sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Haja Coração !

 


O coração descansava  há 188 anos e era um órgão ainda lépido e jovem, de apenas 35 anos, quando resolveu encerrar sua jornada no Palácio de Queluz. A juventude, no entanto, não dizia muito das suas vicissitudes , das suas emoções múltiplas, num tão curto intervalo de tempo. A vida tinha sido curta, mas as artes longas. Transbordara de paixões por incontáveis rabos de saia: Noémy, Leopoldina, Domitila, Amélia, Ana Augusta...  Viu , ainda, o mesmo coração disparar enfrentando as artimanhas políticas da corte, as palpitações inevitáveis que se seguiram ao Grito do Ipiranga, as Revoltas Libertárias pela Independência e República, as confusões da Constituição de 1824,  a renúncia de 1832 e a guerra contra a usurpação do trono português por parte do irmão Miguel. Mal teve tempo de descansar com os louros da vitória: dois anos depois, a tuberculose tolheria uma existência tão meteórica e tão palpitante. Desde aquele dia em que fechava o ciclo vital no mesmo Palácio que o viu nascer, por pedido do seu dono, o corpo seria inumado em Lisboa, mas o coração lhe seria sacado do peito e levado para o Porto, cidade que lhe dera todo apoio nas escaramuças contra Miguel e  pela qual  manteve sempre  intensa veneração. Em 1972, na comemoração dos 150 anos da Independência, o corpo seria trazido, definitivamente, para o Brasil, onde repousa, no Monumento da Independência do Brasil em São Paulo, junto com os de D. Leopoldina e D. Amélia.

                        No último dia 22, o coração, apartado do corpo há quase dois séculos, chegou ao Brasil. Foi recebido com honras de chefe de estado, nas comemorações do bicentenário do Grito do Ipiranga.  Deve ter se espantado com as mudanças no país que ajudou a construir. Cidades enormes, trânsito caótico, ruas tomadas por carros e aviões cruzando os céus, um formigueiro de pessoas por todos os buracos dessa terra. Apesar de tantas transformações, muitas cenas, porém lhe pareceram muito familiares. A escravidão que se pensava abolida, apenas vestiu roupas mais modernas: está presente no subemprego, no trabalho infantil, no trabalho escravo, na informalidade. Como dantes, uma pequena casta se faz comensal das benesses terrestres, a grande maioria, continua sentada debaixo da mesa, esperando as migalhas que sobram e caem dos banquetes. A voracidade dos políticos que se apinharam para vê-lo, em Brasília, não é nem um pouco menor daquela com que conviveu, diuturnamente, com os cortesãos na Quinta da Boa Vista.  E os bobos da corte se multiplicaram. A Independência , percebe o coração do alto de seus átrios, continua apenas uma figura de retórica. Bons tempos aqueles da Derrama, onde apenas 20% da produção  brasileira ia para Portugal ! E o coração quase volta a bater novamente quando percebe presente ainda  no Brasil um sonho  de Monarquia Absolutista, aquele mesmo que embalou os seus anseios constituintes em 1824 e que assombraram seus últimos dias na luta usurpadora do irmão Miguel.

                        Ainda apartado do corpo, o coração, retornará no dia 08 de setembro, novamente,  ao Porto.  Talvez volte mais conformado com o esquartejamento proposital que, aqui, descobriu não ser um apanágio apenas seu. O Brasil parece ter se assoberbado das aspirações do seu primeiro Imperador.  Aqui  ele deixou um país  igualmente retalhado. Um Sul rico e influente, um Norte pobre e esquecido. Uma pequena casta vivendo em mansões, uma grande população sobrevivendo nas ruas, favelas e viadutos.  Os bacanas nos SPAS e os famintos nos lixões. Os que são alvo e  levam os balaços e os que praticam nos estandes  de tiro. Os que suplicam milagres e aqueles que os vendem pelo Pix ou a prazo. Os campos cobertos de grãos e a população passando fome. Um fio de ódio corre nas veias dos brasileiros, como se não fizessem parte de uma mesma nação.  Como nosso primeiro Imperador, o corpo e o coração do Brasil estão enterrados em diferentes campos santos.  Que o coração de D. Pedro continue adormecido em berço esplêndido como o Brasil !

