sexta-feira, 29 de maio de 2020

Pernas pra que te quero !


                         
        


 Geremildo  vivia mais tranquilo que sanguessuga em perna de tetraplégico. Solteirão, metido num pequeno comércio de Secos & Molhados, a renda não o elevava à importante patente de  empreendedor,  mas dava para o gasto. Controlado, rapa de sola, Geremildo nunca esticou o passo que não coubesse no compasso da perna. Era mais conhecido em Matozinho por um apelido que engolia sem fazer careta: “Imbuá”.  Sua única falha, segundo o experiente Ranulfo Sitônio, um mascate aposentado de Matozinho, foi ( coisa de galego de primeira viagem)  não compreender que as desgraças, na vida, nunca se negociam no varejo: adquirem-se, sempre, no atacado. Pois seu Mar da Tranquilidade, de repente, quebrou as ondas no Cabo da Tormenta.
                                               Naquele tempo, em Matozinho, os burros, jegues e cavalos começavam a ser substituídos pelas motocicletas. Vaqueiro tangia boi de moto; matuto carregava bodes e porcos amarrados nas motocicletas e conduzia esposa e filhos espremidos, botando a gata pra miar, entre o tanque e a garupa. Atrelava-se ainda a moto em pequenas carroças para a venda de quinquilharias , de pão, de verduras.   Ela passou a ser a condução moderna na vila, trazendo um certo ar de chiqueza e de importância a seus condutores. Comprava-se facilitado na capital, comia pouca gasolina, andava por tudo quanto é cuvioco, subia até em pau de sebo nas quermesses do Padre Arcelino. O Motor, como os matozenses chamavam, virou o sonho de consumo de tudo quanto era vivente daquelas brenhas. Com Geremildo não foi diferente. Quebrou o porquinho que guardava debaixo da cama, juntou os cobres e encomendou o bólido.
                                   Imbuá  lembra com saudade o dia em que recebeu a moto reluzente, trazida amarrada na sopa de Duzentos. Nem ouviu os conselhos de outros praticantes do motociclismo local. Diziam que tivesse cuidado, que tomasse algumas lições antes de pilotar o mói de ferro. Afinal aquele bicho só tinha duas rodas e tinha sido projetado para uma finalidade específica: Cair !
                                   ---  O quê ?  Quem já  amansou burro brabo e já campeou boi zebu, dentro de carrasco , tem lá medo de montar num coisa besta dessa ?
                                   Aí , Sitônio soltou a última frase  da sua morada no Mar da Tranquilidade:
                                   --- Deixe comigo ! Não quero nem saber quem cortou a perna do Saci, meus amigos ! Eu já vendi  foi a muleta !
                                   No dia seguinte, nosso filhote de piloto empurrou a moto até o topo de uma ladeira, pediu para um amigo ligar a estrovenga com umas pedaladas. Montou e desceu encosta abaixo . Pende para lá , pende para cá, parecia um perneta que tivesse tomado dois litros de fubuia. Havim, sim, lhe ensinado onde era o acelerador, mas não encontrou o freio. Lascou-se no meio de um jatobá frondoso, da margem da estrada e, quando os amigos correram, o encontraram meio desacordado e com a perna quebrada. Levaram-no para a botica de Janjão que prescreveu uns mastruz triturados para colocar no local e um chá de jalapa. Geremildo, coitado, terminou tendo que ser levado para a capital e quando voltou tinha deixado a perna direita por lá.
