quinta-feira, 29 de junho de 2023

Vitrines


 

 Todos, queiramos ou não,  estamos expostos nas prateleiras dessa vida , não tão diferente da caixa de maionese no supermercado.  Cada um de nós tem um rótulo que a sociedade nos pregou e, embora não percebamos, facilmente, estão impressos nas nossas costas: um código de Barras e um QRcode. Estamos todos à venda, como manequins,   nas vitrines desse mundo.   Você deve ter muitas perguntas sobre esse comércio,  uma reengenharia dos antigos mercados de escravos como da Rua dos Judeus em Recife e  o Valongo no Rio de Janeiro. Quem são os vendedores? Quem é o proprietário da empresa ? Qual o critério para rotulagem dos preços ?

                        Talvez você discorde de mim, acredite que exagero, que todos nessa firma têm o mesmo preço, até porque fazemos  parte de um mesmo item: a raça humana. Mas, te pergunto: todos os sabonetes, todas as meias, todas as pastas de dente têm o mesmo preço na vendinha da esquina ? O que faz com que uma bolsa de mestre Expedito Seleiro tenha um preço e a da Louis Vuitton  , um outro,  mil vezes maior ? A beleza, a qualidade do couro, as nuances do design ? Você me dirá que é um bicho misterioso chamado de grife e que ninguém sabe como é a cara dele nem onde mora. O processo não é tão diferente do homem primitivo que escolhe um pedaço de pedra como amuleto e diz, a partir daí, que ele tem poderes mágicos e divinos.

                        Esses dias vimos  o mundo em parafuso , ansioso, louco, na procura de cinco milionários desaparecidos, num submarino que mergulhou para encontrar o Titanic que, desde 1912, dorme  nas águas geladas , próximo do Canadá, a mais de quatro mil metros de profundidade. Deram a vida para tentar ver o sítio de uma tragédia que matou mais de mil e quinhentas pessoas. Lembrar que também ali  elas eram rotuladas entre primeira, segunda e terceira categorias. A diferença é que, no acidente do início do Século, foram os de preço mais baixo no mercado que pereceram ( os botes foram para os bacanas) e no Titanic 2, os que pagaram o ingresso de um milhão para o afogamento. Enquanto isso os botes precários que transportam pobres imigrantes fugidos dos pobres países da África, morrendo às centenas, não tem qualquer repercussão na mídia. Baratos, em liquidação, estão na parte mais baixa da prateleira.

                        Quem é o dono da grande empresa planetária que rotula as pessoas nas vitrines do mundo? Um bicho escondido, disfarçado que alguns chamam de grana e outros de Mercado . Ninguém sabe onde mora , nem como movimenta seus marionetes. Disfarça-se de Moda, de Grife, de Mídia, de Sucesso. É ele quem diz se você vai andar em primeira, segunda ou terceira classes no trem dessa vida. Você pode ser barato, caro, caríssimo ou estar em promoção. O teu preço depende de quanto você poderá trazer lucro à mão invisível do tal de Mercado. Se você for negro, pobre, pouco instruído e não tiver ao menos visibilidade e likes, você está destinado à despensa, nem prateleira vai ter para você se expor. Se você, por outro lado, amealhar um mundão de dinheiro e já não souber o que fazer com ele, pode comprar um ingresso  no submarino OceanGate  e buscar, por fim, encontrar um sentido para sua existência.

Crato, 28/06/2023

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Balão


 

A fogueira esfriou? A lenha fez-se brasas e ,depois, cinzas ?  O tempo, o maior de todos os bombeiros, nos traz as duras lições da finitude das eras e dos  personagens que passam de protagonistas, a figurantes e, por fim, mero espectros, sombras de um Teatro Chinês.  O São João nos lega a perspectiva do moto contínuo da vida. As fogueiras frias  já não ardem no asfalto.  A música de fundo macaqueia o ritmo do forró, mas fala de uma realidade urbana, sem a brejeirice e a ruralidade de outrora. As quadrilhas mudaram de figurino, assemelham-se mais a um baile de fantasia. As comidas servidas à mesa ganharam o sobrenome de Gourmet, afastaram-se do sabor telúrico nordestino, agora cheiram a essências vindas não em caravelas mas em aviões de carreira. As bombas são diferentes, os fogos de artifícios usam outros artifícios nas noites já clareadas pelas luzes de néon.

