sábado, 27 de junho de 2020

A Vida no Outdoor





Está ali, num outdoor, próximo ao trevo do  parque de exposições. O rapazinho postou, em letras garrafais e enormes, um recado para a namorada que, depreende-se, deve tê-lo abandonado. Queixa-se que fez tudo por ela e que não aguenta mais o abandono. Mensagens assim, em tempos atrás, escreviam-se nos diários, nos cadernos de escola. Enviavam-se , sorrateiramente, por amigos comuns. Confidenciavam-se, em pé de ouvido, para colegas íntimos e fiéis. Sinais destes novos tempos, de internet, de redes sociais, de WhatsApp e smartphones ! Pedem-se namoradas em casamento, publicamente,  no palco de grandes shows ou de Drive-in. Suicídios são perpetrados , de preferência, como um show pirotécnico,  para o gáudio de uma grande plateia. Até os defuntos perderam o seu recato: são fotografados em selfies, em velório, como se participassem de um grande acontecimento. 
                                Os muros da intimidade, por sua vez, foram implodidos. Namorados trocam nudes pelo celular e, tantas e tantas vezes, após o término do enlevo, compartilham as imagens com incontáveis outros espectadores, vezes inflamando orgulho de pegador, vezes como simples e reles  vingança. Famosos fazem vazar, intencionalmente, fotos sensuais e de banheiro, demonstrando uma revolta mal explicada, com o simples intuito de se manterem na mídia e na visibilidade.
                                   Vivemos numa época de espetacularização. As pessoas vivem uma eterna ciclotimia entre a vida real e a realidade virtual. Criaturas sentem-se avaliadas e medidas pelo número de seguidores e curtidas  no cyberspace. A felicidade depende imediatamente disso. Importam as viagens, os shows, os megaeventos de que participaram. Neste mundo etéreo e idílico todos estão felizes e realizados, não existe espaço para tristeza. Mesmo quando ela aparece, pela perda de um ente querido, a postagem carrega um pouco de luto, sim, mas muito mais  de comiseração, da expectativa noticiosa e do potencial de  comoção.
                                    O grande problema é que este outro planeta colorido, idílico e visionário parece um castelo de cartas e tem suas mesmas fragilidade e impermanência. Basta um comentário desabonador, um like negado para suas paredes ruírem como por encanto. E, num átimo, a carruagem e os cocheiros desaparecem e  a Cinderela vê-se, novamente, com as roupas da Gata Borralheira.
                                   Tínhamos , em gerações anteriores, uma vida íntima profunda e forte e cultivávamos , do outro lado, uma outra de aparências, onde as quinquilharias do consumo determinavam o feio e o belo, o glamoroso e o brega ,  o bonito e o feio. Os nossos filhos e netos convivem, agora, com esses dois universos e mais um outro paralelo, espalhado pelos quatro cantos do mundo. Este não tem limites geográficos, históricos, culturais.  O mesmo encanto que faz com que se conectem, com um clique apenas, com uma outra pessoa do Afeganistão, o faz serem simplesmente eliminados e desaparecerem, como um toque de mágico, com um reles movimento na tecla do celular.
                                   A vida, certamente, não era tão glamorosa e aventuresca no passado, mas certamente tínhamos menos territórios para cuidar e para nos preocupar. A essência de tudo, no entanto, existe na nossa existência interior , com seus anjos e demônios a serem domados; seus colibris e seus dragões. Os outros planetas paralelos são meros penduricalhos, volúveis e frágeis castelos de areia que se dissolvem com as primeiras ondas da preamar. Torço para que a namorada do rapaz do outdoor ouça seus apelos, mas sei perfeitamente da inutilidade das palavras, nesses momentos, mesmo expostas em letras garrafais em painéis gigantescos. Um olhar, um toque, até mesmo o silêncio ( expressão gestual do âmago do espírito) teriam muito mais força de reaproximar corações espatifados ou de ensiná-los a procurar outros consertos e colas pela longa estrada que  segue adiante.  O rapazinho usou o virtualês, a língua do novo planeta, para tentar se comunicar com um outro país onde o idioma  não se expressa em gestos ou fonemas, apenas pelos sentidos.

