sexta-feira, 26 de abril de 2024

A Guerreira Feliz

 

 

J. FLÁVIO VIEIRA

 

                            “Os heróis são famosos,

                        mas os santos são anônimos”

                                    Russel Shedd

 

                        O heroísmo tem, em geral, uma conotação bélica, uma maneira de incensar soldados que fizeram feitos tidos como inéditos nos campos de batalha. Alguém já disse que nas guerras não existem heróis, apenas sobreviventes.  Talvez se tente, com a criação de um mito, justificar a tragédia que joga milhares de jovens a matarem-se entre si,  por ideais sombrios e desumanos.

                   Lembrei-me , imediatamente, dessa constatação, quando, neste 20 de abril, caiu uma guerreira ,de uma causa mais nobre, em um outro campo de batalha. Chamava-se Expedita Maria de Jesus, mas , por esse nome, seria impossível identificá-la.  Ficou marcada na história da saúde do Cariri, por um outro epíteto: Edite. Um apelido, de origem no inglês arcaico, que lhe caiu como uma luva e significa “Guerreira Feliz”. Quase uma premonição !  Nascida em Potengi, em 01/06/1926, ela veio trabalhar  , por volta de 1950, no Hospital São Francisco de Assis de Crato, o pioneiro da região, administrado pelas Irmãs de Caridade e sob a batuta do Mons. Francisco de Assis Feitosa e depois do Mons. Rocha, Raimundo Augusto e Padre Teodósio. Ali, forjada pelo conhecimento prático, pelo cuidado e pela formação religiosa, Edite se tornou  Enfermeira, numa época em que ainda não tinham chegado as primeiras com formação universitária. De personalidade forte, especializou-se em Centro Cirúrgico, convivendo com alguns cirurgiões pioneiros da nossa região: Gesteira, Antonio Macário, Joaquim Fernandes Teles, Maurício Teles, Eberth Teles, Décio Cartaxo, Fábio Esmeraldo, José Ulisses Peixoto. Rápido se tornou uma referência na formação de novas atendentes de Centro Cirúrgico. Disciplinada, sistemática, profissional ao extremo e autoritária, quando necessário, formou gerações de trabalhadores de Centro Cirúrgico. Percebia-se, com facilidade, aqueles que tinham passado por seu crivo e pelo seu ensino. Além do profundo e minucioso conhecimento da sua área, de extrema responsabilidade, Edite somava a tudo isso uma imensa visão humanitária. Solidária, caridosa, cuidadora nata,  ela sabia que o toque de Midas da sua atividade se encontrava justamente ali. Trabalhou, incessantemente, por mais de setenta anos, no mesmo hospital. Retirou-se recentemente, já nonagenária, mas em plena vitalidade física e mental. Conviveu, de perto, com outras luminares enfermeiras do seu tempo como Bernadete Gonçalves e Salvina Lucena. Ela me dizia que lembrava de meus pais ainda noivos visitando, no São Francisco, um irmão de minha mãe, em leito de morte. Trabalhou com um tio avô meu, Joaquim Pinheiro Filho, primeiro diretor do hospital,  comigo e com meus filhos, médicos. Varou pelo menos quatro gerações.

                   Quase centenária, nos deixou nestes dias. Visitei-a neste último momento, estava lúcida, esperançosa e loquaz.  Impossível entristecer, hoje,  diante de uma vida tão plena. Que mais precisaria Edite desejar da vida ! A transcendência tornou-se apenas um mero detalhe na sua trajetória.  Longeva, produtiva, solidária, amiga, formadora de vocações. Um desses heróis verdadeiros, daqueles que se banham em laivos de santidade. Viúva, não deixou filhos biológicos. Mas espalhou uma infinidade de rebentos adotivos por esse mundo afora: alunos, colegas, pacientes cuidados e salvos por suas mãos. Merecia um monumento na nossa Faculdade de Medicina ou no pátio do Hospital São Francisco. Com a partida dela inuma-se um fragmento importante da história da Medicina em terras caririenses, aquela em que cuidar, amar, amparar, solidarizar-se, ser empático, sentir o sofrimento do outro como seu,  eram parte indissociáveis do Tratamento e da Cura. Esse , talvez, seja a maior herança que ela deixa para os profissionais de saúde que saem à mancheias das faculdades atuais, muito mais bacharéis em saúde do que artistas da arte médica.  