 

Crato, 26/08/2022                      

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Os dias de ontem: tijolos que pavimentam o amanhã

 

                Os meus dias de ontem caminham comigo.

Eles mantêm o passo, são os rostos cinzentos

que espreitam por cima do meu ombro.”

William Golding

 

                                               O Ceará viveu, na sua história, episódios de cintilações que iluminaram seus caminhos. Com a prematura libertação dos escravos, relampeou na nossa estrada e até acrescentamos o sobrenome Luz ao nosso estado. Em fins do Século XIX, veio um novo luzir nas terras alencarinas: “A Padaria Espiritual”, um movimento cultural pré-modernista que se anteciparia, em quase trinta anos, a nossa Semana de Arte Moderna. Nos Anos Setenta , uma outra cintilação nos nossos horizontes: “O Pessoal do Ceará” inundava o Brasil com uma maneira poética e brejeira de interpretar o mundo. Da nossa pequena aldeia, como diria Pessoa, conseguíamos depreender as complexidades de um tempo e as incongruências do universo à nossa volta. Alguns anos adiante, adentrando os anos 80, como um suspiro fundo em meio a asfixia da Ditadura Militar,  lampejaria o Movimento Massafeira , uma ampliação do Pessoal do Ceará, com novos talentos, novas melodias, novas ideias.

                                    Esses relampejos do final do Século XX, no entanto, foram pouco a pouco ofuscados, pela Indústria Fonográfica, a quem nunca interessou qualidade e gênio. Sempre entendeu a coisa como um negócio e, com estratégias de marketing similares às empregadas na venda de mariolas ou sabonetes, forjaram tendências, criaram desejos e aspirações , sempre de olho na máquina registradora. Sabiam da facilidade que teriam em criar ídolos, hits, no povaréu a quem se negou sempre o sagrado direito da Educação. Com a explosão das Redes Mundiais de computadores, nas décadas seguintes, com seus algoritmos impiedosos e secretos, intensificaram-se as possibilidades dos cordões das marionetes. Ortega Y Gasset, hoje, substituiria, rapidamente, seu axioma filosófico: “Eu sou eu e minhas circunstâncias” por “Eu sou eu e meus algoritmos”. Agora, basta abrir o Rádio, a TV, o Notebook, as plataformas de Streaming para se ter uma clara ideia do absurdo monopólio de algumas modalidades musicais: O Forropôr ( Forró de Isopor), o Breganejo, o Funk, o Piseiro, o Pagode Estilizado. Os incontáveis outros ritmos brasileiros que enchem de orgulho a nossa terra são ouvidos , secretamente, apenas em guetos. É preciso compreender que, em nosso estado, nos últimos quarenta anos, muitas gerações de talentos foram simplesmente sacrificadas e asfixiadas. Muitos desistiram, buscaram outros caminhos e alguns mais resilientes vão sobrevivendo a pão e água. Mesmo os gigantes do Pessoal do Ceará, como Belchior, Ednardo e Fagner ficaram totalmente fora dos holofotes.  

                        Esta semana, tivemos aqui no Cariri, um movimento que busca acender uma nova fagulha e aponta para a possibilidade de um novo resplandecer em céus de chumbo. O jornalista e compositor Dalwton Moura reuniu vários artistas da geração de 70, como Rodger Rogério,  Calé Alencar, Rogério Franco, Edmar Gonçalves e tantos outros,  com uma nova geração de músicos e compositores ( o próprio Dalwton, Davi Duarte, Theresa Raquel) no Show “Futuro e Memória 2”. Fizeram apresentações em Crato, Juazeiro, Nova Olinda , unindo-se a artistas caririenses de várias gerações como Abidoral Jamacaru, Luciano Brayner, Luiz Fidelis, Jocean , Tâmara Lacerda. Promoveram bate-papos e conversas  , tentando traças metas e novas veredas em campo tão minado.

