sexta-feira, 29 de junho de 2018

Comunismo em Matozinho




                                               O delegado Sinebrino Peralva resolveu, por fim, tirar umas férias. Vinha há mais de cinco anos no batente e a corporação, simplesmente, não lhe dava uma carta de alforria. É que eram tempos tenebrosos, na Ditadura Militar, e , a cada dia, chega uma notícia nova de sublevação, de revolta, do risco de o comunismo se apoderar do país. E milico tem mais medo de comunista do que bichano de pitbull. Sinebrino , liberado, arrumou a trouxa e a filharada e  partiu para a fazenda de uns familiares seus lá paras as bandas de Serrinha dos Nicodemos. Antes da partida, no entanto, precisou passar a direção da segurança pública a quem de direito. Chamou os dois samangos da corporação, Severo e Morais , e notificou-os que, a partir daquele momento, eram os responsáveis  diretos pela tranquilidade de Matozinho. Depois do toque de uma corneta rouca, por parte de Severo, anunciou enfaticamente, como um Napoleão depois de Austerlitz :
                                   --- Soldados, eu estou contente em deixar as rédeas da carroça da segurança com vocês!  Matozinho espera que cada um cumpra o seu dever!
                                   Severo e Morais não se mostraram, em nenhum momento, preocupados. Matozinho era um poço de tranquilidade. Os B.O´s  resumiam-se a infucas em discussões de rua, briga de casais, uma ou outra desavença em questões de terra, algum  quicé enfincado em bucho de bêbado.  As coisas andaram conforme o esperado até o nono dia da nova administração da delegacia. De repente, o menino do Correio entrou esbaforido e entregou, nas mãos de Severo, um longo telegrama enviado da 10ª   Região Militar da Capital, assinada pelo Ten. Coronel Petronildo Stewart Laurentino de Carvalho. De posse do documento, ao ver o selo das forças armadas no frontispício do envelope, o delegado em exercício notou tratar-se de coisa importante. O diabo é que Morais e Severo não sabiam ler de carreirinha. Haviam frequentado por alguns meses a escola de D. Pergentina Bilhar, mas mesmo sob o incentivo da palmatória, mal assentavam o nome. Tratando-se de possível assunto melindroso e confidencial, entenderam que não podiam  pedir a ajuda de qualquer um. Optaram pelo adjutório de Tatá Tato que, como o nome sugere, era mudo e vendia verduras de porta em porta, numa carrocinha. Tatá, também, não era nenhum poliglota, mas levara bem mais bolos da palmatória de D. Pergentina. Explicaram ao tradutor que aquilo era assunto de intensa sigilância e que ele não podia abrir o bico, sob risco de ser desaparecido pelas forças armadas. Depois de muito soletra-soletra, Tatá decifrou a nova Pedra da Roseta, a seu modo.

“ Temendo ataque russo, ordenamos verdadeira devassa Matozinho. Destruam aparelhos encontrados. Prendam esquerdistas. Previnam anarquia. Identifiquem e interroguem comunistas.”

                                   Pelo sim, pelo não, temendo vazamentos de informações,  Severo já deixou Tatá preso. Discutiu, a portas fechadas, com Morais, a interpretação da mensagem recebida e cuidaram de tomar as verdadeiras providências, com fins de cumprir a ordem militar. Entenderam, imediatamente, que a ordem e o progresso pátrio estavam em suas mãos.   A partir daquele momento, passaram a fazer diligências esquisitas, sob revolta dos matozenses, uma vez que se  recusavam a explicar as drásticas medidas. Invadiram a Fazenda do velho Simião  Cassundé  e levaram um cavalo baixeiro de estimação. No Bar do Clodô apreenderam caixas de cerveja, sob protesto do dono e de clientes, e levaram para delegacia. Destruíram as poucas sentinas existentes no Mercado. Recolheram ao xadrez mais de vinte pessoas entre homens e mulheres e puseram-nos a fazer companhia a Tatá. Só uma velha professora aposentada teve a honra de ser informada sob as providências adotadas. Por fim, Severo e Morais dirigiram-se à noite, à Boite de Maria Justa, na Rua do Caneco Amassado e, numa verdadeira e absurda violação de privacidade, invadiram quarto por quarto, em meio ao desenvolver dos namoros entre clientes e funcionárias, tentando flagrar sabe-se lá o que. Pegaram , em flagrante delito, apenas Chico Canela Fina, um pobre agricultor da Serra da Jurumenha e que nem era cliente habitué do Maria Justa e, segundo contou depois, Creuza, sua partner, ele estava tentando, no preciso momento em que empurraram a porta, entrar em casa pelas portas dos fundos. Foi recolhido e , sob incentivo de cassetete e cipó de mufumbo, interrogado.
                                   Dias depois, finda a operação de guerra,  Tatá foi solto mas com a responsabilidade de escrever o Relatório da Operação  Faxina Geral. Com mão trêmula, Tatá redigiu o documento encaminhado ao Ten. Cel. Petronildo Stewart.


