sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Luminares

 

                                                J.FLÁVIO VIEIRA

 

“E fez Deus os dois grandes luminares:

o luminar maior para governar o dia,

e o luminar menor para governar

 a noite; e fez as estrelas.

 E Deus os pôs na expansão dos céus

para iluminar a terra.”

 

                                       Gênesis 1:16,17

 

                        Como no Gênesis  bíblico, início de tudo e de todas as coisas, sempre imaginei que, partindo para uma escala infinitesimal , era possível imaginar a criação e formação do caráter humano. E, como Deus, para iluminar a consciência, os caminhos tortuosos da existência, nós , também, necessitamos de Luminares. Existe, claro, o Luminar da Família, aquele que ajuda a governar nossos dias e, do outro lado, o da Escola, aquele que tem capacidade de clarear nossas noites. Acontece que nossos mestres, não diferentemente de todos seus alunos, possuem maior ou menor luminiosidade, voltagens e lumens diferentes, com a capacidade, de aclarar um pouco só das veredas da vida ou tornarem-se verdadeiros sóis, postados na expansão dos céus, e mostrando e delineando a vida em todas suas dimensões.

                        Conto, na minha história, com uma dezena de professores que tiveram essa força criadora, a quem devo uma parcela importante daquilo que penso, daquilo que defendo , daquilo que sou. Impulsionaram meu voo com a energia inercial necessária para que chegasse até o infinito. Se meu adejo deixou a desejar, não foi por culpa deles,  faltou-me apenas força e ímpeto nas asas e no coração. Um dos meus Luminares foi a professora Sílmia Sobreira, nascida aqui em Juazeiro do Norte. Nos anos sessenta, recém chegada da França, onde fez mestrado, Sílmia tornou-se minha professora de Francês no Colégio Estadual Wilson Gonçalves e na Aliança Francesa. Mas não foi apenas uma mera mestra de línguas. Sílmia trouxe uma grande bagagem cultural da Europa, ensinou-nos não só a língua que nos abriu caminhos antes impensados, mas iniciou-nos na bela música francesa, na pintura , na literatura riquíssima da terra de Victor Hugo e no belo Cinema  que palpitava na Nouvelle Vague. A ela devo a leitura, em vernáculo , de autores como Gide, Françoise Sagan, Victor Hugo, Anatole France, Jacques Prévert,  Faulkner.

                        Retornando da Europa, em plena Ditadura Militar, Sílmia, uma figura fisicamente frágil, enfrentou os Anos de Chumbo com força de gigante. Publicava artigos fortes, críticos ao Regime de Terror, no Jornal Tribuna do Juazeiro. Na sala de aula, no entanto, nunca fez proselitismo político, acredito que temia  que seus alunos terminassem por vir a sofrer as perseguições que logo cairiam sobre ela. E nem precisava discurso, o poder do exemplo transmitia lições bem mais duradouras.  Por volta de 1974, foi presa e torturada. Depois disso, resolveu fixar-se em São Paulo, talvez porque  lá seria mais fácil fugir das perseguições. Tornou-se Psicanalista Lacaniana, reconhecida e incensada em terras paulistanas. Encontrei-a, algumas poucas vezes, nas suas raras visitas ao Crato. Era amiga querida de meu pai, também professor, tenho ela guardada em um retrato quando foi madrinha, na formatura dele, na Faculdade de Filosofia. Disse-lhe, sem que era acreditasse, da importância que teve na minha formação intelectual e política. As poucas qualidades que me ficaram, após o sacolejo na bateia do tempo, devo muito  à grande figura humana e intelectual da professora Sílmia Sobreira.  Soube, ultimamente, triste e ressabido, que o inverno da existência lhe chegou com seus relâmpagos e trovões e que ela, com saúde frágil e com lapsos de consciência, passa os dias longos, numa casa de repouso em Fortaleza.

                        Dificilmente estas palavras lhe chegarão para acalentar esses dias frios. Mas que , ao menos, fiquem como uma luz para as futuras gerações, em tempos que voltam a ser de raiva canina, de desamor, de ódio e de sanha criminosa. Talvez o que nos faltem hoje seja justamente Luminares nos horizontes do país, daqueles que, como luas e sóis têm a capacidade de iluminar a terra e afastar-nos dos penhascos , dos icebergs e dos abismos. Uma cintilação impactante  como a da professora querida Maria Sílmia Sobreira da Silveira.

