sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Telemedicina


Oh tempora!  Oh mores !  Resolução recente do Conselho Federal de Medicina regulamentou o atendimento médico à distância, a chamada Telemedicina. Laudos de exames , agora, poderão ser feitos inclusive de outros estados, sem qualquer contato dos laudadores com os doentes. Consultas poderão ser feitas por Videoconferência, sem contato direto médico-paciente. A cirurgia robótica, também, acaba de ser regulamentada pelo CFM, sendo permitidas cirurgias comandadas por cirurgiões em outros estados ou países sem que , ao menos, tenham um simples contato físico mínimo com os operados. A decisão, claro, mexe diretamente com o exercício da medicina nacionalmente. Grandes empresas , a partir de agora, tomarão, rapidamente, para si,  a responsabilidade por grande Clínicas de Imagens. Radiologistas e imaginologistas terão seus campos de atuação cada vez mais restritos e precisarão enquadrar-se nos esquemas de grandes conglomerados e corporações, agora sob salário fixo. A novidade, inclusive, rapidamente fez com que todos os radiologistas do Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, uma das excelências no Ensino Médico no Brasil, fossem simplesmente postos no olho da rua: o serviço será agora encabeçado por uma grande empresa de planos de saúde que se responsabilizará por emitir os laudos de forma virtual.  Médicos, consultando à distância, interferirão, em pouco, nos mercados locais de Clínica Médica e não será muito diferente com as pessoas que necessitam submeter-se a atos cirúrgicos. A Medicina, a partir da Resolução  do CFM,  globaliza-se, tende mais e mais a ser conduzida por grandes empresas imantadas pelo lucro e não pelo bem estar da população.
                            Eram perfeitamente previsíveis estes caminhos, diante do avanço tecnológico. Hoje a impessoalidade tomou conta do mundo, as criaturas mais próximas estão distantes e as mais distantes, estranhamente, se puseram dentro da nossa casa. A Internet, o Smartphone, o WhatSap, uma infinidade de aplicativos, vêm tornando a vida na terra aparentemente mais simples, prática e rápida. Resolvemos quase tudo com um simples toque no celular : compras de feiras, em restaurantes, em farmácias; reservas de hotéis, pagamentos de contas... Certamente, um dia,  todas essas novidades que já eram tão presentes nos jovens, terminariam por invadir o hábito das novas gerações de profissionais da saúde e os seus clientes da geração do bitcoin.
                            Com mais de quarenta anos como médico, poderia  achar a Resolução do CFM um absurdo, uma afronta à História da Medicina, prenhe de calor humano, de olho no olho, onde a presença simples do profissional carregava consigo um valor terapêutico muitas vezes maior do que a receita que seria, depois, aviada. Acredito, no entanto, que o CFM apenas embarcou na montanha russa. Estes caminhos já haviam se tornado uma realidade fática, apenas agora receberam o seu  aval inevitável. Para novos tempos, novas abordagens médicas ! --- Assim deve ter concluído o órgão máximo da regulação ética da profissão no Brasil. Novas gerações absolverão, tranquilamente, estes avanços tanto da parte dos médicos quanto dos pacientes. Para novas mentes, novas tecnologias !
                            Bem sei que sempre parecerá   parcial e descartável a opinião de um médico de uma outra geração que deveria cuidar de suas artroses e não ficar emitindo pareceres, onde não é solicitado. O grande problema, a meu ver, é que a Medicina precisa tratar um aparelho bem mais complexo que um liquidificador. Os males físicos vêm sempre mesclados, sutilmente, com as obsessões da alma e da mente. A ansiedade, a depressão, a solidão, apesar de todo o avanço tecnológico, são enfermidades que apenas têm grassado junto às pessoas, principalmente nas grandes metrópoles. As pessoas procuram os médicos, muitas vezes, apenas para serem ouvidas, receberem uma palavra de conforto e terem a certeza de que ainda existe gente no mundo. O poder de cura, como a lei da gravidade, é inversamente proporcional ao quadrado da distância.  A Telemedicina talvez não signifique Medicina à Distância, mas Distantes  da Medicina .A  grande questão é que todos esquecem que a Medicina não é uma Ciência, mas  uma Arte.