Crato, 26/04/24

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Chama

 


--- Bom dia ! Tudo bem ? O senhor quer que eu reze no senhor ?

                   A porta da enfermaria   abrira-se lentamente. Pela fresta apareceu o rosto sereno e angelical de uma senhora que aparentava seus setenta anos. A voz soava delicada, quase como um solfejo e pareceu amplificada pelo sorriso discreto, tranquilo e pouco forçado.

                   Apolônio ali estava deitado no leito desconfortável, de um lado cochilava sua esposa, na caminha baixa de acompanhante. A noite havia sido dura, como as das últimas duas semanas. Até àquele dia, tivera saúde de um touro miura. Aos sessenta e cinco nunca precisara procurar médico e ralhava dos colegas que viviam nas portas dos consultórios. Naquele dia, voltava do estádio, onde fora assistir ao jogo do seu time de coração, quando a dor lancinante lhe varou o espinhaço. E dali não mais arredou. A contragosto, procurou a emergência de um hospital próximo. Interno – e nem estrebuchou quando decidiram por isso—começou o périplo interminável de exames. Parecia uma ciática, até que a tomografia levou ao diagnóstico, fechado depois numa colonoscopia. Tratava-se de uma metástase na coluna de um câncer avançado que lhe invadira o intestino grosso. E ali estava ele, ainda com dores intermináveis, enquanto iniciava o tratamento de quimio e radioterapia.

                   A voz  que ecoou   no entreabrir da porta lhe trouxe, inexplicavelmente, um certo alívio. Apolônio, talvez por isso, abortou a negativa que já estava engatilhada. Era comunista de carteirinha e, montado no materialismo dialético, não acreditava em deus, santos, arcanjos, milagres e quejandos. Os últimos dias, no entanto, tinham sido tão sofridos que ele reconsiderou: Se bem não faz, mal não fará, ademais já estou aqui mais lascado do que faixo em noite de lua cheia! Sorriu de volta  para a senhora e disse:

-- Por que , não ? Não custa tentar !

                   A rezadeira entrou resoluta e sem muito estardalhaço. Ao pé da cama colocou um crucifixo. Trazia um galhinho de mato  na mão . Fechou os olhos como em transe, envergou o galho e passou a balbuciar algumas palavras quase que inaudíveis, com voz gutural. À medida que falava ia sacudindo o raminho  em movimentos rítmicos primeiro no rosto dele, depois nos ombros, no peito e, por fim, no baixo ventre. Vezes parecia-se ouvir as orações mais tradicionais: Credo, Ave-Maria, Pai Nosso. Depois de uns dez minutos, por fim, a oração deu-se por finda. A mulher abriu os olhos lentamente, mostrou-lhe o galho com flores totalmente murchas e o lançou na lixeira que estava guardada abaixo da cama.  Agradeceu pela oportunidade ainda com olhos lassos, desejou boa sorte ao doente de quem sequer conhecia o nome. Deu meia volta, após recolher o material que trouxera, para Apolônio e saiu cuidadosamente, sem barulho , para não despertar a esposa largada na cama que tentava recobrar as forças desprendidas no trabalho da noite.

                   Ele, depois,  nem contou à mulher da visita. A rezadeira não mais voltou. As dores continuaram atormentando Apolônio na sua via crucis, mas uma coisa inexplicável aconteceu. Desde aquele dia a família notou que o paciente estava mais sereno diante do sofrimento, a perspectiva do fim da estrada lhe parecia mais natural. Como uma borboleta que não se importava em queimar-se na luz da chama , pela simples certeza de banhar-se de luz.

Crato, 19/04/24

sexta-feira, 12 de abril de 2024

O Chocalho e o Gato


 

 

J. Flávio Vieira

 

                   Família de classe média, no Brasil, não tarda em virar condomínio. Os filhos mais velhos começam a casar, geralmente por algum acidente de percurso no namoro, e, ainda sem recursos para  voar com asas próprias, vão fazendo ninho na casa dos pais. De repente, espalham-se pela casa filhas com esposos, filhos e mulheres, rebentos que se vão multiplicando em meio a tias, tios, avós. Essa realidade faz com que primos se tornem irmãos e sejam criados juntos num grande rebanho, no mesmo terreiro, dividindo a mesma feira, os mesmos brinquedos, a mesma cozinha e , às vezes,  os mesmos quartos.

