sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Entre portas e remansos

 

Estamos chegando no finalzinho deste ano e sempre nos bate aquela sensação de  que fechamos mais um ciclo. Parece que fechamos uma porta do ano de 2022 e abrimos uma outra para um novo,  prenhe de oportunidades e perspectivas. Talvez tudo isso nos advenha dos marcadores cíclicos da natureza: a alternância da noite e do dia, a mutabilidade das estações e dos solstícios de verão e inverno. Nossos circuitos internos, como o pêndulo de um relógio, marcam também, em nós, fases e etapas da nossa vitalidade. Como a árvore que brota da semente, cresce, floresce esplendidamente por múltiplas florações e ,um dia, por fim, fenece, entendemos , num simples olhar ao derredor, que o nosso trajeto vital segue um alternar de estações, como a natureza onde estamos inseridos. Como um rio, no entanto, apesar das marolas, das quedas em cachoeiras, da placidez corrente das planícies, as águas continuam fluindo da nascente para a foz, num movimento incessante em moto contínuo.

                        Assim, a mudança dos anos é apenas uma mera convenção criada por nós mesmos. A perspectiva de que a porta de 2023 nos vá dar acesso a um novo Shangri-lá, ao paraíso sonhado, à irmandade entre os povos,  à ascensão que tanto sonhamos, ao peso ideal que  almejamos,  é um puro devaneio onírico. A linha contínua do tempo, basta observar bem, não possui portas ou janelas, e é sempre impossível prever o que nos espera na próxima curva do rio. Cachoeira ? Remanso ? Uma baía fluvial de águas tépidas ?  O desejo de melhor navegabilidade na esquina que quebra à nossa frente acalma-nos a nós e a nossos outros companheiros na viagem, mas não muda a sucessão de acidentes e paisagens que nos esperam, imutáveis, nos próximos passos do curso da existência.

                                    Mas já que criamos a porta que, aparentemente, separa os anos, que podemos enfim fazer para que os jardins que se abrirão com o ranger da porta, sejam mais floridos e brilhantes do que os que deixamos para trás? Não podemos mudar o curso do rio que , inevitavelmente correrá da nascente para a foz, com suas tormentas e acidentes desconhecidos mas demarcados. Podemos, no entanto, mudar a nós mesmos, para tornar a  viagem mais prazerosa e mais suportável diante das  intempéries que, certamente, virão. É possível melhorar a convivência com nossos companheiros de percurso que, com certeza, mesmo navegando em outras embarcações, estão junto a nós por um maravilhoso acaso, dividindo conosco a mesma travessia, o mesmo espetáculo,   as mesmas alegrias e tristezas da excursão. É também importante que cuidemos dos detalhes e bebamos, sofregamente, todo o cenário mágico que irá se descortinando, à nossa volta, pouco a pouco, vezes em câmara lenta, vezes em carrossel . Ele nunca mais se repetirá com as mesmas nuances, durante todo o trajeto. E, principalmente, precisamos compreender, para que entendamos a essência do rio, que tudo que irá sendo pouco a pouco nos oferecido – nuvens, árvores, pássaros, flores, folhas, frutos, o sol brilhante do dia e a luz prateada da noite --- tudo isso faz parte indissociável de um todo. Sem a soma de todas essas parcelas, não existe o rio e não existimos nós.

                                    Que 2023 abra, então, essa porta verdadeira. Aquela que se escancara não para o futuro imprevisível do rio, mas para as paisagens ainda escuras e obnubiladas de nós mesmos. Que consigamos viajar solidariamente com aqueles que conosco compartilham  a mesma peregrinação, dividindo com todos os atropelos e prazeres do itinerário. O preço de fazer adernar outras embarcações é sempre pago com moedas de solidão. Se  todas as naus  estão fadadas a soçobrarem durante a travessia, o que vale , em efeito,  é curtir cada uma das voltas do rio. Que esta também seja uma porta a ser descerrada no próximo ano. E, por fim, fechadas as últimas portas com redemoinhos e procelas,  que coloquemos novos ferrolhos e cadeados,  nas quatro últimas , para que não vazem para 2023 e os próximos portais, os afluentes pútridos de esgotos que desaguaram no nosso rio, ultimamente. Que, a partir de agora,  possamos rir enquanto o rio flui !

