terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Avô Adotivo


Não sei a que atribuir aquela confiança cega que de repente se me depositaram. Pode ter sido estas mechas brancas que teimam em me tingir a barba, ao quebrar o cabo da desesperança dos cinqüenta. Ou as rugas que me vão mapeando o rosto, como troféus de muitas batalhas empreendidas e poucas ganhas. Talvez, até, este ar um pouco distante de quem procura o que não pode encontrar , de quem teme a estrada curta e imprevisível que se abre , morosamente, adiante. A placidez ,apenas aparente, dos desiludidos e desencantados.O certo é que a garotinha de uns cinco anos, interpelou-me enquanto fazia do encosto do bureau da sala de espera, um escorregador. Rostinho redondo, bochechinas salientes e olhos vivíssimos que saltavam da moldura de um cabelinho negro, curto e liso, cortado em pastinha. Fitou-me decidida ao me ver passar, exausto, depois de um longo dia de trabalho. Parou as atividades no playground em que transformara a sala de consultório e me chamou, como se fôssemos velhos e inseparáveis conhecidos:
--- Hei ! Hei ! Vem cá !
Mergulhado em preocupações mil, aquele fiapo de voz tocou meu coração, como se fora “A Primavera” de Vivaldi. A alegria e felicidade puras que brotavam como água cristalina da fonte da inocência. Aproximei-me desarmado como que tocado pela varinha de condão da fada madrinha. Desobedecer a um chamado destes, quem há-de ? Agachei-me um pouco, em reverência e , obedientemente, lhe fiz continência :
--- Olá ! Como você está?
A menininha sorriu-me , angelicalmente e me fez um convite totalmente inusitado:
--- O Senhor não quer ser meu avô, não ?
Hesitei, um tanto, ante um pedido tão carinhoso e estranhamente tão inesperado. Temendo ser pouco convincente, disse com voz titubeante que queria sim, que gostaria muito. A menininha pareceu contente e , por fim, explicou a necessidade da substituição necessária:
--- É que meu avô morreu e eu tou sem avô, ó !?
Já me recobrando da surpresa e buscando entender os ínvios caminhos do coração infantil, fui mais enfático. Conversei mais e disse que a partir daquela hora ela tinha um novo avô. A garotinha parece que havia encontrado uma Barbie perdida. Abraçou-me e voltou ao seu escorregador que , afinal, ninguém é de ferro.
Saí dali encantado com o convite. Afinal, hoje , avô é artigo de luxo. Com os jovens libertos e sem amarras, nascem filhos temporões que terminam por enfeitar a vida já um pouco ressequida de tantos avós. Não bastasse isto, com a doideira da vida moderna, com pais e mães numa corrida desenfreada em busca da sobrevivência,quem convive com os pirralhos ? Os avós ! Aí a convivência mostra-se sempre de mão dupla: eu te dou a segurança, a experiência e vocês me fornecem um pouquinho da preciosa seiva da vida. Nós lhes aplacamos os temores da floresta e vocês nos mostram onde ainda existem frutos deliciosos e sazonados. O avô é o pai domesticado: sem o grito, sem a palmatória, sem a cara emburrada. Tendo a visão privilegiada do rio da vida, ele entende que os acidentes são inevitáveis, que as águas muitas vezes se tornam turvas, que o fluxo vezes se mostra calmo, vezes tormentoso para quaisquer navegantes de primeira viagem. O tempo dá ao avô a prerrogativa da tolerância , com a pena pronta para a Hábeas Corpus , a alvará de soltura, a carta de alforria.
Despedi-me sob o peso da imensa responsabilidade que me acabava de ser conferida. Ser avô independe, geralmente, da nossa vontade e os netos, infelizmente, não têm o sagrado direito da escolha. Pois bem, a minha missão fazia-se bem mais árdua: a partir daquela data, a garotinha me havia eleito Avô Adotivo. Ela, mais que ninguém, demonstrava, claramente, a falta que lhe fazia aquela perda prematura. Sem maiores credenciais devo fazer tudo para não decepcioná-la. Mesmo sem estar perto, sem conhecer seus pais , sem sequer saber onde ela mora ; me acho no dever de fazer tudo ao meu alcance com o intuito de ela entender que a vida é apenas mais um capítulo de um Conto de Fadas. Apesar das bruxas, das maças envenenadas e das madrastas, sempre é possível encontrar um príncipe em cada esquina da existência e fazê-lo calçar o nosso sonho no sapatinho de cristal das nossas esperanças.
Antes de sair ainda ouvi a vozinha doce da minha neta mais nova :
--- Tchau, Vôiinho !