Crato, 26 de Junho de 2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O São João Coroado



                                              
Os céus nebulosos , este ano, não terão o contraste luminoso de fogos de artifício cortando-lhes   o ventre,  no rasgo da noite. Estáticos, imersos num bronze morno, desfraldarão seu negro de luto, como um fumo na lapela. As lágrimas não mais se debulharão no firmamento, como em anos passados, multicoloridas e flamejantes: elas , agora, se transportarão aos olhos de quem as procura, no caminho das estrelas. Balões, como ícaros depenados,  verão derreterem-se as asas e hão de tombar por terra seus devaneios e planos de voo.   As lâminas de aço não perfurarão as bananeiras em busca visionária do futuro, hoje que o presente é senhor de todo enigma e todo mistério. Para o gáudio dos cães, bombas silenciarão, contritas, como que respeitando minutos de silêncio, pelos muitos abatidos e incontáveis aflitos. Batatas não mais emergirão das cinzas das fogueiras no dia vindouro: elas quentes, postam-se abrasadoras, nas mãos de todos os viventes.  
                                   Os terreiros estarão vazios. As bandeirolas vir-se-ão substituídas pelas roupas estendidas nos varais, cônscias de sua insignificância, quando a visibilidade viu cair por terra sua magnitude. A pinga e os quentões , anestésicos do cotidiano duro e magmático, perderam seu poder curativo: é que a alegria e a felicidade fluem dos moinhos interiores, mas só podem ser degustados, no seu inigualável sabor,  se partilhados por outras almas, em banquetes coletivos. O milho verde, o amendoim, o bolo de puba, a canjica, a pamonha ... estarão confinados, como seus apreciadores, em salas insulsas. Alijadas das mesas  retangulares e compridas, do bulício dos terreiros, perderão sua força gustativa , sempre potencializada pelo clima da amizade e  alegria partilhadas. As mãos já não se tocarão nos “En avant Tous”  das quadrilhas, estarão todas  “En Arrière” . Os pares, impulsionados por um infinito “Peri-Contraperi” do tempo,  não mais se encontrarão , condenados a uma solidão franca e desalentadora.
                                   O São João vê extraviar-se o seu carneirinho. Cai-lhe, sobre a cabeça, uma coroa multipontiaguda e insana. Instala-se o soturno reino do São João Coroado. Que seja efêmero o seu reinado ! Impossibilitados de atear as fogueiras no terreiros, façamo-las arder na nossa alma! Escancaremos nossos vestíbulos interiores para a festa ! Que o mundo todo se inflame com nossas chamas, de casa em casa, de espírito em espírito, untando a força higienizadora do fogo à  capacidade de iluminar os novos tempos que já se anunciam, para lá das planícies onde pasta o manso carneirinho de São João.

