sexta-feira, 27 de abril de 2018

O Capeta da Redação


J. Flávio Vieira

                                               Tenho uma preferência particular no cômputo das maiores invenções da humanidade. Ao longo dos anos, pessoas geniais e inventivas foram desenvolvendo técnicas e instrumentos que terminariam por modificar, significativamente, o curso da história e o cotidiano dos seres neste planeta.  Ottmar Mergenthaler (1854-1899), nascido na Alemanha,  é um dos meus escolhidos. Ele terminou por fixar-se no Estados Unidos e deixou esse mundo, prematuramente, aos 45 anos, ceifado pela doença icônica dos Novecentos: a Tuberculose.  Ottmar criou a máquina de Linotipo e transformou, crucialmente, os rumos da impressão gráfica pelo mundo.
                                   Talvez, hoje, embebidos todos pela revolução digital-cibernética, esta conquista pareça menor e desprezível. Desde a invenção da imprensa ocidental por Gutemberg, no Século XV , os textos para impressão eram construídos por módulos móveis. Letra por letra, montava-se um grande carimbo que, untado de tinta, levava ao papel os caracteres gráficos que se desejavam fixar. As gráficas, assim, possuíam enormes gavetas onde eram colocados os “Tipos” em incontáveis formatos e tamanhos, separados pela espécie de letra. Cabia ao gráfico escolher tipo por tipo e ir, aos poucos, compondo o grande carimbo para, depois, levar para as máquinas de impressão. Daí surgiu o nome “Tipografia”. Quando governos sentiam-se perseguidos ou denunciados pela imprensa, era comum empastelarem  os jornais para dificultar a sua circulação, o que consistia, simplesmente, em misturar todos os tipos, deixando as gráficas inoperantes, até que, com muita paciência,  conseguissem, novamente, reorganizar as pecinhas em seus respectivos lugares, em ordem alfabética.