30/12/08

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Desejos


Epílogo de ano é sempre assim, caro ouvinte. Bate às vezes aquela capiongueira : tantas coisas que podiam ter sido realizadas e que não foram ! Tantas oportunidades perdidas ! Tantos comensais que já não sentam conosco para a ceia! Tantas aspirações frustradas ! Pomo-nos , então, facilmente, no ataque fazendo projetos para o ano vindouro! Desta vez a coisa vai ! Vou parar de fumar! Em 2009 começarei um programa de atividades físicas ! A partir de janeiro , vocês vão ver: inicio a dieta e perderei essses 40 kilos de excesso ! Esta época de férias e de solidariedade algo superficial mostra-se também especial no quesito desejos : fazemos votos de felicidades e prosperidade para tudo e todos. Feliz Natal ! Felizes Festas ! Próspero Ano Novo! Dezembro traveste-se de um clima aparente de compreensão, de amizade, de fraternidade. Uma espécie de trégua na batalha desigual travada por toda a sociedade com muitos abatidos e feridos, nos outros onze meses do ano. Um escritorzinho bissexto como eu sente-se impelido a emergir nesta atmosfera algo enganosa de sorrisos fartos e amorfos chavões. Os raros ouvintes na rua já me olham com aquele ar interrogativo : será que esse incréu não vai fazer votos de realizações pra ninguém ?
Pois bem, por falar em anseios e em Natal, semana passada me veio à lembrança aqueles desejos tão freqüentes nas grávidas . De repente a buchudinha acorda na madrugada e avisa ao marido que está desejando comer jaca, torta de melancia ou outra iguaria qualquer facilmente encontrável às três horas da manhã. O esposo, coitado, arranca em desabalada carreira em busca da comida solicitada, temendo contrariar a natureza, sob risco da menina nascer com corpo em formato de Jaca ou o menino com uma barriga tipo melancia. Pesquisei – coisa de quem não tem muito o que fazer nesses dias morosos – e descobri algumas constatações científicas interessantes. O velho Vicente Vieira, meu avô, achava que tudo aquilo era encenação das grávidas, charminho pra cima do marido e concluía enfático “ Nunca vi uma desejar coisa ruim, é só chocolate, tapioca quente com nata, doce de leite com queijo de manteiga”! Pois bem, amigos, a ciência admite que estes desejos existem de verdade e devem-se provavelmente às intensas alterações hormonais que acontecem durante a gravidez. E mais , ultimamente sua freqüência tem aumentado muito em todo mundo, pesquisas comprovando que, atualmente, ¾ das gestantes sofrem desta compulsão . Infelizmente para os feios como o Heron, o Vicelmo, o Geraldinho, a Ciência não permite colocar-se a culpa da feiúra nos desejos maternos não satisfeitos : essa cara de carranca do São Francisco , meu amigos, foi azar mesmo e o jeito é se conformar com os erros eventuais da santa natureza. Se servir de consolo : talvez o que faltou em vocês a natureza colocou de sobra na Gisele Bündchen e na Juliana Paes. Valeu a pena o investimento!
Mas o que me despertou, semana passada, nesta época natalina, para os desejos? Uma amiga nossa, aqui de Crato, grávida em Fortaleza, sentiu, subitamente, o desejo irreprimível de comer algo totalmente inusitado. Imaginem o quê ! Um sanduíche do Enoque ! Talvez os mais novos não se recordem do fabuloso cachorro quente de Enoque.. Todo ano ele punha uma pequena barraca na Expô/Crato e vendia um sanduba simplesmente fabuloso que faz parte da memória gustativa de toda uma geração de caririenses, assim como a tapioca com fígado de canena , o caldo de mocotó de Bosquim, o Doce de Leite de Isabel Virgínia. Há alguns anos, inconformado com as altas taxas cobradas pela organização do evento e as misteriosas prestações de contas, ele desistiu. Enoque foi um jogador de futebol dos mais inspirados e ainda vivíssimo reside ali pras bandas da Caixa D´água. As novas gerações acostumadas àquele sanduíche de isopor da Mac Donalds e do Bob´s possivelmente não irão compreender o desejo da minha amiga. A mãe da nossa buchudinha procurou nosso sandwichman e ele preparou com todo gosto e requinte seu inesquecível sanduba que foi mandado de avião no mesmo dia, para a salvação do bebê que , caso contrário, corria o risco de nascer redondinho, insulso, insípido e inodoro como um Big-Mac.
Pois foi justamente esta historinha que me inspirou a escrever esta croniqueta de fim de ano. Todos nós ficamos grávidos de sonhos e aspirações neste período natalino. Pois aí vai também o meu desejo !Ah como seria bom se tivéssemos desejos parecidos como os de minha amiga. Se todos nós acordássemos na madrugada com aquela vontade insaciável de ouvir uma música de Abidoral, dançar um Reisado do Mestre Aldenir, comprar um quadro do Karimai, , sapatear um Coco da Dona Edite, usar uma Sandália do Mestre Expedito das Nova Olinda , botar na sala uma xilogravura de Maésio, deliciar-se com uma poesia do Marcos Leonel. Ah como o menino dos nossos sonhos nasceria bonito e robusto e o Ano novo romperia no horizonte com novos vagidos de paz e esperança !

26/12/08

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O Veio da Vida

Acordou encafifado: meio barro, meio tijolo. Mundo se projetando algo sombrio, como um filme noir. As paredes da velha casa , opressivas , carregavam-se com aquele limo pegajoso e úmido das prisões.A vida resumia-se a alguns fragmentos desconjuntados do passado: um puzzle disperso, impossível de ser reorganizado.Rápido percebeu que faltavam resquícios de vida ao derredor , até mesmo porque o ambiente é apenas um mero reflexo das nossas luzes interiores. Quem sabe, adornando aqueles interiores com o verde frescor de alguma begônia, o mundo se re-imantaria de magnetismo vital ? Perambulou pelas ruas como quem procura um objeto inencontrável : o Santo Graal da felicidade desvanecida.
As rosas da floricultura lhe pareceram opacas e inodoras . Os pássaros na feirinha apresentaram-se profundamente silentes e apenas refizeram na sua alma a angustiante gaiola em que subitamente vira transformada, pela manhã , o seu “ Lar Amaro Lar”. Nem lojinha de animais de estimação melhorou-lhe o ânimo, sentiu-os como que empalhados e, num átimo, percebeu que o hamster, o periquito, o chihahua seriam incapazes de repovoar o deserto em que se transformara a casa. Sequer os peixes multicolores no aquário iluminado no cantinho da loja resplandeceram alegria e vivacidade.
Sentia-se como único sobrevivente de uma explosão nuclear, tentando refazer o mundo com os dispersos estilhaços que restaram. Desiludido , sem saber bem porque nem pra que, comprou de um vendedor introspectivo e frio, um aquário, sem água e sem peixes. Seguiu para casa com aquele trambolho e colocou-o , sintomaticamente vazio , na pequena estante da sala que abrigava a TV. Pressentiu, com os dias, que aquele aquário como que representava um retrato da sua alma: oca, ressequida e sem aparente utilidade. Aquela imagem, estranhamente, aumentou o ar denso e quase irrespirável da sala.
Saiu, no outro dia, em busca , de um habitante para o aquário. Na esquina encontrou um vendedor de fósseis e , num ímpeto, adquiriu um pequeno peixe petrificado. Em casa colocou-o cuidadosamente dentro do aquário. Com o passar dos dias foi como se a sala se iluminasse. Já não existiam objetos ao derredor, o fóssil no aquário da sala alegrava-lhe a vida, mas , por outro lado, mantinha-o hipnotizado e submisso. Não mais saiu à rua, deixou de atender telefone, a TV já não tinha qualquer sentido. Algumas semanas depois começou a notar que as paredes da casa se iam tornando mais escuras e compactas e avançavam em direção ao centro , como se fossem se encorpando, dia após dia. Começou notar em si mesmo a pele mais escura e endurecida e com o passar do dia se foram transformando em escamas. As articulações se foram emperrando até leva´-lo à total imobilidade. Um belo dia as paredes da sala o aprisionaram definitivamente. Desde então aguarda , ansiosamente, as pancadas do martelo que rompam o veio da pedra e mostrem seu testemunho petrificado para a estonteante mobilidade da vida.