Crato, 22/02/19

domingo, 17 de fevereiro de 2019


               
Todo santo dia era aquela peleja. Ariel, revolvendo-se entre lençóis e travesseiros, resistia a levantar. Ainda mais cedinho,  com os olhinhos sebentos de remela e com a necessidade de entrar debaixo do chuveiro, antes de colocar a fardazinha do Jardim da Infância. Fazia-o sempre sob bocejos e protestos, como se percebesse que alguém estava-lhe sonegando os sagrados direitos da meninice: a liberdade de voar, de abraçar o mundo que se lhe defenestrava lubricamente para seu gozo e satisfação. A escola, tão prematura, afastava-o dos pais, do quintal, da peteca, da bola de gude, da rua, do carrinho de rolimã. Certo que , em troca, lhe trazia uma chusma de amiguinhos, mas todos igualmente amputados das amplas e insubstituíveis  delícias da infância. A Tia era legal, cobria-o de coisas interessantes: pintar, brincar, riscar... mas o que parecia chato era aquele ar de obrigatoriedade que transformava, de repente, a mais alegre atividade em mera  tarefa de escola. Mas até Ariel já se acostumara, talvez porque já não existiam mais meninos nas casas e apartamentos, o mundo estava cheinho de velhos com seus resmungos e suas queixas. A escola era o último reduto da gurizada. Agora, o que parecia difícil de se acostumar, era aquele despertar cedinho,  o desajeitado escovar os dentinhos de leite, a tortura da água no lombo, ter que tanger para longe a preguiça inesgotável dos seus seis anos de idade.
                                   Naquele dia, sua sensibilidade de menino leu alguma coisa diferente nos olhos da mãe. Havia uma tristeza contida mas mal disfarçada que lhe vazava nos gestos, na respiração mais ofegante, no sorriso meio forçado e a meio pau. Arrumado, com a fardinha engomada a postos, tomou o mingau ainda na mamadeira, artefato que ainda não abandonara, ao menos em casa. Na escola , diante dos colegas, mostrava-se um rapazinho totalmente crescido e independente. Com a mãe chamando-o, apressada, temendo perder o horário do escritório, tomou da lancheira, pegou a alça da mochila do homem aranha  e partiu para a garagem em busca da motorista que gritava :
                                   --- Vamos, Ariel , Vamos ! Já estou atrasada !
                                   Estacou, de repente e retornou. Abriu a porta do quarto vizinho ao seu, o quarto da Vó Dina. Como  fazia, toda manhã, queria, antes de partir, pedir-lhe a bênção.  Diante dele a cadeira de balanço da Vó, estranhamente vazia. Ali ela passava a maior parte do dia. Pai e mãe , no trabalho, assoberbados e engolidos pelo cotidiano, a Vó tornara-se a  figura mais presente na vida de Ariel. Enquanto fazia crochê, diligentemente  na sua cadeira,  acompanhava o neto que se esbaldava no quarto, depois da volta da escola,  e só parava quando Dina passava a lhe contar as mais fabulosas estórias de Trancoso: o “Cumpade Foiará” , “O Gato de Botas”, “As travessuras de Senhor Reis”. Ariel observou desapontado a cadeira vazia. Lembrou que a mãe tinha contado que Vovó tinha adoecido e estava no hospital tomando remédio, imaginou que já devia ter voltado. A mãe, apressada, dando pela demora do filho, veio da garagem ao seu encontro. Deu com o menino, triste, olhos fitos na cadeira de balanço que já não mais balançava.
                                   --- Mãe, cadê Vovó ?  Ela ainda tá no hospital ?
                                   Estática, como uma presa diante do predador, ela se conteve procurando palavras para explicar que a Vó, agora, tinha virado uma estrelinha e que quando ele visse uma delas riscando o céu, ela era que estava puxando seu fio de crochê. Ariel, sempre tão pronto e atilado,  pareceu confuso , como se alguém tivesse lhe roubado a bolinha de meia. E agora, com quem ficaria brincando à tarde ? Quem lhe contaria as histórias que Vó Dinda contava ?
                                   Antes de sair, foi até à janela , olhou para o azul do céu, como se procurasse um ponto fixo no horizonte. Estendeu a mão para o infinito como se agarrasse a ponta do  fio invisível  do crochê cujo novelo estava longe, bem longe , levado por um Gato sem Botas, por um Rei sem Reino, por um Compadre agora desfolhado:
                                   --- À benção, Vó !