                                   A grande façanha de Mergenthaler  foi a invenção genial da máquina de Linotipo. A geringonça, gigantesca, mais ou menos do tamanho de um guarda-roupas de quatro portas, tinha um tanque na sua parte superior onde era fundido o chumbo que descia por canaletas até um ponto onde eram moldadas placas, uma espécie de tijolinho. Estas placas chegavam ainda quentes e maleáveis para que se esculpissem, um pouco mais abaixo,  palavras nelas, comandadas por um teclado ( parecido com uma grande máquina de datilografia) que era manobrado por um artista gráfico. À medida que eram esculpidas, após um processo de refrigeração, iam pouco a pouco descendo e se organizando, lado a lado, organizadamente, formando então um grande carimbo que era levado para a impressão das páginas de livros e jornais. Imaginem a complexidade desta descoberta! Tinha-se um processo de fundição/escultura/refrigeração/arrumação  das plaquetas de chumbo! Além de tudo, após o processo gráfico, as placas podiam ser fundidas muitas vezes e reaproveitadas, em outros projetos gráficos !  Eram possíveis de seis mil a oito mil letras esculpidas por hora com o guarda-roupas de Ottmar. A inventividade do alemão fez com que se intensificasse a velocidade nas gráficas, aumentando a produção de livros e jornais, tanto que Mergenthaler é considerado o segundo Gutemberg.
                                   Quem , por acaso, mete as fuças na construção de livros e jornais , sabe, perfeitamente, que juntinho de nós trabalha um capeta tinhoso : o Satanás do erro e da incorreção. Por mais que redatores, revisores e copidesques se empenhem na perfeição do trabalho, não tem jeito! O capeta  estará ali , pertinho, esperando o momento de plantar os erros ortográfico, sintático, gráfico, ou  de pontuação...  
                                   Nos anos 50, o jornal católico  “A Ação”, aqui em Crato, era editado ainda com os primários tipos móveis. Tinha na redação um dos maiores latinistas cearenses: o Padre Neri Feitosa. Inteligente, profundamente versado na língua portuguesa vernácula, Neri vivia em tempos em que erro de concordância era passível de pena de morte. O hebdomadário lançou uma série de reportagens em que, semana após semana, se mostrava a biografia dos monsenhores da região. Depois de alguns meses, dado por fim o seriado, alguém, preocupado, lembrou nosso redator de que escapara um nome importante: o Mons. Tavares; o que trazia um certo desconforto nas hostes religiosas locais. Neri, então, mostrando jogo de cintura imprescindível a quem exerce a função, resolveu que sanaria o problema na próxima edição, o que realmente o fez. O artigo começava enfaticamente : “Deixamos, propositalmente,  por último, nesta coluna biográfica ,  o Mons. Tavares porque ele é o chefe da Milícia Católica no Cariri”. Na hora da composição, o capeta da incorreção, plantou o tipo errado. No outro dia, bem humorado, mons. Tavares lia o jornal quando se deparou com o erro fatal na sua biografia . Ao invés de Chefe da Milícia Católica, saíra impresso : Chefe da Malícia Católica... Tavares, sorridente, comentou que a emenda saíra pior que o soneto.
                                   Com o avanço da tecnologia, imaginou-se que o capeta  seria expulso definitivamente das redações e relegado ao seu ostracismo infernal. Leda pretensão! Ele continuou nas engrenagens das máquinas de linotipo, escondeu-se nos bytes do computador, enfurnou-se até nos auto corretores dos celulares. Uma conhecida nossa quase perde o emprego numa multinacional porque , ao conversar com sua superiora, pelo What´sapp, ao teclar : “Certo, Chefa!” , o autocorretor corrigiu para “Certo, Chata!” e ela enviou a mensagem maquinalmente.
                                   Na era dos computadores, então, este problema poderia estar sanado de uma vez  por todas. O Word carrega seu pai dos burros próprio e alerta para as falhas mais corriqueiras . Mas peca com a sintaxe, com as palavras homônimas, com o termo errôneo naquele local, mas existente em uma outra acepção. Há alguns anos, um jornal da região, já vivia nos áureos e gloriosos tempos do offset e da edição por computação gráfica. Quanta facilidade ! Quanto avanço ! Os digitadores abriam as caixas já prontas das colunas e apenas montavam as páginas anexando as novas matérias e as novas fotos. Pois bem, numa das edições, o diagramador estava completando a Coluna Social. Retirou todas as notícias da edição anterior e colocou as mais atuais, como sempre tentando por qualidade em que não tem. Sacou as imagens antigas e incluiu as fotos atuais das locomotivas e dos bacanas da região. O Capeta da Incorreção, no entanto, estava ali espreitando o momento exato de atacar. E sabia perfeitamente que o tamanho do avanço tecnológico é sempre proporcional à imensidão do erro possível. Tudo parecia perfeito, com uma única exceção. O técnico colocou as novas matérias, as novas fotografias,  mas esqueceu de apagar as legendas identificadoras de cada foto. No outro dia, edição na rua, a catástrofe estava instalada. Uma das fotos mostrava um juiz caririense, de cara empapuçada, sério que só uma vaca mijando, como se alguém tivesse acabado de lhe avisar que iam retirar seu auxílio-moradia. Aquela cara de quem está há três dias sem ir ao banheiro, ótima para se fazer cobrança. Logo abaixo, a antiga legenda que deveria ter sido sacada. Referia-se, na edição anterior, a uma aniversariante adolescente e dizia assim, agora resumindo  a cara do juiz: “Essa coisinha fofa, quinze aninhos, responde pelo nome de Bianca”.  Até o Capeta riu baixinho da presepada, com medo do processo.

