou procurar emprego !


Crato, 29/04/17 

sexta-feira, 21 de abril de 2017

De Calças Baixas

                               
Tendemos a ver os novos tempos com  olhos embotados  em névoas de passado. Os novos costumes, as recentes nuances da Moral, a dinâmica inevitável do fluxo da humanidade  caem nos nossos olhos, em geral, como argueiros. Difícil se conseguir fazer um upgrade na nossa visão de mundo. O mais comum é que nos fossilizemos em algum momento da nossa adolescência. Frases como : “Nosso tempo era muito melhor !” , “Na nossa época, sim, havia respeito!” , “Esses meninos de hoje estão perdidos!” brotam, sempre,  de algum sentimentalista louco. Alguém  que reclama da Ferrari que passa veloz, montado no seu jegue ronceiro. A vida passa, as horas escorrem pela ampulheta, a paisagem se modifica e  com os costumes e hábitos não poderia ser muito diferente. Comparar , sem o necessário distanciamento, práticas e peculiaridades temporais, sem projetá-las em novos e modernos contextos é um exercício iníquo e inglório. Mas claro que nem tudo que vem banhado de novo, necessariamente, traz consigo consistência de evolução. Murilo Mendes dizia que as coisas no planeta mudam muito mais do que evoluem. Diante da Esfinge do verde , pronta a nos devorar na nossa tentativa de decifrá-la, é preciso catar as escolhas  do carcomido e do pútrido.
                        Acho, assim,  sempre temeroso fazer ilações sobre comportamentos modernos, totalmente díspares dos valores de que fui infundido. São aberrações ou apenas uma mera consequência do curso normal da existência ? Esse preâmbulo me pareceu necessário para explicar a minha estupefação,  quando venho presenciando condutas esdrúxulas de alguns futuros colegas de profissão. Estou diante de deformidades reais, com fantasia de moderno   ou   apenas ficando velho, ranzinza e obsoleto ?
                        Dias atrás, sextanistas de Medicina, da Universidade Vila Velha, no Espírito Santo, encontraram uma modalidade nova de se fotografarem antes da formatura. Todos de jaleco e estetoscópio no pescoço, baixaram as calças e mantiveram as mãos , na altura do abdômen, simulando a imagem da genitália feminina. Publicaram a fotografia em Redes Sociais com a legenda de “Pintos Nervosos”. A ideia que me passaram, claro, foi a de que, uma vez diplomados,  estariam todos aptos e com recursos suficientes para se empanturrarem em libações sexuais. Estariam na mira pacientes e acompanhantes ? As festas de término de curso, nos últimos tempos, perderam a solenidade típica de anos atrás. Frequentemente, em bailes monumentais, os novos formandos são chamados , um a um, ao som de músicas do mais baixo qualidade, muitas vezes aparecendo eles de sunga, ou fantasiados de  gogo boys, executando danças com forte viés sexual. Assim são apresentados à sociedade presente que aguarda, ansiosa, novos e exímios profissionais da arte médica.
                                   Essas mudanças abruptas coincidem com a disseminação de Escolas Médicas Privadas, geralmente cobrando altíssimas mensalidades dos seus alunos. Grande parcela destes empréstimos é financiada pelo mercado financeiro, com prestações a serem quitadas a se perder de vista. Os alunos, assim, se diplomam sem qualquer sensibilidade social ou ética. Investindo maciçamente na  carreira, pretendem, a todo custo, fazer valer, financeiramente, a aplicação. Sentem-se como meros agiotas  trabalhando na Bolsa de Valores. As especialidades são catadas, pragmaticamente, entre aquelas mais lucrativas.  As consultas e procedimentos que virão,  terão o fito único de ressarci-los  do  capital empregado, com os lucros, claro, que pensam em auferir. O paciente que já foi o fim único da Medicina , passa a ser relegado a um simples meio. Muitos dos novos profissionais falam apenas em qualidade de vida ( deles), carros importados, carreiras políticas. De há muito se vêm diplomando apenas técnicos da arte médica, alguns de grande qualidade e conhecimento científico, mas sem nada do perfil humanístico que a Medicina continua a exigir. Hipócrates é coisa do passado remoto; o Deus Asclepius foi substituído por Hermes e Mercúrio.
                                   Os futuros médicos que baixaram as calças, no Espírito Santo, infelizmente, são , hoje, o protótipo do novo esculápio. O Código de Ética já não tem nenhum significado, a nova relação médico-paciente passou a ser meramente comercial e regulamentada, pois, pelo Direito do Consumidor. Não há nenhuma diferença palpável entre o técnico de refrigeração que conserta a geladeira e o médico atual que tentará dar um jeito numa máquina muito mais complexa. É esta realidade que hoje nos salta aos olhos. E sei que vou ser chamado de retrógrado, abestalhado e velho, pois ainda creio que a confiança, o toque, a solidariedade, a compreensão,  o calor humano , a luta contra as injustiças sociais, o olho no olho são medicamentos mais poderosos que muitos outros que pendem das prateleiras das farmácias. O que presenciei semana passada não foi um strip-tease de alguns doutorandos, mas a Medicina Brasileira literalmente baixando as calças.