                        Não é que as fogueiras tenham arrefecido. Suas chamas lamberam e engoliram tempos passados. Cadê vovô ? Cadê papai, mamãe? Tia Luzanira não volta mais da cozinha ? Cadê os amigos de infância, testemunhos do milagre da vida? E Zínia, meu par na primeira quadrilha ? Já não estão no terreiro, por baixo da bandeirolas multicoloridas:  as labaredas  da existência engoliram esses personagens. Alguns nem estão dormindo profundamente como cantou Bandeira , mas estão viajando, longamente,  por outros páramos. Nem adianta enfiar a lâmina da faca novinha na bananeira, em busca de uma letra indicativa de um rumo, de uma direção. As bananeiras hoje são todas analfabetas. As bacias com água já não refletem os rostos que procuramos, na luz das chamas. Perderam o brilho, estão opacas e nem conseguem refletir porque já não refletem. Na mesa, o pé-de-moleque, o bolo de milho, o mugunzá, o milho cozido, a batata doce assada já não carregam o tempero melífluo da infância. São uma iguaria apenas,  sem um elo que as remeta à felicidade. Os personagens estranhos  que transitam no terreiro parece que acabam de descer de uma nave espacial. É que a quadrilha da vida , no seu Peri-Contra-Peri, nos fez com que nos afastássemos do nosso par e a Grande Roda  é imensa e interminável e , muitas vezes, não completa o vis-a-vis de pares. Traques, bombas pipocam pertinho, mas já não têm a vivacidade e o fragor dos tempos passados, viraram bufa de velha... Os fogos varam os céus e abrem-se em lágrimas coloridas no firmamento, mas já não nos encantam,  talvez porque se confundam com as outras lágrimas que vão nos umedecendo os olhos. Como foi possível que, como as chamas da fogueira, no outro dia, o calor e o brilho  do lume acordassem agora como cinzas no chão batido da latada ?

                        De repente, um balão sobe aos céus, carrega no seu bojo, a vela resplandecente que lhe aquece a alma e o permite voar. Os ventos de junho impulsionam seu adejo algo errático  rumo à amplidão. Em pouco será tomado pela sensação cósmica de senhor dos páramos celestes. Então, a mesma chama que aqueceu sua vida e lhe deu asas, o lamberá em chamas. Por um breve instante cintilará como uma estrela no firmamento, depois disso será apenas uma mera lembrança dos pouco privilegiados que assistiram ao seu voo de luz e de cinzas.

Crato, 23 de Junho de 2023  

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Histórias , Causos & Proezas

 

 

“As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.”   

 Carlos Drummond de Andrade

                                                                                                                  J. Flávio Vieira

A vida, se a gente reparar direitinho, parece uma Montanha Russa. Os primeiros anos, os mais dourados, como na subida da rampa, passam lentamente e é possível curtir a paisagem ao redor e até bater papo  com os vizinhos de cadeiras, no trenzinho. Observando tudo miudinho do nosso observatório, do alto, bate-nos uma sensação de grandeza e onipotência. Chegado ao topo, no entanto, quando nos consideramos semideuses, de repente, a locomotiva desembesta. Velocidade alucinante, curvas fechadas, parafusos, loopings, frio na barriga. Aí já não há o que curtir, apenas agarrar-se à cadeira e esperar que , por fim, o carrinho esbarre. Em segundos,  tudo transcorreu sem que ao menos o percebêssemos, até que alguém avisa para sair: seu passeio acabou ! Se a gente não cuidar , sequer fica a recordação da viagem curta, alucinante, mas incrível.  

Recebi, nesses dias, o presente de um livro lançado recentemente: “Histórias , Causos & Proezas” do escritor Antônio Alves de Morais. Bateu-me uma alegria incontida porque Morais faz parte da minha viagem existencial, no parquinho. O livro é o diário de bordo também do meu passeio.  Subimos a mesma rampa na juventude e, agora, estamos descendo a montanha na velocidade estonteante que se segue ao cume. Nascido em Várzea Alegre, como meus ascendentes, o autor tem aquela irreverência e fluição típicas da oralidade dos filhos de Papai Raimundo. Antonio é um memorialista intuitivo e franco. Anotou, cuidadosamente, imagens e passagens da nossa excursão pelo mundo: cenário, personagens, histórias: esse amálgama de que se constrói a nossa  meteórica jornada terrestre. Teve o desvelo de  registrar tudo, antes que o trem trave e sejamos , logo mais, convidados a descer da condução. Dividido entre Crato e Várzea Alegre, as páginas  estão cheias de figuras expostas nas suas fragilidades, nos seus arroubos, nas suas guinadas e dribles. Um livro saboroso que, como os melhores Bordeaux, deve ir melhorando o buquê  e diminuindo  acidez com o passar dos anos.

A obra inicia com  o inventário de professores queridos nossos, entre eles Vieirinha, meu pai,  e José do Vale Feitosa, meu padrinho,  e de doces anos da nossa formação ginasiana no Colégio Estadual Wilson Gonçalves. De repente, por um momento, é como se o trenzinho voltasse a subir. novamente. a rampa íngreme: tudo se passa em Câmara Lenta, a vida, como um caramelo que se dissolvesse morosamente na boca , parece novamente valer a pena de ser degustada,.  E a felicidade , como num looping,  torna-se possível e vejo-a bem ali à frente, logo depois do pico da montanha, tangível, ao  alcance da palma da mão.

Crato, 15 de Junho de 2023