                        Este reagrupamento das hostes aparentemente vencidas e derrotadas, com os novos combatentes anteriormente dispersos, tem a batuta e a visão do jornalista e produtor Dawlton Moura. Ele tem a clara percepção que não há a possibilidade de um futuro promissor sem a memória. O edifício que construímos hoje, por mais monumental que possa ser, só será possível pelos alicerces e a argamassa sólidos edificados por gerações pretéritas. Para mim, foi emocionante ouvir novamente o grito potente e rasgado de Rodger, do alto de um píncaro de mais de sete décadas e a voz grave e personalíssima de Theresa Raquel ainda perfumada pelas rosas juvenis. Eles me falam de continuidade, de futuro, como se o canto de um fosse o eco do outro. Os meus dias de ontem, percebi , caminham comigo, e meus passos são cadenciados por rostos , aparentemente cinzentos, que espreitam por cima dos meus ombros e que olham para adiante, bem para adiante.

Crato, 18/08/2022  

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Um par de meias Lupo

               


Dia desses, num desses programas televisivos de grande apelo popular, aqui do nosso estado, apareceu um rapazinho que procurava identificar o pai que nunca conhecera. A história parecia arrancada de um livro. A mãe de origem humilde engravidara em Teresina, no Piauí, de um homem casado. A solução que ele encontrou para contornar o problema pareceu-lhe a mais salutar. Comprou uma passagem para Fortaleza e a embarcou com pouquíssimo dinheiro. Pediu-lhe que o esperasse lá na rodoviária alencarina  que ele chegaria no dia seguinte. A promessa, como era fácil de se perceber, nunca se concretizou. A pobre mãe teve que se virar morando na rodoviária e nas cercanias por algum tempo, como vendedora de pequenos picuaios, até que o menino nascesse. Depois envolveu-se com um namorado que  era alcoólico e lhe batia. O menino cresceu, ajudou-a em pequenos bicos pelas ruas e, agora, empregado no comércio,  resolvera ir à TV , contar sua história, na esperança que o pai, que já perdoara, aparecesse. Histórias com diferentes nuances pululam na mídia e se multiplicam nas redes sociais. No Nordeste, então, onde as ondas migratórias sempre foram tão intensas, muitos e muitos homens ao invés de assumir suas ninhadas, fazem é sumir.

                        Esta história verídica me trouxe uma reflexão sobre a importância do pai para seus rebentos. Mesmo com a imensa sacanagem perpetrada pelo genitor piauiense, o filho o procurava com afã. Como se lhe faltassem páginas no livro da vida e a sua história estivesse com roteiro incompleto. E , claro, fica-nos a certeza de que no processo de criação dos filhos somos meros atores coadjuvantes. É quase impensável pensar num abandono inqualificável como o da história do menino da rodoviária tendo como protagonista uma mãe. Se há o provérbio: uma mãe é para cem filhos e cem filhos não são para uma mãe, no que tange à paternidade podemos depreender que uma mãe equivale, na Casa de Câmbio da Existência,  a pelo menos uma centena de marmanjos reprodutores.

                        Mas amanhã comemoramos nosso dia dos pais.  Nenhum de nós tem a pretensão de concorrer com o sagrado dia das mães. E somos muitos tipos de pais mundo afora: os Pai-Aço ( como o de Teresina), os Pães ( meio pai e meio mãe), os Pavôs ( meio pais e meio avôs) , os Pai-óis ( eternos a abastecedores da filharada) e os Pai-Manés e os Pai-xões ( aqueles gabolas eternamente cagando goma pelos seus rebentos).   Ficamos felizes e realizados com a simples chegada dos filhos e netos para o almoço, ou o telefonema dos que estão distantes. Abriremos o sorriso farto para as lembrancinhas:  o par de meias Lupo, a caixinha de lenços, a canequinha com os dizeres: Pai de Amo !  A simples presença de cada um de vocês já nos alegra e satisfaz. Vocês são nossa única  chance de imortalidade. A certeza única de que no efêmero da vida conseguimos imprimir  laivos de eternidade. Quando a rosa fenecer no jardim do tempo, o perfume continuará almiscarando as planícies ao derredor. Vocês são essa colônia, essa fragrância doce e aveludada, o eflúvio daquela essência única que fomos destilando com os fios dos dias e das horas e que permanecerá no ar mesmo quando as pétalas se desfolharem sob a aragem  do tempo e a pulsação pendular dos ciclos das estações.