Crato - 23/12/08

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Presente de Natal


--- Trimmmmmmm !!!!!!!

O estampido do telefone soou dentro da sua alma , como se tratasse de uma locomotiva a vapor. É que os últimos meses tinham sido terríveis. Funcionário de uma estatal, com salário minguado , mas regular, há um ano aderira a um destes fabulosos planos de demissão voluntária. Não dava mais para suportar o ambiente de trabalho: cobranças ininterruptas e o chefe olhando pra ele com aquele cara de carrasco , de “cuidado , você é o próximo!”. Pegou a indenização parca que lhe pagaram pelo seu suicídio prematuro e abriu um pequeno negócio de portões eletrônicos. De início a firma andou de vento em popa: com a incrível insegurança urbana, os homens precisam criar os seus castelos inexpugnáveis, pensando que assim podem se isolar do mundo. Chegou até a imaginar que a demissão tinha sido uma das melhores decisões que havia tomado. Em pouco, porém, o mercado se viu saturado, eram tantos e tantos outros , na mesma situação dele, dividindo a mesma fatia do bolo! Não bastassem as pequenas piabas iguais a ele, com a globalização entraram peixes grandes no aquário e aí , a ração só sobra para os tubarões! Quebrou e se encontrava naquela situação desesperadora: os amigos antigos se afastaram, os cobradores batiam à porta a todo instante, os filhos já tinham sido transferidos para escolas públicas, o aluguel atrasado quatro meses e ninguém mais aceitava seus vales. Os vizinhos diziam, com sorriso maroto: --“Não tem crédito nem para comprar a vista!”. Esse era o fosso verdadeiro em que se encontrava no exato momento em que o telefone tilintou , desesperadamente: talvez por isto foi que penetrou tão agudamente no fundo da sua alma.

--- Trimmmmmmmmmmm!!!!!!


Nos últimos dias aquele aparelhinho havia feito pacto com o demo. Atendê-lo configurava-se em causa imediata de aborrecimento. Cobradores circulavam sua casa , como aves de rapina e as chamadas eram uma espécie de aviso prévio do ataque faminto e guloso. Assim pediu à esposa que atendesse e desse uma desculpa qualquer: saiu, viajou, foi para a missa! A companheira atendeu contrafeita : já não mais suportava criar estórias fantasiosas e esfarrapadas. O semblante tenso da mulher relaxou um pouco quando ouviu a voz do interlocutor, do outro lado da linha. Conversou pouco e formalmente: tudo bem, tudo em paz, todo mundo com saúde! Virou-se aliviada para o marido e passou o fone:

--- Sua mãe!

Num primeiro momento, sentiu-se aliviado. Nada como ouvir a voz da mãe num momento destes. Certamente tinha sido o sexto sentido materno que havia , como um timer, disparado e a impulsionara a ligar imediatamente para o filho. A velhinha morava em outro estado e andava muito doente: perdera a vista praticamente, ouvia mal e deslocava-se com grande dificuldade. O filho pressentia, no entanto, que em meio à tamanha debilidade orgânica, havia uma força estranha e profunda, aquela energia materna, capaz de reacender as mais arrefecidas esperanças. No instante seguinte, porém, estacou absorto e vacilou : seria justo beber aquela última centelha de luz, da sua mãe ? Ela a cederia com o maior prazer e abnegação, mas seria justo?