Crato, 20/04/17     

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Um Botão de Manacá




                                              
Um botão de manacá  pende por sobre uma pequena rocha no campo . Ele está grávido como uma promessa, pulsante na sua potência reprimida.  Resigna-se, por um lado,  sentindo-se apenas a perspectiva da florzinha vindoura. Está naquela encruzilhada dúbia e pétrea que a manieta entre a semente e o fruto. As borboletas livres e multicoloridas , adejam entre as rosas e, distantes do impasse existencial do botãozinho, já sonham com as pétalas que eclodirão daqui a um pouquinho ; do perfume que inundará a paisagem; do orvalho que pairará por entre as flores, atraindo os raios solares para o milagre refratário do arco-íris. O botão, as borboletas, os colibris  apenas aguardam o desenlace irremissível e  mágico do milagre. Como os sapos que hibernando sobre a areia esperam o clique da chuva no interruptor do sono e da vigília.
                            Imantados do ciclo natural da vida, do moto-contínuo dos solstícios e equinócios,  percebem, sem ânsia e sem atropelos,  que o botãozinho logo mais eclodirá inundando o mundo com seu aroma e seu colorido. Dias depois, o pólen  será espargido ao mundo pelas borboletas, difundindo o sêmen criador;  logo depois, a florzinha  murchará, as pétalas ressequidas cairão uma por uma na terra , adubando o solo e realimentando o manacá nas futuras frutificações. Há uma mão invisível lançando o bumerangue da vida, entre auroras e crepúsculos, primaveras e verões, entre o grão e o pomo,  o gênesis e o apocalipse.  
                            A rocha, próxima ao broto pendente, a princípio, pode empanturrar-se  de empáfia, arvorando-se ares de eternidade. Afinal está ali fixa , estática e praticamente com a superfície imutável há séculos e séculos. Vestiu-se apenas de algum limo no transcorrer de muitos anos. O botão do manacá , fatalissimamente, na sua mutabilidade, se trajará de cores, se borrifará de perfumes inebriantes para um baile único , fugidio e efêmero.  A rocha, na sua louca presunção, nem sequer percebe que o desaparecimento do botãozinho, após a festa , é apenas momentâneo e que ele voltará , logo depois, multiplicado, trajando muitos outros vestidos e adereços para o sempiterno bailado da existência. É que a vida monta-se na mutabilidade,  no corcel arrisco do efêmero. Viver é continuamente trocar roupas e figurino para o ininterrupto bailado da vida.
                            O Cariri, nesta semana, se viu chocado e entristecido quando uma das flores mais almiscaradas do seu manacá feneceu e caiu por terra. D. Newton havia preenchido de cor e aroma nossa paisagem urbana por muitos e muitos anos. Chegamos a imaginar que , como a rocha do nosso jardim, seria imarcescível.  Esquecemos, por um momento, que a vida carrega consigo , como irmã siamesa, a mutabilidade que se nutre do transitivo e do fugaz. Abatemo-nos ante  a flor despetalada, mas é preciso entender que a árvore continua firme e intacta e que o pólen acabou de ser distribuído copiosamente pelos campos opimos.  Seu exemplo, sua lembrança, seu testemunho humano continuarão brotando nos nossos pés de serra, encantando-nos com suas cores e com sua fragrância.


Crato, 07/04/17