                        A simples presença de vocês é nosso presente e, também, nosso futuro ! Mesmo ganhando meias, nos sentiremos inteiros !

 

Crato, 12/08/2022

 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Miguel, Arcanjo .

 


 Como acontece nos compêndios de Medicina, as notícias do dia a dia, muitas vezes, trazem sintomas claros de que alguma doença grave vem acometendo a Sociedade em que vivemos. Na última semana, os jornais trouxeram uma manchete típica da Semiologia social brasileira. No bairro São Cosme, em Belo Horizonte, D. Célia Arquimino  Barros, uma senhora de quarenta e seis anos, mora pobremente com seis filhos, entre eles Miguel, um garotinho de 11 anos. Como tantos e tantos brasileiros, D. Célia vive de “bicos”, dependendo de um mísero Auxílio Emergencial e da ajuda eventual do pai dos meninos, de quem está separada. Há quase um mês, não podia fazer compras e a família sobrevivia comendo farinha e fubá. O menino Miguel, magricela, não suportou a situação, tangido pela fome e pelas lágrimas da mãe desesperada, pegou o telefone e ligou para a Emergência da Polícia , no número 190. Quando a moça atendeu, do outro lado, perguntando qual era o motivo emergencial da ligação, ele não teve meias palavras: -- Eu, meus irmãos e minha mãe estamos passando fome!  A policial imaginou que , pela tenra idade do denunciador, podia se tratar de uma caso de mal tratos aos infantes e mandou o rabecão da polícia investigar o caso. Quando lá chegaram, emocionados, os policiais constataram um crime hediondo: Miguel, seus irmãos e a mãe em estado total de inanição, atingidos por uma arma mortal e que já se pensou um dia  se tivesse descarregado : A Fome.

                        Há algo mais simbólico do Brasil dos nossos dias ? Aquele de Desemprego proibitivo, de Inflação galopante, de pandemia  e, principalmente, da total incúria do Estado na área social ?  Os policiais pareceram surpresos e com olhos lacrimejantes, simplesmente, porque foram testemunhas ocular da tragédia que está alastrada país afora, mas como dizia Chico Buarque: “A dor da gente não sai no jornal”. Mais de trinta milhões fazem parte do Bloco Famintos à Beira da Cova, junto com Miguel e sua família. 160 mil moram nas praças, nas pilastras, nos viadutos, nas marquises.  Metade da população que almoça no Brasil não tem a certeza de que jantará. Enquanto isso os jornais noticiam, todo dia, que somos campeões mundiais na produção agrícola para exportação. Alimentamos 800 milhões de pessoas mundo afora, mas somos totalmente  incapazes de alimentar nosso povo. Meia dúzia de agro empresários enchem as burras de dinheiro,  olhando sorridentes crianças morrendo famintas a seus pés. Ano passado batemos recorde na produção de proteína animal ( quase 15 milhões de toneladas de frango e 5 milhões de toneladas de suínos) , mas para alimentar países ricos, aqui pobre só come carne quando morde a língua.

                        A atitude de Miguel é muito simbólica. Ligou para o 190 ! Ele resolveu denunciar um crime, intuitivamente percebeu que o que estava acontecendo com sua família era um caso de polícia. Sentiu que alguém estava tentando assassiná-los, só não dava para entender bem  os autores responsáveis pelo homicídio  detalhadamente programado e calculado. A notícia veiculada, rapidamente, tocou o coração de muitas pessoas (ainda existem solidários por esse mundo). De repente, muitas doações chegaram e, ao menos, aliviarão o sofrimento de Miguel e seus irmãos por alguns dias. São remédios e curativos necessários mas  paliativos para um mal com raízes muito profundas, um câncer que se alastra pela alma do Brasil e que, quando pensamos estar curado, novamente se dissemina.  O Bloco de Miguel continua na avenida. Só parará o desfile quando um dia se entender que o Brasil não precisa se dividir apenas em duas grandes Escolas de Samba : a dos que moram no SPA e a dos que residem debaixo do viaduto.

Crato, 05/08/2022