--- Mamãe? Tudo bem ? Aqui tudo às mil maravilhas! Os negócios estão crescendo, como nunca imaginei. Sou agora um dos maiores empresários do estado! Reformamos a casa e estou falando com a senhora, neste exato momento, deitado numa cadeira , na beira da piscina olímpica aqui do quintal. A mulher arranjou um trabalho na procuradoria do estado e está ganhando uma nota preta. Troquei o carro esta semana , por um outro do ano e importado. Como o Collor, já não agüentava estas latas de sardinha nacionais! Queria até que o seu neto, mamãe, estivesse aqui para falar com a senhora, mas foi para os Estados Unidos, conhecer a Disney e só volta no fim do mês. Não vamos poder ir agora no final do ano, infelizmente, porque estou ampliando a fábrica, mamãe; logo que tiver uma folguinha, dou um pulinho por aí. Beijo, mamãe! Feliz Natal para a Senhora. Sei que a senhora tá feliz, sei, não precisa nem dizer.Tchau!
Defronte dele, a mulher embasbacada, parece que tinha visto fantasma. Ele, calmamente, desvendou o mistério: Ela, minha filha, está doente , já não pode vir nos visitar e ver a porqueira de vida que estamos vivendo e mesmo que viesse, está cega, não viria nada. Quantas vezes ela, na minha infância não fez o mesmo? Seu pai não tarda a chegar! Quando ganhar na Loteria te dou uma bicicleta! Vou arrancar este dentinho de leite, não vai doer nada!Esta foi a única maneira que eu encontrei de dar para ela um presente neste Natal!
A mulher , entre lágrimas, sorriu! Adivinhou que são afinal estas pequenas mentiras , estes leves engodos que tornam a vida suportável e que vão realimentando as nossas baterias gastas, pelo tempo afora . Sem este filtro cor de rosa, a vida que já é um curta metragem ,surgiria aos nossos olhos, violentamente, com seu verdadeiro , sombrio e cru preto-e-branco. Estas mentirinhas, afinal, são como um prisma que se interpõe entre o frio e translúcido feixe de luz da vida e que acabam por fazer a refração , muitas vezes a transformando na beleza fugaz, mas multicolorida do arco-iris.

19/12/08

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Natal


Mais uma vez, o final do ano. Os espíritos já se banham nas doces águas do Natal e do Ano Novo. As luzes natalinas iluminam as praças e os jardins. Mensagens emboloradas já circulam pelos correios e pela Internet. O comércio rejubila-se com a consumista solidariedade. Os meninos do Grangeiro já estendem seus sapatos nas janelas na certeza da vinda do bom velhinho. Os da Batateira, tristes e desesperançados, preferem recolher as sandálias, na certeza de que Papai Noel nunca faz escala por lá. Os perus calam seus guglus e os leitões recolhem temerosos seus pernis : serão imolados em sacrifício nos altares natalinos.As famílias durante todo o ano desunidas , com os ares natalinos se tornam reunidas e , em trégua , recolhem um pouco as armas, até o toque de alvorada do ano novo.Lábios sussurrarão preces maquinalmente , num fervor vazio e superficial. Os bares e restaurantes se apinharão de confraternizações: um sem número de empresas reunindo funcionários e criando um momento fraterno e solidário que acabará daqui a pouquinho, embora devesse se estender por todos os dias do ano. Nos templos , homens e mulheres contritos se darão as mãos efusivamente, desejando-se felicidades mil ; as mesmas mãos que logo em seguida se fecharão para os mendigos e se cruzarão no peito para a miséria do mundo. As ceias natalinas, quanto mais fartas, mais prenhes de alimentos estranhos e estrambóticos: figo, nozes,tender, lentilhas, chesters, panettones , champanhe, passas e uvas.Servem mais para alimentar a vaidade dos anfitriões do que o estômago dos comensais. A Ceia que modificou os destinos da humanidade não foi regada apenas a vinho e pão?
As festas trazem sempre consigo alguma atmosfera de tristeza e de saudade. Com o passar do tempo, pessoas queridas já não respondem à chamada. Talvez porque, como dizia Manuel Bandeira, estejam todos dormindo, dormindo profundamente... Um belo dia estaremos sós diante da grande Távora vazia de cavaleiros.Algumas recordações se espreguiçarão a um canto, o passado grávido se debruçará em algum móvel da sala. . Talvez , neste dia, um comensal de longas barbas sente conosco na longa e solitária tábua e divida conosco o pão e o vinho, não mais que isto. Perceberemos então que a mesa se tornou gigantesca , acolhendo nossa nova família que agora possui irmãos de incontáveis cores e raças. Celebram as primícias da vida, com sua essência de fugacidade e de mistérios, enquanto se vai servindo a ceia farta regada pelo milagre dos peixes e dos pães.
17/12/08