Crato, 25/11/2022

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Seu Mercado

 



O velho Chico Pederneiras  era o incréu empedernido de Matozinho. A poeira e os pedregulhos da estrada engrossaram seu cangote e  o deixaram sempre com uma purga detrás da orelha. Tinha um olhar crítico e enviesado para todas as notícias e informações que chegavam com tarja de  certeza absoluta, com carimbo de   veracidade incontestável. Chico aprendera no meio da rua que era preciso colocar descontos nas histórias, do mesmo jeito que acontecia no mercadinho da vila e no caixa do banco.  Principalmente em casos de Santidade, Brabeza e Riqueza. Não engolia nem os dogmas bíblicos, lançados com línguas de fogo e ameaçadoramente pelos crentes e beatos de Matozinho.

                                    --- Se o Supremo Criador do universo escolheu essa rafaméia como porta voz, a gente vê logo que a coisa não pode ir para frente!

                                         Quando os mais ortodoxos  proibiam , montados na cangalha do livro sagrado, o uso de bebidas,  Chico usava imediatamente o argumento das Bodas de Caná e da transformação da água em vinho. 

                                    -- Se fosse pecado, cambada de besta, Jesus tinha quebrado era os potes e jogado no mato as tripas assadas do tira-gosto. E tomou as providências, para a alegria da cambada toda,  a pedido de Nossa Senhora que sabe da precisão do povo da Galiléia !

                                    A incredulidade de Pederneiras também se estendia para os profetas de chuva de Matozinho. Aqueles cientistas que começam a mirar os sinais da natureza a fim de  adivinhar a força do inverno do ano vindouro. Nas reuniões que aconteciam em agosto, na praça da matriz, os  mais importantes profetas faziam as previsões do inverno, Pederneiras estava sempre presente se contrapondo não ao que era previsto mas à metodologia empregada para chegar à conclusão .

                                    --- O inverno do próximo ano vai ser bom , dizia do seu lado,  Totonho dos Búzios. Olhei pro céu ontem e a lua pendeu !

                                    --- Isso não dá garantia de nada , não ! Atacava de lá Pederneiras. Em 1958 , a lua pendeu tanto que nós tivemos que escorar para ela não cair no chão e foi seco como língua de papagaio!

                                    --- O próximo ano vai ser seco , previu de um lado Tica do Olho D´água, uma das mais requisitadas profetas da região.

                                    --- Por que a senhora chegou a essa conclusão, D. Tica ?

                                    --- As rolinhas cachechas fizeram ninhos nos riachos do rio Paranaporã ! Sabem que não vai chover, senão,  não teriam feito, né?

                                    Chico , incrédulo, atacava de lá:

                                    --- D.  Tica e a senhora vai por  cabeça de rola, é ? Cuidado, viu ?  Joana de Zé Vintém foi acreditar numa bicha dessas, teve menino na semana passada !

                                    Nestes dias, nas rodinhas da praça, rolou a conversa de que um tal de mercado ficou nervoso porque o novo presidente eleito, que teve mais de noventa por cento dos votos em Matozinho, prometeu ajudar os pobres. É que tinha gente passando necessidade, gente comendo mucunã  e palma assada pra ver se não partia dessa para melhor. E o tal do mercado andava nervoso, dando piti, com a Bolsa dando prejuízo e um tal de dólar subindo mais do que fogo de artifício em quermesse de novembro. Muita gente estava preocupada na cidade com aqueles altos e baixos que saiam na televisão. Pederneiras, diante da aflição dos  matozenses, os tranquilizou:

                                    ---  Meu povo, deixe de ser abestado! Rico é quem se preocupa com esse tal de Mercado, pobre só deve ficar de olho é no supermercado. Essa tal de Bolsa é falsa que só fojo de preá ! Parece mulher com TPM! Basta uma fofoca ela que ela sobe e desce como pixite em noite de São João ! Alguém aqui conhece esse tal de Mercado ? Quando vocês tavam passando fome, na Seca do ano passado, ele veio aqui e perguntou do que vocês precisavam ? Quando a bexiga preta tomou conta de Matozinho , Seu Mercado chegou de ambulância trazendo remédio e vacina ?  Quando Quinco Cirino foi preso porque ofendeu Risalvinha de Mané Victor, o dr. Mercado chegou com o alvará de soltura ?  Não ? Pois seu Mercado, tu tá nervosinho, é ? Pegue tua bolsinha e teu dólar, dobre bem direitinho e use como supositório! Tá nervosinho ? Nós não somos chá de camomila, não!  E nem comprimido de diazepam ! Vá pra baixa da égua !