                                   --- Quebraram minha pernas ! Mas foi melhor do que eu tivesse esticado elas !  --Disse um Sitônio meio choroso,  mas aparentemente consolado.
                                   A partir daí,  a via crucis do nosso negociante estendeu-se no atacadão dos dias. Morando sozinho, com os gastos do tratamento e da viagem, sem poder trabalhar por meses, as finanças começaram a deteriorar. Conseguiu ,com o prefeito Sinderval Bandeira,  uma perna mecânica e a adaptação pareceu-lhe mais difícil do que pilotar a moto. Com o tempo, conseguiu andar com certa desenvoltura, até que um dia, em casa, a perna quebrou e ele caiu. Passou mais de meio dia rastejando até conseguir pedir ajuda. Soube depois que a prótese doada era de péssima qualidade, como quase tudo que vem do governo. Jurou de pé junto que nunca mais pediria  tênis a Sereia.
                                   Pois foi no meio desse sufoco, enquanto enchia, novamente, pingo a pingo, o porquinho para juntar dinheiro e comprar uma perna nova que Geremildo conheceu aquela que parecia ser  uma enviada celeste para adocicar um pouco o fel dos seus últimos meses. Cacilda lhe apareceu. Era de Matozinho, tinha passado anos no Rio de Janeiro e voltara com aquela inflexão sensual na voz que lhe deixou com a única perna restante, bamba. Chegou como uma missionária, trabalhara como promotora de vendas em Niterói e jurou-lhe, de pés juntos, que podia ajudá-lo. Reboculosa, com pneu de suporte com mais de quarenta libas,  alta e  com curvas como a ladeira do Quincuncá, a perna de Geremildo enroscou-se como visgo nas de Cacilda que se abriram em compasso como para-brisas de fusca .  Um Geremildo carente, mais seco que língua de papagaio nos Inhamuns, apaixonou-se rápido pela carioca. Rolou um clima e, em menos de uma semana, a namorada já estava aboletada na casa dele de mala e cuia.
                                   A carioca falante mostrou, então,  a que veio: iniciou uma campanha caritativa na cidade para a compra da perna mecânica de qualidade para o noivo . A igreja, políticos, amigos participaram de rifas, leilões  e bingos sequenciaram-se na campanha “ Geremildo de Pernas pro Ar !”. A apoteose  aconteceu com um bazar, no pátio da Igreja, quando uma Cacilda lacrimejante avisou, ao final, agradecida e emocionada: haviam arrecadado os seis mil reais que pretendiam e que, finalmente, seu amor iria poder andar com a mesma galhardia de outrora. Bombas rasga-latas pipocaram, fogos vararam o céu,  em meio às palmas dos matozenses.
                                   À noite, em casa, Geremildo e Cacilda comemoraram o feito com umas talagadas de  pinga e a continuação da lua de mel. Pela manhã, ele acordou com uma ressaca daquelas: parecia que tinha engolido um gato com as unhas abertas,  gogó abaixo. Chamou pela noiva: lugar mais limpo! Anoitecera e não amanhecera, nem ela nem o dinheiro arrecadado! Pegara a sopa na madrugadinha. Avisara ao motorista que estava indo à capital comprar a prótese do noivo. Mas mentira tem perna curta ! Geremildo descobriu, rápido,  que haviam lhe passado a perna. Tinham lhe dado uma rasteira !
                                   Com os dias, conseguiu superar o pé na bunda. Mas com tantas pernas perdidas , pernas enroscadas, pernas compradas e doadas, nunca mais conseguiu se livrar do apelido de “Imbuá”.