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Fresta


--- Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha !
Aquela frase, dita de supetão, turvou o ânimo de toda a família. D. Mafalda mostrara-se sempre um exemplo de lucidez. Viúva precoce , conduzira toda récua de filhos com cabresto curto.A duras penas, com o minguado salário de professora, realizara o milagre dos pães e dos peixes. Nada faltou aos meninos do essencial e, vezes por outra, permitia-lhes um ou outro artigo mais chique , pois entendia, perfeitamente : é do supérfluo que se alimentam os sonhos. Seu esforço e sua rédea apertada surtiram o efeito imaginado, aos poucos se deparou com os rebentos encaminhados , quase todos formados e tocando a vida sem maiores atropelos. Todos reconheciam o árduo trabalho da mãe que lhes dedicou o melhor de seus dias e retribuíam-lhe com o conforto, o afeto e o carinho tão necessários à velhice. D. Mafalda morava na antiga casa da família apenas com uma agregada de muitos anos e que praticamente já fazia parte do clã. Apesar da distância, os filhos ainda lhe eram ligados umbilicalmente . As rugas e as cãs que lhe foram ofertando os anos proporcionaram-lhe um ar tranqüilo de monge tibetano. Todos os problemas envolvendo netos, bisnetos, noras, genros e os próprios filhos, invariavelmente vinham bater à porta da velha senhora e seus conselhos não só abriam caminhos, desarmavam espíritos, como adquiriam força de lei.Ao quebrar, no entanto, o cabo da boa esperança , aí por volta da oitava década, o peso da idade começou a parecer mais perceptível. D. Mafalda apresentava lapsos freqüentes de memória, muitas vezes já não reconhecia parentes mais próximos . A velha mucama relatava : ela andava “tresvariando” e conversando “arisias”. Os filhos preocuparam-se de início, levaram-na à consulta com geriatra, mas aos poucos perceberam que a seiva que nutria o caule de D. Mafalda começava a secar e aqueles lapsos significavam a queda das primeiras folhas, o ressequimento dos primeiros galhos que antecediam o fenecimento da frondosa árvore.Reunidos os filhos, optaram por deixá-la morando no seu próprio cantinho e contrataram duas enfermeiras para acompanharem o tratamento da mãe, uma vez que a velha empregada , artrítica, já não possuía forças para cuidados mais continuados.
Poucos meses depois, a companheira inseparável de D. Mafalda , subitamente, vez a viagem derradeira. Dormiu na terra e acordou no céu, conforme se comentou no velório. A perda da amiga de luta abateu intensamente a inabalável matrona. Sentiu quase como se perdesse o esposo novamente. Nos dias mais difíceis, a secretária fora de tudo : irmã, colega, confidente e ajudara na criação dos meninos como se os tivesse dado à luz.Esta nova perda embotou visivelmente o ânimo de D. Mafalda. A partir daí parece ter se acentuado seu processo de demência. Nova reunião e os filhos acharam mais sensato transferi-la para a casa da sua primogênita. Leocádia , após o divórcio, morava praticamente só, pois a filharada já ganhara o mundo e tinha vida própria.A aterradora frase de D. Mafalda soara justamente no momento em que Leocádia arrumava os pertences da mãe , providenciando a transferência planejada.
---Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha !
Passado o primeiro estupor(Meu Deus, mamãe agora pirou de vez !), os parentes começaram a refletir sobre a frase pronunciada por Mafalda.Enquanto arrumava os velhos guardados, acumulados ao longo de tantos anos, cada um embebido de vida e de passado, Leocádia começou a pensar no pedido da mãe. Que bom seria se se pudesse levar a janela da nossa casinha , a cada mudança que se fizesse na vida ! Bastava colocá-la em uma das paredes da nova residência e teríamos fresta aberta para o éden .Ao sentir saudades dos antigos vizinhos , era suficiente apenas se postar diante da janela mágica e perguntá-los pelas novidades. À noite, quando o silêncio baixasse sobre a cidade, seria possível conversar com os conhecidos fantasmas do casarão antigo, ao se aproximar da janela que trouxemos na mala.O bulício da rua sagrada da nossa infância estaria sempre ao nosso alcance, se pudéssemos carregar aquele velho rasgão que nos uniria eternamente ao passado. Além de tudo, furtada a janela, qualquer dissabor que nos turvasse a alma, saltaríamos para o quintal da nossa juventude e nos banharíamos nos seus indevassáveis mistérios: a goiabeira confidente, o velocípede veloz, a tina com seus segredos aquáticos. Depois, voltado o enlevo, ajoelharíamos na úmida areia e colheríamos todos os cacos dos nossos sonhos partidos, das nossas ilusões fragmentadas, da nossa felicidade espedaçada nas calçadas da realidade. Teríamos então todo o tempo do mundo para tentar refazer o quebra-cabeça. Quando assim nos aprouvesse, nos seria dado o direito de fechar a janela e mergulhar no presente, mas cuidadosamente deixaríamos a tranca frouxa, para qualquer emergência mais premente.
É , pensou Leocádia com seus cacarecos, D. Mafalda, talvez ainda esteja mais lúcida do que pensávamos.No auge do delírio talvez tenha nos legado sua mais sábia lição : qualquer mudança que empreendermos na existência, nunca se deve esquecer de colocar na mala, uma janela. É que as portas da vida estão sempre à frente, mas a felicidade, a alegria, o prazer estão nas pequenas janelas que por acaso tivermos a capacidade de escancarar para o pomar da nossa juventude e da nossa infância.


15/12/08

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Crônica de uma Romaria em Bertioga