                   Essa história vem de uma dessas famílias de amigos nossos que, em Recife, precisaram compartilhar o mesmo apartamento com a filharada e a netarada. Eram mais de dez primos, em escadinha,  imprensados num mesmo Ap de três quartos minúsculos. Salvo as escaramuças esperáveis, a convivência entre eles tinha lá seus arranca-rabos mas não se transformara num Hamas X Israel. Havia uma única exceção. A meninada dividia-se entre cinco e dez aninhos, mas havia um dos primos mais taludo que, com cara pinicada de espinhas, já completara quinze . Chamava-se Robledo , nome que por si só já soava como uma ameaça, ema espécie de teje preso. E, montado no corcel arisco da adolescência, ele achava-se superior aos outros, uma espécie de general entre os samangos. No  almoço assumia o direito de pegar o pedaço maior  da mistura, nos jogos roubava como um político e não se conformava em perder uma partida sequer e, o mais grave, detinha o controle da televisão e impedia a turma de escolher os programas preferidos que, claro, tinham lá suas especificidades para cada faixa etária. Brigas e discussões aconteciam frequentemente, mas o grandalhão, sojigava a todos com seu tope mais atlético e seus pesqueiros. Dia após dia a situação foi se tornando insuportável. A meninada mais nova esperou, o momento  do fortão sair para a escola e , numa assembleia participativa, pôs em pauta o grave problema do autoritarismo do primo mais velho. Em comum acordo, depois de amplo debate, resolveram:

                   --Só há uma solução,  temos que matar Robledo!

                   A partir daí armaram o plano. Quando ele chegasse de tardezinha  e desse de garra do Controle Remoto, Severino, o Biu,  de 09 anos, avançaria sobre ele, na tentativa de resgatar   o instrumento, mas antes lançaria o grito de guerra: atacar ! Aí Pedro viria com um cabo de vassoura,  Cristino com um canivete, Alice com a trave da porta, Sabino com o facão rabo de galo, Honório atacaria com a baladeira, Lys com a frigideira, Hortêncio atiraria com seu bodoque, Lurdinha, Jaime e Naldo lançariam pedras no pé do ouvido de Robledo. Até ensaiaram o motim que redundaria, finalmente, na queda do ditador e na liberdade, ainda que tardia, da primarada.

                   À medida que se aproximava a hora provável do retorno do tirano, apesar do preparo  psicológico e dos ensaios, notava-se um ar de medo e apreensão nos meninos, aquele mesmo que invadiu os soldados  aliados, no Dia D. Pareciam manifestantes diante de Xandão. Quando  , por fim, viram o trinco da porta se mexer, conforme ensaiado previamente, os primos se esconderam em diferentes lugares próximos à sala, com armas nas mãos. Todos a postos.  Biu deitou-se , folgadamente no sofá, segurando o controle,  e aguardou o momento de dar o bote. Robledo entrou e já partiu para cima, tomando o remoto:

                   -- Decá isso aqui, seu mané. É meu !

                   Num salto de gato, Biu voou em cima dele, tomou o controle e, conforme combinado, deu o berro  de guerra:

                   -- Atacar !

                   Como não visse qualquer reação, repetiu umas três vezes, enquanto corria  na sala, tendo um Robledo, de dentes trincados, no seu encalço.

                   -- Atacar ! Atacar ! Atacar !

                   A operação de guerra parou no grito de Severino. Primeiro no de atacar, depois no de chorar com o tabefe  fenomenal que levara de Robledo, antes de arrancar-lhe o artefato de sua mão.  O exército amarelou e o grande plano ficou apenas no planejamento.

                   No futuro Severino descobriria que a famosa operação Mata-Robledo havia sido apenas um pequeno experimento do que acontece, a todo instante,  na vida real. A grande distância que separa a ideia genial de sua execução prática. Fiéis até tinham planos engenhosos de salvar Jesus da cruz;  Tiradentes aguardou as forças rebeldes que o resgatariam da forca; Frei Caneca esperou os amigos revolucionários equatorianos que o salvariam do fuzilamento; Bolsonaro acredita que a boiada vai soltá-lo da prisão. No Brasil há sempre mais ideias geniais do que voluntários que as apliquem.  Há gatos e chocalhos demais na praça , o problema é que ninguém sabe como amarrar no pescoço do bichano.

Crato, 12/04/24