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Medicina no Cariri




                                                           Batista de Lima


         J. Flávio Vieira é médico em Crato. É também escritor e pesquisador, já com vasta obra publicada. Nos últimos dez anos, mergulhou na história da medicina no Cariri e produziu uma volumosa pesquisa histórica. As fontes consultadas e o rigor metodológico de que se utilizou dão a impressão de tratar-se de tese de doutoramento. Para isso, a rica bibliografia utilizada e os arquivos do Instituto Cultural do Cariri e da Biblioteca Nacional convencem o leitor de que o autor da obra é pesquisador meticuloso além de escritor de fácil manejo do vernáculo.
         “Dormindo à borda do abismo – a Medicina no Cariri cearense – 1800/1900” é o título da obra. Para chegar à sua realização, J. Flávio delimitou sua pesquisa no Século XIX e fixou-se nas cidades que compõem a parte cearense da região do Cariri. Também enfatizou as pestes que dizimaram populações nessas localidades. Entre essas doenças, destaque para o cólera, seguindo-se a varíola, a febre amarela, a bexiga e as doenças venéreas. Ao mesmo tempo, foi mostrando, ao longo do texto, os médicos heróis que enfrentaram essas pestes em um trabalho de missionários.
         As primeiras vítimas dessas doenças foram os índios que habitavam a região e que foram infectados a partir do contato com os primeiros europeus que chegaram ao Cariri. A partir daí, as grandes secas, com a fome por que passou essa população, tornaram-se porta aberta para a disseminação das pestes. Foi a partir dessas constatações que J. Flávio começou a identificar os primeiros médicos que se dedicaram a salvar esse povo adoecido. Foram abnegados que enfrentaram crenças e meizinhas primitivas oriundas do povo indígena, dos africanos e das influências ibéricas.
         O livro, editado pela Expressão Gráfica e Editora, em 2018, traz 418 páginas de informações comprovadas pela grande quantidade de documentos escaneados e postos em suas páginas. Até as fotografias desses antigos médicos, bem como os desenhos de Reis Carvalho compõem uma iconografia que enriquece a obra. J. Flávio Vieira também apresenta os costumes da época, as sofríveis condições sanitárias das cidades e o choque entre a medicina moderna que chegava e as tradicionais meizinhas de uso pela população. Daí que a aplicação das vacinas era acompanhada às vezes pela polícia diante da desconfiança da população.
         Durante a leitura é necessária uma parada para se refletir na importância do trabalho da Comissão Científica de Exploração que esteve no Crato entre dezembro de 1859 e março de 1860. O olhar médico de Freire Alemão e os desenhos do pintor José Reis Carvalho destacaram-se na leitura feita pela Comissão e chegada aos olhos da Corte imperial. Também as pesquisas de George Gardner, deixadas em livro, merecem destaque. Isso tudo culmina com o “Relatório” do Dr. Antônio Manoel de Medeiros, o grande combatente do cólera no Cariri, herói ainda desconhecido das nossas gentes.
         Por fim, o leitor chega à conclusão de que está diante de um tratado histórico não só em torno da medicina caririense, mas da própria formação social daquele povo. José Flávio Vieira se põe ao lado de Irineu Pinheiro, J. de Figueredo Filho e João Brígido como o quarteto de intelectuais que teceram a rede dos fatos que compõem a história caririense. É evidente que o assunto não foi esgotado, principalmente com relação ao fenômeno místico de Juazeiro. Acontece que dos quatro, só J. Flávio está em atividade. Daí que o leitor curioso põe sob sua responsabilidade, a continuação dessa pesquisa. Para nossa satisfação, sabe-se que ele continua sua garimpagem em torno de um segundo volume.
          