Agosto jogava nos olhos dos matozenses dois sentimentos conflitantes. Nublavam-se as almas, um pouco, com o cinza do tempo e o calor escaldante. Em meio à terra devastada apenas um ou outro juazeiro, como um soldado de Pompéia, mantinha a lembrança única do verdor e da fartura. O Paranaporã, batendo piaba, mostrava-se vivo ainda em pequenos barreiros e caldeirões ao longo do seu curso. Os matozenses, no entanto, tinham, por outro lado, um motivo ainda de alegria. Comemorava-se, justo naquele mês, a grande Festa de Nossa Senhora dos Desafogados da vizinha e hoje próspera Vila de Bertioga. Após uma sucessão de casos inexplicáveis da padroeira milagreira , a festividade aos poucos se foi encorpando. De início doméstico e regional, o evento ampliou-se com o passar dos anos. A cidade quase que duplicava a sua população neste período.
Vinham romeiros dependurados em burros, jegues, paus-de-arara de tudo quanto era biboca deste país. Como na vida, o sagrado e o profano conviviam lado a lado. Todas ruas de Bertioga se atulhavam de pequenos comerciantes negociando tudo quanto é de picuaios e quinquilharias. Alimentos regionalíssimos : panelada, buchada, filhóis, passa-raiva, fígado com tapioca. Lembranças de tudo quanto é nacionalidade, predominando importados da China e do Paraguai esparramavam-se desordenadamente pelo chão. E, principalmente, artigos religiosos: terços, imagens, fitinhas, botons, ex-votos. Um parque de diversões se espalhava por toda praça da matriz, enchendo de felicidade meninos e adolescentes: Carrossel, Canoas, gangorras, Roda-Gigante. As novenas , concorridíssimas, deixavam irrespirável a já pequena igrejinha de Nossa Senhora dos Desafogados. O fiel pagamento das promessas, uma espécie de escambo espiritual, reabastecia de óbulos variados os cofres da paróquia. Missas se sucediam em três turnos e faces sofridas e mãos calejadas buscavam conseguir num outro mundo o que lhes havia sido confiscado descaradamente aqui na terra. O cabaré de D. Maria Juriti, do outro lado da cidade, reabastecia-se de madames vindas até da capital para abastecer o superaquecido mercado de pecados e vícios que depois seriam , piedosamente, descontados nas confissões com o Padre Vanderico, pela manhã.
Junto , naquela turba amorfa, se uniam romeiros, comerciantes, religiosos, políticos, agricultores e, também , os aproveitadores ; como aliás em qualquer aglomerado humano. De boa fé, ali, de coração aberto, apenas os romeiros e, conseqüentemente, anestesiados na sua crença, sujeitos a ataques de malandros de toda espécie. A crônica da última Romaria em Bertioga me passou o velho Giba, proprietário do mais famoso botequim de Matozinho.
Há em Bertioga uma santeira bastante peculiar chamada D. Regina. Viera da banda das Alagoas, em uma das romarias, anos atrás e acabou se estabelecendo na vila. Percebendo o mercado propício resolveu ser artesã em barro, esculpindo imagens de santos para vender, depois, aos romeiros. Sem muita habilidade, construía, geralmente, imagens disformes parece que aprendidas dos quadros de um Picasso que jamais conhecera. Na hora da comercialização, a identificação do santo se tornava, o mais das vezes, quase que impossível e a nossa D. Regina tinha pavio curto e de rastilho inflamadíssimo. O romeiro , observando um São Sebastião, perguntava o preço do Cristo crucificado, aí nossa santeira saltava com quatro pedras na mão. Nesta última romaria, um velho de São José do Egito, observando as peças à venda, pegou um pretenso São José, que (se sabe lá como ?) saíra torto feito o Corcunda de Notre Dame .Desconhecendo a caninana, caiu na besteira de perguntar , na sua inocência:
--- Ei , a Cuma é este Frei Damião ?
Regina enrugou o cenho e respondeu rispidamente que já tinha sido vendido. O matuto continuou observando as imagens expostas e se deteve, de repente, numa imagem de uma santa mal engembrada , vestida com um vestido longo pintado de verde abacate. Voltou a se interessar:
--- Ei dona, que santa esquisita é essa ?
A santeira saltou de lá:
--- Não ta conhecendo, não ? É Nossa Senhora dos Desafogados !
O matuto retrucou, com suas dúvidas:
--- Nossa Senhora dos Desafogados ? Mas toda vestida de verde, onde já se viu ?
Regina, então, cuspiu de lá :
---- É porque nesta época, seu abestado, ela tava servindo o Tiro de Guerra...
O caso mais insólito, no entanto, segundo Giba, aconteceu em uma das barracas que vendia um cafezinho esperto, com beiju, nas proximidades da Roda-Gigante. D. Arlinda , a proprietária, possuía um dos pontos mais tradicionais da Praça de Alimentação de Bertioga. A principal atração do estabelecimento, além da comida, era um rádio grande Transglobe de 12 faixas em que ela sintonizava, geralmente, a Rádio Sociedade da Bahia. Em períodos de festa, o aparelho tocava de sol a sol e engolia um carrego de pilha Ray-O-Vac todo santo dia. D. Arlinda colocava o Rádio, o mais das vezes, em um pequeno tamborete, lá no fundo da barraca, encostado na lona. Pois não é que um malaca, de tanto ouvi-lo tocar, cresceu os olhos e resolveu surrupiá-lo da dona! Esperou , à noite, o momento de pico no movimento , escorregou, discretamente para trás da barraca, meteu a mão por trás da lona, desligou o aparelho, enquanto empostava a voz e falava com aquele sotaque de FM:
--- Atenção! Atenção ! Interrompemos a nossa programação temporariamente por falta de energia elétrica em nossos transmissores, voltaremos dentro de alguns momentos. Não mudem a sintonia da nossa Rádio Sociedade da Bahia!
Estabelecido e esclarecido o problema, puxou o rádio e desapareceu na esquina para nunca mais voltar. Só uma hora depois D. Arlinda deu fé do problema técnico mas já era tarde demais. Até hoje, ao que parece, ainda está faltando energia elétrica em Salvador.