“Cumprimo a ordem de vocimicê. Recolhemos o cavalo ruço de Simião Cassundé e garantimo que ele num ataca mais ninguém. Tomamos todas as “Devassa” do Bar do Clodô. Derrubamos tudo que foi de aparelho no Mercado, agora os verdureiros e magarefes tão tendo que mijar no mato. Botamos na cadeia tudo quanto foi de canhoto da cidade, só escapou Pedro Cotó que é canhoto mas maneta e a gente acha que não tem perigo nenhum. Conforme vocimicê pediu prevenimos Ana Maria.   Só encontramo um cumunista na cidade e pegamo ele na hora do bem bom. Já interrogamo o homem e demos uns corretivos mas ele diz, de mão posta,  que só foi cumunista naquele dia, jura pelos anjos e santos,  que o que ele é mesmo é priquitista. Tamo esperando a volta do delegado Sinebrino pra saber se a gente sorta o homem ou deixa em cana .
Viva o Brasil !”

sábado, 23 de junho de 2018

A Gruta


A descoberta causou sensação em Matozinho e passou a fazer parte do jornalismo oral da cidade, por muitas e muitas semanas. Afeita à exiguidade de notícias mais pomposas, aquela era um prato feito para alimentar a sempre insaciável curiosidade dos matozenses. O prefeito Sinderval Bandeira mandara alargar a rua principal da cidade que se estendia desde a praça da matriz até às proximidades da prefeitura. Ainda carroçável, pretendia nosso edil torná-la um pouco mais larga e revesti-la com paralelepípedos. Já tinha até fixado , previamente, a placa no nova comemorativa:  “Futura Highhway Pedro Cangati” e logo abaixo : Prazo de entrega : 180 dias,  Orçamento : 3,75  Milhões de Reais. As obras começaram em ritmo de valsa quando, por fim, aconteceu a mais vultosa descoberta do século em Matozinho. Ao escavacar próximo da matriz, de repente, abriu-se uma cratera abaixo do nível da rua e terminaram por encontrar uma gruta, feita de pedras, meticulosamente assentadas. Devia ter mais ou menos uns dez metros de extensão, finalizava com uma espécie de cripta, onde estava exposta, num tipo de altar, uma escultura em pedra tosca, que representava uma figura estranha, de uma metro de altura, gorda como um Buda e com um falus enorme, parecido com uma escultura inca. Adiante do altar existia uma bancada também em pedra , um pouco mais baixa que o esperado e,  adiante, mundurus que sugeriam bancos para uma clientela assistente. A notícia correu como fogos de artifícios em dia de renovação e tornou-se a nova sensação da vila. Professores foram imediatamente convocados para dar um parecer sobre a última descoberta arqueológica em Matozinho. Os pareceres oficiais não batiam. Alguns sugeriram que se tratava de um templo de sacrifícios dos antigos índios capebas que por ali viviam, antes do início da colonização. Outros foram da opinião que a gruta teria sido feita como refúgio de algumas famílias na época do cangaço.  Técnicos convocados da capital , após acurados estudos, dataram a obra de mais ou menos noventa anos atrás, que coincidia com o início da formação da vila e o soerguimento da Igreja de N. S. dos Desafogados de Matozinho, acreditavam que era um possível esconderijo de soldados quando das batalhas ferozes contra os índios Capebas.
                                   Os matozenses  todos tinham versões mais heroicas e épicas sobre a descoberta. Contavam que a gruta havia sido escavada para abrigar Frei Caneca quando da sua escapada de Pernambuco para o Ceará quando houve a derrocada da Confederação do Equador. Ali teria permanecido por uma semana e se não tivesse feito a besteira de colocar a cabeça fora do buraco ainda poderia por ali está vivendo e a história do Brasil poderia ser outra. A figura fálica pagã teria, possivelmente, ter sido colocada em época posterior
                                   As obras da avenida continuaram, pensou-se em fazer um memorial para visitação no local da gruta. Dias depois, no entanto, o prefeito Sinderval Bandeira  mandou, estranhamente,  soterrarem a descoberta e continuarem os trabalhos da avenida. Comentava-se que teria acatado um pedido do bispo diocesano. Comentava-se na cidade que os arqueólogos  da capital, escarafunchando o buraco de Sinderval, tinham encontrado um túnel que o ligava à catedral. Sob o pretenso altar deram com duas ossadas de recém nascidos e, enterradas, junto à bancada que agora viram parecer com uma cama, uma batina  e uma ceroula que tinham gravados o nome do Padre Gumercindo . Deram ainda, juntos,  com uma anágua  e uma calçola identificados com um nome bordado: Hortelina da Madre Deus. Ainda hoje não se sabe bem o que estas indumentárias faziam por lá. Gumercindo havia sido o primeiro pároco da vila de Matozinho e D. Hortelina, pelo que se conta, era a chefe da Ordem Terceira do Carmo, a primeira a gloriosamente chegar àquelas paragens.