Crato, 23/12/22  

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O Rio

 

                          J. Flávio Vieira

 

“Nada começa: tudo continua.

Na fluida e incerta essência misteriosa

Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.

O mesmo rio flui onde se vê.

Começar só começa em pensamento”.

                                                                                                      Fernando Pessoa

 

                                               Contemplando a geografia única da existência, há só uma verdade  inquestionável: o Rio flui. Encorpando-se desde a nascente, alimentando-se de incontáveis e múltiplos afluentes, ele flui. Às vezes nem percebemos o curso plácido das suas águas que parecem hipnotizadas pelas sombras do arvoredo ciliar, mas basta olhar o tapete de folhas secas flutuantes para termos a certeza inequívoca de que a corrente líquida tem vida e escorre pelas veias fluviais, lenta mas persistentemente. Outras tantas vezes, o seu fluxo  apressa-se, açoda-se , desce num turbilhão, carregando tudo que encontra pela frente, despencando em cascatas e cachoeiras. Aí não temos dúvida quanto à sua fluidez , impressionados com sua força e violência. E mesmo quando, nos períodos de estio prolongado, o rio transforma-se em poças espaças e, aparentemente, encontra-se morto e imóvel, ele apenas hiberna, prepara o bote para a enchente futura. Sua rota está traçada no chão como o espinhaço de uma serpente. As curvas do rio , cheias ou esquálidas,  demarcam apenas  o seu fio de eternidade.

                                    Vezes com águas turvas e barrentas, não conseguimos depreender sua profundidade e seus mistérios.  E até  mesmo com liquidez translúcida é sempre mais fácil beber a paisagem em volta, que muda como um caleidoscópio a cada instante e que é única e insubstituível e sem reprises,  do que entender  e vislumbrar e decifrar os enigmas guardados pela esfinge das profundezas,   por conta das deformidades em filtro da refração.

                                    Somos apenas baronesas flutuantes no curso d´água. Totalmente incapazes de definir a direção da rota. Cabe-nos apenas a inevitabilidade do movimento da nascente para a foz e é por ali onde nós e o ele  fluímos. Cada baronesa, embora todas participem do mesmo percurso, faz a sua própria viagem. O rio é sempre o mesmo, mas cada uma percorre um outro rio. As águas têm temperatura, transparência, velocidade, pureza diferentes. Estamos mergulhados no mesmo rio, mas flutuamos em rios diferentes.

                                    O destino final do desembarque, também, nunca sabemos. Algumas ficarão presos nas margens  iniciais . Outras afundarão com as primeiras marolas. As baronesas mais frondosas se desfolharão com o mergulho nas cataratas. Algumas poucas , por fim, submergirão a caminho da foz. Mas o rio, impassível, continuará fluindo.

                                    Com ou sem as baronesas ele continuará o seu fluxo. Até porque sabe que outras tantas virão para substituir as que soçobraram. Que marcas deixam as baronesas no curso das águas? Uma visão verde e breve do seu percurso errático, um vestígio fugidio como as pequenas ondinhas que a gota d´água desencadeia ao cair na superfície do rio. Maiores, mais enfolhadas, mais verdes ou ressequidas, menores e mais insignificantes, indiferente ! As baronesas são meros artefatos à deriva no leito , adereços efêmeros e meteóricos. A única essência é o rio que , ininterruptamente, flui.

                                    Olhares vesgos, observando de longe, até imaginamos que é o balseiro flutuante  que escorre em procura do mar, vezes mansamente , vezes em enxurrada. Mas a escumalha apenas cavalga o corcel lépido da vida. Somos cisco, sujeira, lixo, detrito, refugo embaçando a limpeza cristalina da superfície, uma sombra para o  rio que, negaceia, enigmaticamente,  e fui, indiferentemente,  com suas águas nuas...

 

Crato, 15/12/2022