Crato, 11/12/08

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Um Boné



-- Um boné !?
Certamente haverão de interrogar vocês com ar enigmático e decepcionado. E o leitor, de imediato, concluirá que isto só pode ser falta de alguma notícia mais interessante vinda de Matozinho. Um sujeito tentando tirar suco de língua de papagaio. Paciência ! Por favor não vire a página só por causa de um simples e insignificante boné. Esse talvez seja também uma espécie de anzol literário que tentará aguçar sua curiosidade e mantê-lo preso, na transparente linha da narrativa, desde o princípio mixuruca ,até o parágrafo final. Assim, pois, embarquemos nesta viagem.
Dias atrás, numa solenidade dessas de só se suportar sob anestesia etílica, lá estava eu com um boné xadrez, desses que os franceses gostam de usar no final da tarde, quando vão comprar o baguette. Sentia-me um Jacques Prévert reencarnado, em plena Matozinho, quando um amigo, me vendo com aquela indumentária sui-generis, partiu em minha direção e olhou a peça de vestimenta com olhar apaixonado, me perguntando onde a tinha comprado. Antes que inventasse uma mentira qualquer, para não dizer , simplesmente: -- No Braz ! , ele o arrancou da minha cabeça e procurou a etiqueta que deveria identificar a nobre procedência daquele meu apêndice craniano. Não encontrando nada que demonstrasse ser de uma fábrica famosa, mo devolveu e saiu com cara desenganada e ar reprovativo. Fiquei matutando com meu boné aquela atitude brusca e deselegante, quando despertei para a profundidade do ato que tinha vivenciado. Certo que a sociedade de consumo havia criado as "marcas" justamente para poder vender produtos de igual qualidade, por preços totalmente díspares, única e exclusivamente por pertencerem àquilo que se convencionou chamar : "griffe" . O problema é que incorporamos esses hábitos na nossa convivência humana. Interessa-nos , pouco, as qualidades espirituais dos homens. Priorizamos o continente em detrimento do conteúdo e aí passamos a rotular as pessoas, igualzinho como o comerciante faz no supermercado ( muitas vezes até mesmo o preço colocamos). Fulano de tal é ótima pessoa porque é de família importante; Joaquim é burro porque é preto ; Ingrid é uma desavergonhada porque é homossexual; Gabriela é uma santa porque só vive rezando; Marcos não presta porque é comunista.... e por aí vai; vamos colocando rótulos superficiais e encaminhando essas mercadorias para o pútrido mercado negro das relações humanas. Lá serão elas colocadas nas prateleiras , para o consumo de todos, na razão direta dos superficiais valores que, com toda parcialidade possível, a classificamos . Não é certamente por mero acaso que a bíblia dos colunistas sociais, a constituição que rege as boas maneiras de se portar em sociedade, se chama exatamente de : ETIQUETA.
Essas vãs elucubrações em torno de um boné lembram-me, agora, da história de um ex-seminarista que aportou, subitamente, em Matozinho. O moço boa pinta, com vestimentas graves e discurso pausado, foi imediatamente tomado como padre. De início ainda tentou desfazer o mal entendido, mas aos poucos foi gostando da idéia e aí passou a exercer plenamente as funções sacerdotais que lhe tinham confiado. Rezava missa, casava , batizava, dava extrema-unções . Era queridíssimo na comunidade e cantava, saltitava em Show-missas que cada vez mais iam fazendo inflar a platéia da pacata cidade. A novidade, no entanto, chocou as beatas mais tradicionais que começaram a torcer o nariz , o que terminou por facilitar o desvendamento da farsa.
O novo pároco, não muito versado em teologia, passou a cometer alguns deslizes que,aos olhos dos cristãos comuns, hipnotizados pela música, pareciam coisa de somenos importância; mas para as beatas mais tradicionais se tornaram peças de um quebra-cabeças que foi aos poucos se materializando. O sacerdote ,freqüentemente, misturava a "Salve-Rainha" com a "Creio em Deus Pai" . Os sermões eram bastante liberais e abordava-se de cibernética à plantação de cebola. Numa das missas, ele simplesmente se esqueceu de proceder à Elevação e fez a Comunhão dos fiéis sem ter consagrado as hóstias previamente.
As beatas também já haviam desconfiado da quantidade de vinho ingerida pelo pastor em cada missa: Bebia na Liturgia, no Ofertório, na Leitura do Evangelho, na Homilia, no Sermão, até no "Ide em Paz...". A gota d'água , no entanto, ocorreu num dia de confissão quando um sessentão da Cidade, ajoelhado aos seus pés, sussurrou um pecado cabeludo: tinha uma amante há já alguns anos. O pastor , calmamente, interrogou se a esposa legítima se encontrava na Igreja naquele momento. O senhor respondeu que sim e mostrou sua cara-metade, naquele mesmo instante, curvando-se ante o vaso de água benta. Era uma mulher enorme, dessas de se pesar em arroba, mal feita como um saco cheio de cruz e com uma cara amassada como se estivesse encostada numa vidraça. O pastor olhou espantado aquele Trivelato truncado e foi taxativo:
--- Mande sua mulher aqui agora mesmo, que a penitência eu vou passar é para ela: cinco Rosários. Você tá absolvido, rapaz!!!
Quando as beatas tomaram conhecimento do ocorrido, foram direto ao bispo. Contactada a arquidiocese, em pouco a polícia estava no encalço do pseudoprofeta que obrou o único milagre de que se tem notícia: Escapou da noite para o dia, como se tivera pacto com o demo.
Restabeleceu-se a ordem religiosa em Matozinho, mas permaneceram alguns problemas aparentemente complexos. Mães ,cujos “anjos" tinham sido batizados, in extremis, pelo sacerdote de araque , choravam agora temendo estarem seus rebentos condenados ao limbo, ad eternum. Alguns casais unidos em cerimônia presidida pelo pastor fugitivo foram chamados para se submeterem novamente ao matrimônio. Alguns noivos , no entanto, já gozando das benesses do casamento, se negaram, terminantemente, dizendo que não iriam cometer o mesmo erro duas vezes. O pior, no entanto, aconteceu com as beatas denunciantes: viviam agora amedrontadas, temendo verem seus segredos terríveis de confessionário revelados pelo ex-pároco, em represália . Desde o dia da fuga rezavam sem parar, enquanto absortas fitavam a única peça que restara de lembrança do ex-santo reverendo, na sacristia :
-- Um Boné!


Do Livro : "Matozinho vai `a guerra"