Crato, 29/05/20

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O Deus e o Carrasco de cada Um


Em plena epidemia de Covid-19, na cidade de   Bergamo,  num pico assustador da moléstia, em março último,  o Padre italiano Giuseppe Berardelli viu-se na necessidade premente de precisar de um respirador. Como tem se tornado tão frequente em algumas cidades brasileiras, todos estavam ocupados com pacientes graves à beira do precipício. Alguns fiéis da vila onde era sacerdote, Casnigo, cotizaram-se e adquiriram , às pressas, o precioso e salvador equipamento para seu pároco. Berardelli , então, observando o clima de morte iminente de vários pacientes que agonizavam, como ele, do Coronavírus,  ao seu redor, preferiu ceder o respirador para um rapaz mais novo que ele e, certamente, com mais vida pela frente e mais possibilidade de restabelecimento. Berardelli faleceu poucos dias depois, numa sombria terça feira, no vinte e quatro de março. Ele tinha apenas setenta e dois anos e estava em plena atividade missionária. O ato extremo solidário e heroico do padre Berardelli parece tresloucado nos dias de hoje, onde os verbos só se conjugam na primeira pessoa. Mas são daqueles que nos remetem, súbito, a entender que nem tudo estar perdido, que no breu sempre existe a possibilidade de alguém acender sua fagulha.
                            Em Recife, um vendedor de sanduiches tinha seu humilde ponto, há mais de quarenta anos, defronte ao Colégio Salesianos. Deve ter alimentado incontáveis gerações de estudantes, com o seu famoso “Comeu-Morreu”. O vendedor tem um apelido inesquecível: “Barruada”. Quando a epidemia pipocou nas pontes e alamedas da cidade, viu-se ele sem negócio e sem fregueses e começou a faltar-lhe, após umas semanas, o mínimo para sobreviver. Vizinhos levaram o problema ao Oráculo de Delfos da atualidade: as Redes Sociais. Abriram-lhe uma conta e pediram doações. Ele nunca  imaginou que fosse tão famoso e que tivesse tantos amigos distantes. Ontem,  Barruada gravou um vídeo agradecendo e informando que já tinha o suficiente, não precisava mais ninguém depositar. O que haviam deado  já dava para passar pelo túnel escuro. Se a coisa apertasse de novo, voltaria a avisar. O humílimo Barruada estava na contramão neste país do toma-lá-dá-cá, da fraude institucionalizada, da tramoia, da esperteza, do desamor, da reacendida banalidade do Mal.
                            Estes dois exemplos são poucos, eu sei, em meio a tantos outros que não vieram à tona e  permaneceram no anonimato. A mão amiga que doa escondida,  para que a outra não perceba o gesto de desapego. Por isso, mergulhado o país em atos obscuros, genocidas, atentatórios à Democracia,  totalmente distanciados dos mínimos sinais de civilidade, mesmo assim , no meio do pântano, sempre brotam os lírios.
                             No fundo, percebo, a Ética, embora hoje aparentemente tendo fugido dos livros de filosofia e se hospedado nos de ficção, tem relação direta com a sustentabilidade do planeta e com o ITH  ( Índice de Tolerância e Humanidade) da nossa civilização. Ponho-me , hoje, no lugar dos médicos mais jovens, como meus filhos, na luta contra o inimigo terrível e desconhecido, nas UTI´s mundo afora. Não bastasse o risco inerente ao vírus, ainda têm que guerrear sem que lhes forneçam as armas mínimas adequadas à batalha. Mais de cem médicos brasileiros já pereceram no front, em muitos casos, eu sei, por exposição inadequada, por serem impulsionados a assumirem riscos a que não deveriam ser expostos.
                            Quando pululam pacientes graves, sem respiradores suficientes, precisam , dia a dia, escolher quem sobrevive e quem será sacrificado. Os impasses éticos certamente, são terríveis. É que estas questões não se resolvem com simples decretos, resoluções e códigos. Brincar de Deus, apesar de juntar poderes encantatórios,  sempre traz consigo o ônus do carrasco. Terrível o impasse : para salvar alguém, temos que decidir pela execução sumária de outro. Imaginem as situações mais terríveis e, certamente, muito reais. Dois pacientes graves e um só respirador: como ser justo, imparcial  nesta situação ? Como livrar-se de preconceitos entranhados na nossa alma ? Um negro e um branco da mesma idade, quem escolhemos para o respirador ? Um rico empresário idoso e um carroceiro jovem ? Um presidiário de 18 anos e um velhinho com rosto angelical de oitenta ? Dois jovens graves, com falta de ar intensa, um deles portador de Síndrome de Down , a quem daremos a oportunidade de sobreviver ? Um velhinho remediado e um imigrante jovem venezuelano ?
                            Difícil fazer uma escolha que não nos traga algum pesadelo nas noites seguintes. O médico quando se vê no espelho não sabe se o reflexo é de Dr. Jekyll ou de Mr. Hyde. Esta gangorra de situações não possui respostas fáceis. No fundo, elas são aceitáveis e até contornáveis em momentos extremos e pontuais. O grande impasse ético, na verdade, está lá na cobertura desse edifício de terrores. Compreendemos que as epidemias são quase sempre avassaladoras e imprevisíveis. A grande questão é que este problema é crônico e reiterado. Em tempos normais, todos os dias, os profissionais têm que escolher quem vai ou não ter o leito de UTI, quem pode ou não fazer os exames complementares, quem vai ter acesso ou não ao remédio, quem vai ficar na maca do corredor ou no leito do hospital. Essa seleção antinatural é a regra no dia a dia dos profissionais de saúde. Agora, com o aumento gigantesco de casos, por conta da Covid, o excremento é jogado nas aspas do ventilador e já não recende só nas paredes dos hospitais e dos necrotérios.  O remédio para essa moléstia está nos livros da Política e ela, infelizmente, está necessitando de respirador também. Precisa tomar lições  com os Berardelli e Barruada.