Crato, 23/06/2018 

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Um lírio entre os abrolhos




“Torne-se comum e você será extraordinário;
tente se tornar extraordinário
e você continuará sendo comum...”



                                   Era um amigo pouco peculiar. Com formação profundamente dogmática, versado em muitos idiomas, com  imersão em teologia e conhecedor atilado dos meandros da filosofia que lhe permitiram acessar.  Conseguia, apesar disso,  esticar o pescoço para além da linha do muro. Gostava de Osho, talvez porque o guru indiano abrisse-lhe frestas na porta aparentemente impenetrável cerrada à sua volta. De origem humilde, escarafunchava árvores, arbustos  e garranchos genealógicos, com perspicácia , mesmo com a certeza que naqueles galhos não cantariam pássaros nobres e de sangue azul. Mantinha uma conduta ética impecável, sua vida sempre foi uma linha reta, sem desvios, sem picos ou vales. Tinha, no entanto, um humor fino , leve , às vezes banhado de uma agridoce ironia. Sua espiritualidade não era de superfície e irradiava uma luz interior perene. Mostrava-se um homem de poucas dúvidas, com inteira consciência da efemeridade da sua viagem terrena mas cônscio de que estenderia em outras escalas e dimensões. Extremamente reservado no seu posicionamento político, pouco afeito a extremismos, parecia , no entanto, usando como fulcro, centrar o seu compasso sempre no ponto mais frágil do papel e era dali que demarcava seu círculo no mundo. Como pastor de almas, nunca lhe faltaram palavras  para minorar o sofrimento e as agruras inevitáveis do seu rebanho. Vezes pragmático, outras untado numa meiga filosofia de vida, apontava veredas possíveis em meio aos obstáculos da autopista da existência.
                            Apesar da formação escolástica, em tempos mais plúmbeos e fechados, não era careta, nem vestia-se de falsos moralismos. Conversava-se de tudo  com ele, sem que se sentisse ofendido nem abismado. Um agnóstico como eu, não lhe tirava do sério, talvez porque entendesse que era apenas alguém que deixara  a fé cair em alguma vereda do caminho e estava à procura.  Lembro de ter assistido com ele , em São Paulo,  “Sonhos de uma Noite de Verão” de Shakespeare, numa montagem onírica feita pelo grupo Ornitorrinco. Fiquei um tanto temeroso pois, na peça, apareciam  muitos nus, homens e mulheres. Ele não me pareceu, em nenhum momento, escandalizado. Na volta, o motorista do taxi comentou que soubera  o espetáculo era muito esculhambado e imoral. Ele foi taxativo: não existe nada de imoral na peça, meu filho, aquilo é Arte !
                            Escrevia com muita fluência, um português castiço e correto  e com extremo conhecimento da língua, embora , pela própria formação, tivesse um estilo um tanto cartorial. Deixou uma extensa e importante obra Genealógica impublicada, tecida ao longos de muitos e exaustivos anos, aclarando inúmeros ramos das famílias do Cariri e dos Inhamuns.  Como administrador, muitas vezes foi criticado porque sempre colocou o coração  acima do cérebro. Cada funcionário era, para ele, mais que uma simples peça no tabuleiro da empresa, via-os na complexidade das suas vidas, com suas fraquezas, suas limitações e toda a carga vezes insuportável que a vida lhes tinha  dependurado nas costas. Não se alimentava na frieza tumular das regras administrativas, a instituição não podia, a seu ver, se reger por uma simples tabela de Deve-Haver.
                            Carregava consigo um apurado senso musical, como autodidata chegou, inclusive, a tocar violino. Meu amigo mantinha um papo formidável, com bom humor, com ecletismo, distribuindo  causos e mais causos que lhe foram caindo no landuá da vida.
                            Padre Teodósio levou uma existência franciscana, monástica e simples. Como os lírios do campo, soube ser luxuoso, chique e lorde na mais completa simplicidade. Tornou-se extraordinário , fazendo-se um homem comum, um humilde camponês dos tórridos sertões dos Inhamuns. Que encontre, do outro lado do quintal, a paz e a tranquilidade que tanto destilou quando convivia conosco no imenso casarão. Adeus, meu amigo !

Crato, 15 de Junho de 2018