Crato, 27/04/2018


sexta-feira, 20 de abril de 2018

Ateliê


Lembrei-me de uma história antiga, recentemente, que muito reflete essa sina de bumerangue da vida brasileira. Visitando uma Exposição de Arte  Moderna, num desses museus contemporâneos, um  sujeito espanta-se com uma obra inusitada. Uma grande tela, completamente branca, tendo apenas, abaixo, a assinatura do autor: Teo Syd - 2017. Junto, em uma placa metálica dourada, aposta no lado direito,  com letras  alto-relevo, o nome da obra branca esdrúxula : “A Fuga dos Judeus do Egito”.  Impressionado com a criatividade do pintor, o visitante aproxima-se  e procura tentar entender a concepção da obra. Onde estava retratado o episódio bíblico, numa tela inteiramente branca ?
--- Este quadro representa a fuga dos hebreus do Egito ?
--- Isso mesmo ! -- Retorna o autor.
--- Mas cadê os hebreus, que não consigo identificar no quadro ?
--- Os hebreus já atravessaram o Mar Vermelho e foram embora em busca de Canaã ! -- Confirma o artista ?
--- E o Mar Vermelho com suas margens milagrosamente escancaradas , para a travessia do povo de Deus ,   onde está ?
--- As margens abriram muito, para a passagem de Moisés e sua corriola e as águas estão fora das extremidades da pintura, assim não aparecem !
--- E cadê o exército do Faraó que vinha em perseguição dos judeus ? --Quis saber o visitante.
--- Ele se atrasou e ainda não chegou. Acaba de sair do Cairo !
                                   O quadro retratava um momento ímpar, onde alguns eventos já tinham ocorrido e outros ainda estavam por acontecer. Entre o que ainda não foi , o que já ocorreu  e o que ainda será.
                                   Esta história vem a reboque de uma mais recente. Semana passada, em Brasília, numa Exposição de Arte de Vanguarda, um artista plástico, Arcanjo Vannicelli,  apresentou um quadro similar ao da história anterior. Tela branca, quase imperceptível, na galeria alvíssima e iluminada. Logo abaixo o nome alatinado da peça : Terra Temerosus Brasilis. A peça chamou a atenção de um desses ratos de galeria. Ele se acercou de um senhor que cenho algo carregado, que se postava, de pé, em um dos lados da pintura. Afastou-se, observou com distância regulamentar, logo depois bem próximo e, curioso, puxou conversa.
--- Esta quadro pretende representar o Brasil, nos dias atuais?  É isso ?
--- Isso mesmo, meu senhor ! Tenta trazer um pouco do espanto porque todos estamos passando.
--- Onde estão simbolicamente representados os verdadeiros governantes do país ?
--- Foram expulsos ou tão presos, não aparecem na obra !
---- E onde podemos ver os atuais governantes, que tomaram o poder de assalto ?
--- Escondidos ! Não podem aparecer, sob risco de linchamento !
--- E o poder judiciário , onde posso identificar aqui nesta tela ?
--- O céu não aparece na tela, meu amigo, está fora do foco. Os juízes estão no Olimpo: metade pensa que é  Deus e a outra metade tem certeza!
---- E o povo, cadê ? Onde está escondido, nesta brancura toda ?
---- O povo está só observando, como o senhor, ele não faz parte da pintura !
                                   Impaciente, nosso visitante quis entender melhor detalhes  daquela que um dia poderia ter sido uma aquarela. Achou estranho a obra em branco. Cuidadosamente, passou a mão e não sentiu o relevo do quadro e nem a aspereza do pano. Voltou-se, então, para o seu interlocutor.
--- Oxe ! Não tem tela aqui , não ! Isso é parede. A obra é um mural ?
--- Meu amigo, não lhe conto, até ontem tinha. Venderam a peça de madrugadinha, por uma pechincha !
--- O Senhor, como autor da obra, permitiu a negociação por uma ninharia ?
--- Eu não sou autor da obra não! Sou um crítico de arte !
--- E quem é o sujeito que pintou o quadro ? Cadê ele !
--- O Ângelo ?  Ele pra tudo que pintava ou fazia só usava a direita. Tentou numa luta, nesses dias,  um golpe  e caiu do cavalo.  
--- Ah ! Então o senhor é, aqui, o  responsável por isso tudo !
--- Eu ?
--- Você sim ! -- Firma o visitante, com alguma aspereza.
--- Você num mora aqui em Brasília ?
--- Não, eu sou de Curitiba, meu senhor !
--- Ah, seu irresponsável,  o senhor mora lá, é ?!
--- Moro !