                                    E olhando diretamente para a televisão, onde Pederneiras acredita que reside Seu Mercado:

                                    --- Perdeu, Mané !  Não amola !  Melou-se ? Vá limpar o fiofó com folha de cansanção !

 

Crato, 18/11/2022

                                     


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Esconde-Esconde

 


 

J. FLÁVIO VIEIRA

 

                               Era o ano de 2069. Matozinho já virara uma cidade  modernosa. Tinha mais de vinte ruas, uma agência bancária e até a igreja de N. S. dos Desafogados ganhara uma segunda torre que vigiava a vila, do alto,  como um periscópio. A novidade explodiu, justamente, quando começaram os trabalhos para estender os trilhos e dormentes da Estrada de Ferro que chegaria até Matozinho. Os matozenses, gabolas, até já cantavam vantagem quando viram a imponente estação  ferroviária da RFFSA começar a se erguer na entrada da cidade. Mas aí aconteceu o fenômeno. Ao derrubar uma barreira próxima ao açude do Sabugo, deram com uma descoberta arqueológica comparável à Descoberta da Tumba de Tutancâmon. Como não existiam mais testemunhas vivos que desvendassem os meandros da descoberta, foram ter com a única possibilidade de aclarar o mistério. Representantes da companhia ferroviária e o prefeito  Umercindo Piau procuraram o velho Xilderico Penteado,  já centenário, mas com uma cabeça melhor do que de alguns meninos que ainda mijavam nos coeiros como ele.

                        Xilderico assuntou, assuntou, olhando para o cimo da Serra da Jurumenha como quem procura disco voador. Passados alguns minutos, cobrou sentido e explicou com uma voz semitonante própria das mais de dez décadas que o perseguiam:

                        --- Pelo que me alembro, acho que o que vocês acharam é resultado do Primeiro Campeonato Matozense de Esconde-Esconde, acontecido no finzinho de 2021. Eu , rapazote, participei, me atrepei numa Timbaúba lá pras bandas de Bertioga, mas me encontraram  uns três dias depois, pois tive que descer pra procurar alguma coisa pra comer. O vencedor foi Chico de Tudinha que se escondeu dentro de uma cacimba e só saiu quinze dias depois, sobrevivendo com umas bananas que tinha levado e bebendo água no porão, feito caçote.  No segundo campeonato, em 2022, ele se escafedeu, escondeu-se tão bem escondido que ninguém nunca mais encontrou. O que foi mesmo que vocês acharam, na barreira que caiu perto do açude do Sabugo?

                        O pessoal da RFFSA, então, mostrou as fotos. Tinham encontrado numa espécie de túnel, uma caveira de pé, em posição de sentido, como se estivesse em Parada de 7 de Setembro, e no pescoço dependurada uma fita, tendo na ponta uma Medalha dourada e lá escrito:

                        --- Campeão de Esconde-Esconde. II Campeonato Municipal Presidente Bolsonaro– Matozinho /2022 !

                        Xilderico, então, com olhos brilhantes, examinando as fotografias, concluiu. Finalmente desvendado o mistério  do desparecimento de Chico , que já durava mais de quarenta anos ! Ele era um craque no esporte que abraçara, tanto que conseguiu ficar escondido por tanto tempo, sem ninguém  dá notícia do homem, nem Tudinha !

                        O prefeito  Umercindo Piau agradeceu a ajuda valiosa do velho Xilderico na elucidação do caso. Mas tinha uma curiosidade. Quem diabo era esse tal de Presidente Bolsonaro que dava nome ao campeonato e o porquê de tamanha honraria ?

                        Xilderico, puxou pela memória e esclareceu:

                        --- Era um presidente do Brasil meio tantã, gabola, zoadento, caga-goma e metido a cavalo-do-cão. Batizaram o Campeonato de Esconde-Esconde com o nome dele, porque, depois que ele perdeu uma eleição, levou uma surra danada e saiu com o rabo entre as pernas e ganindo : Cãin, Cãin, Cãin...   desapareceu, entrou num buraco e ninguém nunca mais viu o cara. Ficou mais escondido que mulher de pistoleiro que vira quenga de pastor.  

Crato, 11/11/22