J. Flávio Vieira

                           

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O Índio Manso





“Eu não tenho paredes,
Só tenho horizontes...”
Mário Quintana
                                           

                                      Existem arquitetos especiais nesta vida que se especializam em construir estradas e não em cavar abismos; que  edificam pontes ao invés de cercas e que,  diante das montanhas,  aparentemente intransponíveis, perfuram túneis.  Há , entre eles, ainda, alguns mais notáveis: aqueles que erigem suas obras, silentemente, longe dos holofotes , utilizando o mais sofisticado de todos os instrumentos: a simplicidade. Neste 21 de maio,  celebramos o centenário de um desses artífices da felicidade, do bem-estar e do júbilo. Um borrifador de bem-querença, um aspersor de luz e cordialidade. José Nilo Alves de Souza, um nome que soa como uma sinfonia de Mozart para todos da sua geração, nasceu em Crato, na rua Nélson Alencar, filho do marceneiro Jorge Lucas e de D. Isabel. Neste mesmo benfazejo  ninho,  brotariam outras figuras queridas e notáveis do Cariri, como Dr. José Newton , Profa. Maria Nilza, o funcionário federal Francisco de Assis, o comerciante Oduvaldo , o jornalista Oswaldo Alves e o professor Dailton. 
                                   Zé Nilo fez os primeiros estudos no Colégio Santa Inês, na praça da Sé, enquanto ajudava ao pai nos trabalhos de carpintaria. Dele herdou um bom um humor fino e uma irreverência doce e contida.  Depois, no Ginásio do Crato, concluiu o curso ginasial, embarcando para Fortaleza nos anos 30, com o colega Aníbal Viana de Figueiredo, outra figura icônica da odontologia cearense. No antigo Liceu do Ceará, preparou-se para o vestibular, ingressando na Faculdade de Farmácia e Odontologia , onde colou grau em 1944. Paralelamente,  Zé Nilo alistou-se no Exército Brasileiro, chegando a 2º Tenente.
                                    Em 1945,  estaria de volta à sua cidade natal onde passou a clinicar , na mesma rua que viu primeiro nesse mundo. Zé Nilo, então, ecleticamente, envolveu-se em muitas outras atividades. Foi Diretor do Tiro de Guerra- 205 em Crato ( quase impossível imaginar uma figura tão pacífica na caserna).  Fez-se professor de Geometria Analítica no Colégio Diocesano  e , por mais de um quartel de século, orientou e formou muitas gerações de jovens. Lembrado por muitos alunos como um mestre metódico, sério, educado e fino. Trabalhou ainda no pioneiro Hospital São Francisco de Crato, voluntariamente, atendendo às segundas , os matutos que vinham às compras na nossa feira semanal. Mesmo trabalho odontológico voluntário desempenhou, por muitos anos, junto ao Seminário São José .  No final dos anos 50, Zé Nilo fez parte um movimento em prol da criação de uma Faculdade de Odontologia do Crato, que infelizmente, nunca se concretizou.  Nos anos 70, inauguraria , com os Drs. Henrique Costa e Fátima Lemos, a Clínica Cirandinha, nesta cidade, ainda em plena atividade nos dias de hoje.
                                   Na vida pessoal, Zé Nilo casou com D. Maria Yedda, em 1955, nascendo do enlace quatro filhos, todos ungidos dos benfazejos eflúvios emanados dos seus pais.
                                   Em 2 de maio de 1992, próximo ao aniversário de 72 anos, o “Índio Manso” ( como ele se auto-apelidava)  quebrou a rotina diária da sua oca e da sua taba :  cuidar dos passarinhos, ir ao mercado, ouvir a BBC de Londres, ler e atender no consultório da esquina, como o vinha fazendo nos quase últimos quarenta anos.  A Nélson Alencar esmaeceu naquele dia, a cidade tomou ares de sexta-feira santa. Ficou uma saudade transbordante:  da sua finura de trato, da sua educação congênita, do bom humor irrefreável, da sua boêmia  apenas verbal, das  suas bonomia e singeleza, do desprendimento ( Dr. Zé Nilo era quase uma entidade filantrópica) e do profissional ético, capaz, afável, tido por seus pares, em toda sua trajetória, como o maior odontólogo caririense da sua geração.
                                   Cem anos depois, permanecem na memória, como seu maior legado, aquela maneira simples, lhana e desafetada de encarar a vida, a capacidade quase única de boiar na correnteza e deixar-se levar, placidamente, pelo fluxo das águas da existência. Um dia -- há muitas curvas sinuosas, no trajeto do rio-- ao chegar à foz, percebeu que se juntava, homegeamente, a todos elementos da natureza: Zé Nilo era um homem sem  paredes, só  tinha horizontes...

Crato, 19/05/20