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Rescaldo


Eudóxio nunca tinha sido chegado a muitas presepadas. Funcionário público, na Agência do INPS de Matozinho, levara a vida toda encaminhando benefícios e aposentadorias. Talvez a tentação lhe tenha batido quando pressentiu a proximidade da sua própria aposentadoria de barnabé. Entrado já nos cinqüenta, chegara naquela fase do cachorro hidrofóbico. Olhou para os cabelos brancos no espelho do quarto e viu que já não sobravam muitos cartuchos para carregar a velha socadeira meio enferrujada que carregava entre as pernas. Os filhos todos crescidos já estavam pras bandas de São Paulo. Voltavam periodicamente para visitá-los trazendo algumas quinquilharias da 24 de Março, roupas de frio compradas no Braz e cagando uma goma danada. A mulher, D. Marinalva, tornara-se uma matrona, beata, passava os dias mais na igreja do que em casa. A vida sexual dos dois de há muito havia arrefecido. Eudóxio percebera que era quase um crime transar com uma santa daquelas e, mais, levar para cama a mãe dos seus próprios filhos. Aquilo lhe cheirava a uma tara sexual quase que inimaginável. Metido numa saia justa dessas, não foi fácil cair em tentação e ser levado a espatifar o sétimo mandamento.
Conhecera Eufrasina casualmente, quando esta encaminhava, na repartição, um seguro desemprego do pai dela. Morena fogosa, com uns cabelos negros como cambuí caídos aos ombros, andar sinuoso de serpente e bunda de tanajura. Carregava nos lábios um sorriso na agulha e que disparava a todo momento, encantando que estivesse ao redor. A princípio se fez de inocente e distante, talvez porque achasse que era prenda demais para cair na sua rede. Mesmo porque ultimamente tudo o que vinha caindo dentro da sua fianga era caco de telha e morcego. Mas a moça se foi insinuando pouco a pouco para Eudóxio e ela era irressistível: destas de tirar solidéu de bispo e mitra de papa. Dia após dia, lá estava Eufrasina o procurando no intuito aparente de resolver a pendência previdenciária. Conversa puxa conversa, sorriso carreia sorriso até que o primeiro e furtivo beijo roubou Eudóxio por trás do balcão, num horário de almoço. Acesa a primeira chama, o incêndio tomou corpo e , em pouco, nem o Corpo de Bombeiros da capital teria condição de apagar e fazer o rescaldo. As carícias se foram tornando mais freqüentes, em horários cada vez mais furtivos. D. Marinalva nem percebeu as mudanças de horário de trabalho do marido, talvez porque ultimamente ele viesse muito mais delicado, condescendente e carinhoso. Eudóxio esperava apenas o momento de ir às vias de fato ou ir de fato às vias e já não suportava mais a espera da desejada lua-de-mel.
O momento propício não demorou a chegar. Próximo ao fim do ano, D. Marinalva avisou ao marido que viajaria no fim de semana para visitar os pais em Serrinha dos Nicodemos. Periodicamente fazia esta viagem e Eudóxio nunca ia: não se dava bem com o sogro e a sogra que sempre se opuseram ao seu casamento. Nosso barnabé quase não conseguiu conter a alegria que lhe assaltou de repente as entranhas. Tinha, por fim, o álibi perfeito. Tramou, então, levar Eufrasina, por fim, para a lua-de-mel . Programou toda a tramóia. Levaria a namorada, no sábado, para Bertioga. Soube que lá haviam inaugurado o primeiro Motel de toda a região. Ouvira alguns amigos comentarem a novidade. Aquilo se tornara uma verdadeira revolução nos costumes de Bertioga e periferia. Antes só se tinha o Moitel e neguinho pelado precisava se resolver no escuro com carrapicho, com cobra, formiga vermelha, urtiga e cansanção. Finalmente a modernidade chegava a Matozinho!
No sábado um Eudóxio trêmulo e ansioso pôs Eufrasina na velha fubica e partiu para Bertioga. Ela avisara em casa que ia dormir na casa de uma amiga. O percurso de poucos quilômetros pareceu estranhamente longo, os minutos não passavam. Logo na entrada de Bertioga, nosso projeto de noivo avistou uma casa grande e uma placa luminosa, com luzes em pisca-pisca onde se lia: “ Motel Nossa Senhora Aparecida”. Eudóxio teve um mal pressentimento. A ansiedade , no entanto, falou mais alto e ele pegou a chave na portaria e adentrou o estabelecimento. Observou, enquanto buscava o quarto 25, que as dependências da casa estavam superlotadas. Estacionou e entrou com Eufrasina num pequeno quarto, com uma luz vermelha no teto, uma cama redonda, uma quartinha do lado da mesa de cabeceira e um ventilador zoadento no teto. Enfim sós !
Começaram os jogos iniciais e quando se preparava para bater o centro e levar a partida pelos 90 minutos regulamentares, de preferência com goleada, ouviu fortes batidas na janela do quarto. Imaginou que fosse algum serviço especial da casa. Pediu tempo e entreabriu a porta. De repente, foi jogado ao chão por homens armados que anunciaram o assalto e mandaram todos sem roupa ir ao pátio central do motel. Ele e Eufrasina, faltando mão para cobrir todas as dependências, se viram, de repente, como Adão e Eva, expulsos do paraíso. No pátio já se aglomeravam mais de cinqüenta casais, todos peladinhos como nasceram. Depois de ter sido feito o rapa geral, por cinco bandidos encapuzados, todos tiveram que se dirigir à delegacia de Bertioga, ainda sem roupa, para fazer o devido Boletim de Ocorrência. Só aí é que Eudóxio , atarantado, começou a identificar os outros companheiros de infortúnio. Padre Sabino tentava esconder o coroinha; Sinderval Bandeira, o prefeito , em pelo, buscava esconder a mulher do presidente da câmara de vereadores; D. Irenilda, a beata mais irada de Bertioga, estava nuinha, junto da companheira : D. Zarilda, a delegada. A revelação maior, no entanto, estava para vir. No meio do strip-tease comunitário, Eudóxio conseguiu identificar, aquilo que seria a maior surpresa da festa: D. Marinalda, sua santa esposa, sem roupa, tendo ao lado o sacristão da catedral: “Pedim Boca de Fole”. Só depois soube que o sogro e a sogra já tinham falecido em Serrinha dos Nicodemos há mais de cinco anos. Diante de tanto fragrante delito, com o rastilho de pólvora de uma bomba de muitos megatons chiando nas suas mãos, o delegado Fifim Aribé não se conteve e suspirou :
---- Bem logo vi que sapecar nome da padroeira do Brasil neste tal de moté ia terminar dando um azar danado!

Crato, 04/12/08