Crato, 30/04/2018
                                     

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Agridoce




                                               Nordestinos, somos seres de duas estações. O pêndulo das nossas almas cicla entre estes dois polos: verão e inverno. Vezes no gris do estio, vezes no verde da invernada.  Para nós,   tempo bom significa relâmpagos, trovões e torreame. Nossos corações, órfãos de estações,  primaveram com as chuvas e outonam com o sol abrasador. Divididos entre o alento e o desencanto, as intempéries da seca nos abatem mas não nos derrubam. A tristeza da estiagem sempre será recompensada pela alegria multiplicada da futura fertilidade invernosa. O nordestino sabe que a felicidade está guardada mais na esperança rediviva do que no paiol com seus cíclicos movimentos de cheio-vazio.
                                   Enfrentando os verões, por vezes sucessivos, nosso espírito acinzenta-se como toda a natureza, mas, nos primeiros pingos  promissores de chuva,  saltamos da terra como os sapos, levantamos voo como as tanajuras, florescemos igualzinho aos marmeleiros. O matuto, calejado e temperado  nos rigores do clima, não se exaspera fácil. Carrega consigo aquela resignação quase mineral dos rochedos. Aprendeu com os juazeiros, com a palma, com os mandacarus , as lições  do florescer e do resistir. Às vezes, pode até parecer morto, seco e desfolhado como os umbuzeiros em outubro. Mas aquilo é sempre um recuo tático, uma sofisticada estratégia bélica. Nas raízes,  guarda a essência líquida da sobrevivência e, nos primeiros borrifos de chuva, cobrirá, rapidamente, a nudez, com o verde fosforescente do   vestido de gala , próprio para a festa que se anuncia.
                                   Nordestinos, compreendemos também as aulas da economia e da parcimônia. Neste pêndulo, o exagero de hoje pode significar a escassez do dia seguinte. Apesar de tudo, o matuto depreende que somos todos passageiros de uma mesma arca e que não há côdea de pão que não possa ser dividida em múltiplos pedacinhos para o regalo de muitos. Há mais solidariedade na escassez  do campo do  que na fartura do arranha-céu.  
                                   Talvez, escanchados nesta vida pendular, terminamos por entender que a felicidade não é um adereço de superfície , como uma maquiagem. Verão e Inverno , como crepúsculo e aurora, tornam-se apenas fases do ciclo natural de nossas vidas. Na roça, aprende-se a valorizar os mais simples frutos que a existência faz brotar na nossa colheita. Por que se exasperar ? O amargor de hoje é tão somente o prenúncio do mel que provaremos amanhã. E o contraste agridoce transforma-o numa iguaria  mais leve e saborosa ! A treva faz-se apenas a esperança do albor que já começa a esticar seu pescoço na linha do horizonte. Se hoje acordamos verão, de noitinha adormeceremos inverno. A vida fica mais una na dualidade das estações.

Crato, 13/04/18   

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Amanhece



Amanhece. Um vento úmido sopra do nascente, como o último bocejo matutino da boca da noite. Galos , tal numa corrida de revezamento, vão passando o bastão do canto , de bico a bico, confeccionando o crochê da manhã. Os primeiros raios espriguiçantes de sol  postam-se a limpar a névoa que lambuza os olhos da serra, como uma remela. A aurora preguiçosa revolve-se no já diáfano véu da treva como que se recusando a despertar. Amanhece.
                            Na cidade, as almas serpenteiam nas ruas , sonâmbulas, num teatro de sombras,  a meio caminho entre a luz e a escuridão. O aposentado equilibra-se na sua cestinha, em busca do mercado, como se o maduro, o sazonado precisasse do verde reparador  das frutas e hortaliças. A mocinha, abraçada com seus livros, com disposição de anteontem, marcha para a escola em busca de suas vãs certezas. No ponto do ônibus, operários, com suas marmitas, carregam a plena convicção que farão um novo sacrifício das suas vidas no altar do deus Mercúrio. Carros amontoam-se nos sinais, buzinando como trombetas, acreditando que farão ruir os muros de Jericó. As lojas , aos pouquinhos, abrem suas portas, a meio pau, como adolescentes tímidas e furtivas.  No campo, agricultores preparam a terra, com vagar, sem saber bem se aradam  perspectivas de novas colheitas ou se abrem covas que os convidam , lobregamente, para o coito terroso derradeiro: semente ou adubo ?  Aos poucos a vida se vai desvencilhando da letargia cúmplice da noite. Amanhece.
                            Abre-se o orifício da faina e do azáfama na  barragem do dia. A vida urge, o tempo exiguifica-se. O liquidificador do cotidiano começa a aumentar a velocidade de suas lâminas: daqui um tiquinho a solidez do sonho tornar-se-á um suco acre , insípido, intragável. Existir será apenas uma hipótese longínqua e inacessível. Um verbo intransitivo, impessoal e  intransitável. Numa sinfonia repleta de labores e sacrifícios, viver talvez represente um insignificante sustenido no meio de uma chuva de bemóis ou um  pequeno breque nesta partitura, um interlúdio  entre uma e outra vicissitude.
                            Em meio ao turbilhão que , paulatinamente, se vai formando, só um personagem destoa no cenário. Um bêbado , cambaleante, aos tropicões, atravessa a rua. À deriva, sem bússola ou sextante procura o rumo de casa. Carrega consigo os eflúvios das libações noturnas. Varou o ventre da noite com o sabre da sua boêmia. Enquanto a cidade desperta, ele , na contramão, se entregará ao sono . Descobriu que a terra, como a lua, possui também uma face oculta. Ali construiu sua morada, distante das trevas opressivas dos dias, onde o sol ressona e as noites eternamente amanhecem.

Crato, 06/04/18