Crato, 19/06/20

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A Fragrância dos Cios



Patrolino  despertou em meio ao anúncio da TV. Em tempos de pandemia, aquela telinha  era ,praticamente,  seu único refúgio: um meio seguro , mas insípido, de se comunicar com o resto do mundo. Estava há dois meses preso como se houvesse atrasado a pensão alimentícia.  Acostumado com emoções fortes no trabalho, era contador de um firma grande, de repente, como na brincadeira de “Estátua”,  viu-se paralisado.  Sessenta dias confinado naquele apartamento tão pequeno que até seu basset , para adquirir uma pulga nova, precisava mudar de casa. A única companhia do nosso Patrolino, era o “Queiroz”: o cachorro foi batizado depois de empreender sua quinta fuga, escondendo-se nas redondezas, à procura de alguma cadela no cio, para o desespero do nosso contador. Separado há mais de dez janeiros de D. Mundinha, que o tolerou por mais de trinta anos, Patrolino, já sessentão,  vivia naquela clausura. Mas resolveu, definitivamente, que não queria mais relacionamento sério com quem quer que fosse. Passou a comprar o amor verdadeiro de profissionais: Basta de neófitas e estagiárias! -- gritou um dia. O comércio amoroso , entendeu, não era coisa para principiantes.
                                   Naquele dia, no entanto, bateu-lhe um banzo logo depois que o anúncio de TV saltou-lhe aos olhos. Apresentava , melosamente, presentes possíveis para o “Dia dos Namorados”. De dentro de Patrolino reverberou um vazio, como se do sótão da sua alma tivesse desaparecido um brinquedo de infância : seu velocípede. Faltava-lhe, embora não pressentisse, alguém que dividisse com ele a cama, mas também ajudasse a descascar a mala de abacaxis que todos nós vamos acumulando nas despensas da vida. E, claro, resolver aqueles problemas que não existiriam se ele fosse solteiro.  Passou a lembrar da lista de namoradas que percorreram seus caminhos. Fátima, a primeira  da adolescência, aquela de olhos negros como cambuí em noite de chuva; Geronilda , a mocinha da padaria por quem um dia baixou os quatro pneus e até o estepe; Safira, nome de pedra preciosa, bonita como um jumento novo, colega de trabalho, que um dia lhe deixou , fazendo jus ao nome, por um cliente endinheirado. Interessante é que recordava com doçura de todas elas. Namoros de amassos e arrochos , de mãos bobas e sabidas, mas que nunca chegaram além da superfície. Paixão dérmica ! Naqueles tempos, ir além do esfregaço, caía , imediatamente em dois poços: no pé do padre ou na alça da garruncha. Patrolino pensou consigo o que era o mais incompreensível : a lembrança mais doce, vinha de uma colega de escola que nunca tinha, inclusive, namorado, por recusa inteira de Florência ( era assim que ela se chamava). Ficou na boca, eternizado, o gosto saboroso da fruta que nunca pode morder.
                                   Preso em casa, com medo dos vírus e ele sabia que velho é o bicho mais pegador que existe nesse mundo, só que de doença, Patrolino lembrou das redes sociais. Onde andariam as antigas amadas ? Estariam vivas , solteiras, viúvas ? Começou a fuçar o facebook que é o bicho mais fofoqueiro que existe nesse mundo. E ainda falavam de D. Vitalina que morava ali em frente, pensou ele !  À medida que  passava de página em página, ia lhe batendo um desapontamento. Primeiro , já não eram os retratos antigos que guardara na cabeça os que encontrava agora no computador. Dera cupim e caruncho nas meninas. A Safira já não mais brilhava, morava na periferia de uma cidade próxima, o marido, antes próspero comerciante, agora tinha um vendinha. Geronilda, encontrou-a em São Paulo, já avó, com família grande e, pelo jeitão, vivia bem e sem atropelos. Os olhos guardavam ainda um pouco do brilho juvenil, mas a ferrugem dos anos tinha deixado suas cicatrizes. Não encontrou Fátima nas redes, mas, cavucando as páginas de parentes conhecidos,  soube que tinha partido em viagem celestial cinco anos atrás. Percebendo a inexorabilidade do tempo,  imaginou: tomara que elas não me procurem no Face ! Vão ter a mesma sensação que tive ? Patrolino tá só o caco ?
                                    No meio dessas elucubrações, o telefone tocou. Sabe-se lá porque, no íntimo, como numa premonição, Patrolino imaginou uma possibilidade remota, mas quem sabe, possível . Seria Florência, agora divorciada, nestes dias dos namorados, teria lembrado dele?  As águas passadas poderiam mover as palhetas dos seus moinhos , até porque, em verdade, tinham ficado meio estáticas e jamais escorrido por debaixo da ponte. Trêmulo, atendeu o telefone, uma voz feminina suave saltou lá de dentro. Perguntou se era Patrolino Alencar, o contador. A entonação lhe pareceu inesquecível e seus olhos quase que turvaram. Foi como se seu coração tivesse clicado no link  1972. A mocinha continuou, deu-lhe bom dia, perguntou se morava aqui mesmo no Crato, como estava passando neste período de pandemia... Ele respondeu com voz trêmula, pronto para perguntar-lhe o nome , aquela que ficara dormência  a tantos e tantos anos  e a agora estava prestes a florir e frutificar.  Finalmente teve a coragem e balbuciou:
                                   -- Quem está falando é a minha Florência ? Feliz dia dos Namorados !
                                   --- Não, meu senhor ! Desculpe! Meu nome é Geraldina, é sobre um boleto atrasado seu aqui da Loja Macavi !
                                   Queiroz latiu  lá do seu canto, quase como uma zombaria. Armava planos para escapulir novamente imantado pela fragrância dos cios.

Crato, 12 /06/2020