        

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A Solidão e suas Cercas




J. Flávio Vieira


“A solidão é agora tão difundida que se tornou,
 paradoxalmente , uma experiência compartilhada.”
Alvin Toffler


                                               Estes tempos  em que vivemos são tempos de cercas, muros e grades. É como se, de repente,  vivêssemos um contrafluxo da onda de globalização dos Anos 80. O isolamento é a pauta do momento na política mundial. Países constroem muros para isolá-los dos seus vizinhos, barreiras diplomáticas são erguidas contra a onda imigratória, fronteiras obliteram-se com medo do terrorismo de viés religioso. Soma-se a tudo isso um tsunami de extrema direita que toma de assalto países historicamente liberais, fundando-se, novamente, as colunas do neonazismo, da segregação racial, da perseguição religiosa, do darwinismo social. A todo esse movimento segregatório , de isolamento,  precedeu-o  um insidioso e permanente ato de retraimento das pessoas. Hoje, a solidão é a pauta do momento nas relações humanas. O Canadá, em 2016, passou a ter a maior parte da sua população morando sozinha. A Dinamarca, a Finlândia, a Alemanha e a Noruega têm quase metade da sua população com um só inquilino por residência. Calcula-se que 15% da população de todo planeta já viva com apenas um morador por casa, percentagem do Brasil nos dias de hoje. Quase a metade dos apartamentos construídos em São Paulo, no ano passado, tem apenas 45 m² , espaço quase que insuficiente para uma só pessoa habitar. E a previsão para 2030 parece alarmante: 75% dos franceses, 60% dos ingleses e 71% dos neozelandeses viverão sozinhos em suas moradas.
                                   Foi-se do tempo em que casar e ter filhos parecia ser o desejo da maior parte da população e quase que um sinônimo de felicidade. Grande parte das pessoas se exime de enfrentar os relacionamentos mais íntimos e duradouros, vezes por questões contábeis, vezes pelo dispêndio necessário de paciência e tolerância, preferem a efemeridade das relações, a cômoda manutenção das individualidades, o amor tipo delivery, o sexo  asséptico dos WhatsApp e das Redes Sociais. A maternidade já não se posta como uma necessidade básica dos casais.  Colocados nas planilhas dos computadores, filhos geram despesas imensas, aborrecimentos inimagináveis, não passam nos cálculos imediatistas do Custo-benefício. Parece bem mais barato e simples outros criatórios como de cães, gatos e demais animais de estimação. Trocou-se a maternidade pelo Pet-Shop.
                                   Há, claro, a irmã siamesa dessa atitude, que vem junto com o pacote comprado : a Solidão. As pessoas sentem-se cada vez mais sozinhas no mundo e já existe todo um mercado direcionado aos solitários de plantão. Conselheiros online, 24 horas disponíveis para conversas, cobrando preços razoáveis por hora: os personal friends. Além do aluguel de um amigo, para as urgências; o sexo pela internet e, no Japão, já existem os chamados Cuddle Cafés, onde é possível pagar para dormir de conchinha com alguém, comprar troca de olhares e até abraços. Por incrível que possa parecer, a tecnologia , que nos faz virtualmente tão próximos, nos une , em tempo real com pessoas de todo o mundo, num só toque do smartphone, por vídeos, por áudios, por fotos; consegue, contraditoriamente, nos afastar fisicamente. Sem o toque, o olho no olho, o beijo, as relações se tornaram também virtuais, distantes e facilmente deletáveis e ressetáveis.
                                   Sem o exercício diário da tolerância por muitos, como mediar de forma humana nas relações mais cotidianas ? Apregoa-se o extermínio de índios, de homossexuais, de migrantes, de pobres, sem nenhum pejo ! Não são dá nossa raça, não os conhecemos ! Vivemos tempos de franco individualismo. Cada um por si e deus (em quem já não se acredita) por ninguém. O isolamento das nações é apenas um extensão da insulação de cada um de nós. Já não nos interessa o outro : nosso único amigo é o refletido no espelho do nosso apartamento de 45m². Quando a solidão bater à porta, compraremos um sorriso na bodega da frente ou  abraçaremos um manequim da loja do shopping. Construímos nossas cercas, nosso muros, nossas grades pontiagudas, totalmente  indevassáveis. Por eles  nada passará, como disse o poeta Carl Sandburg, exceto a Morte, a Chuva, a Solidão e o dia de amanhã.