sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Azul

 


“Eu não caminho para o fim,

Eu caminho para as origens”

                                                                                                                                                                                   Manoel de Barros

                               Os genealogistas adoram fuçar velhos livros empoeirados, em busca de entender suas origens.  Não são diferentes dos seus ascendentes, nas cavernas, olhando para a imensidão do universo e articulando as perguntas  eternas e irrespondíveis: Quem eu sou ? De onde vim ? Para onde vou ? Aquelas mesmas interrogações que terminaram  por criar as mitologias, as religiões e a Filosofia. Basta observar o suceder as gerações para se perceber que as muitas misturas e intersecções familiares  reproduziram uma imensa diversidade, ficam em cada um de nós apenas pequenos traços dos nossos avós e bisavós : um riso, um temperamento, um tom de pele e de íris. Essas múltiplas formas do caleidoscópio da evolução agem no sentido da beleza e fortaleza da constituição humana.

                        Se a gente reparar direitinho, com a Cultura não é diferente.  As manifestações culturais da nossa tradição (a música, a dança, as histórias) guardam a magia da nossa ancestralidade, mas se foram embebendo , de forma vívida, de incontáveis influências com o passar dos anos. O Cordel, o Reisado, o Maracatu, o  Bumba-meu-boi que hoje vemos nas festas populares são bem diferentes daquelas que se brincavam nos Terreiros nos séculos anteriores. Foram impregnadas com novas cores e nuances, como qualquer objeto vivo. Como nas nossas histórias pessoais, restou comum apenas  o DNA primitivo, aquele que mantém a codificação genética inicial e permanente da existência.

                        Essa reflexão bateu-me ontem, num momento de tristeza. O Cariri perdeu Mestre Vicente Aniceto, o Mestre Azul. Um viral pifeiro da mais ancestral Banda Cabaçal da região , a dos Irmãos Aniceto. Claro que a Banda, como qualquer ente vivo,  sofreu as transformações inevitáveis com o passar dos ponteiros do relógio. Composta por pifes , caixas, triângulos e zabumbas, você pode imediatamente imaginar que aquela música que dela flui, não é a dos Índios Cariris. Sofreu, ao longo do tempo,  a influxo da música da caserna, do batuque afro, das danças europeias. Assim como eu não sou o clone do meu bisavô, a Banda Cabaçal é a evolução cronológica daquele DNA primitivo que nasce com os Índios Cariris. Ou seja, ela nos reporta, imediatamente, com sua música e sua coreografia, para as inúmeras etapas evolutivas do Sul cearense. O desaparecimento do Mestre Vicente, ontem, pesa em todos os caririenses, como se tivéssemos perdido o cacique ou o pajé da nossa tribo. Fica, no entanto, a certeza, que nossa tradição não se extingue com a sua partida, simplesmente pela capacidade dessa Cultura ressurgir e recriar-se a todo instante. Terminado o ritual do Quarup, a festa novamente voltará a fazer-se, com brilho renovado,  no terreiro da Taba.  

                        Grande Mestre Vicente Aniceto ! De volta ao sol, nos braços de Tupã, lá de cima percebe que foi por causa dele que a terra, vista de longe,  é todinha Azul.

                                                                                                                           Crato, 29/09/23  

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Pornomedicina


Alunos da Escola de Medicina da Universidade de Santo Amaro no interior de  São Paulo (UNISA) , em fins de março e início de abril deste ano, invadiram uma quadra onde estava acontecendo um jogo de Voleibol feminino. Entraram com um desfile inusitado: despidos e promovendo uma masturbação coletiva. Os vídeos do punhetaço só vazaram pelas redes sociais esta semana, causando uma avalanche de comentários vezes irreverentes, a maior parte deles atordoados numa onda de críticas e protestos. O caso da UNISA, infelizmente, não é uma exceção. Recentemente episódios iguais de obscenidade coletiva aconteceram com alunos da Santa Casa de SP e da São Camilo. Em Nova Iguaçu os alunos de Medicina, em jogos estudantis, confrontaram as outras torcidas com um grito de guerra profundamente discriminatório: “Ei ! Eu sou playboy, não tenho culpa se seu pai é Motoboy”.    E nós , pasmos, temos uma só interrogação: o que diabos ainda pode acontecer, nestes tempos de esfacelamento de todas as barreiras da intimidade ?

                        Claro que muitos observadores podem apontar para  as incongruências típicas da idade dos envolvidos, adolescentes aí transpondo a segunda década de vida. Muitos lembrarão, imediatamente, para os reflexos destes tempos em que a exposição maciça da vida íntima passou a ser perfeitamente normal e até necessária. Modelos fazem vazar intencionalmente fotos e vídeos pornôs; a troca de “nudes” entre namorados e paqueras virou uma regra (passou a substituir as cartas de amor de antigamente). Os jornais e folhetins se alimentam dessas notícias diárias: “Fulana com biquíni curtíssimo na praia”, “ A cantora sicrana, com decote cavadíssimo, mostrou demais”. Hotéis, motéis, casas de aluguel pelo AIR-BNB, banheiros públicos, Provadores de roupas em lojas chiques, frequentemente, são denunciados por uso de câmeras e filmagens escondidas.  Há um agravante , no ato perpetrado pelos alunos da UNISA da Santa Casa e da São Camilo. São todos estudantes do curso de Medicina. Todos em formação para exercer uma atividade que exige humanismo, respeito, empatia e sigilo absoluto sobre todas as  etapas do tratamento , qualidades essas totalmente díspares da atual escala de valores, num mundo já sem fronteiras de qualquer espécie. Daqui mais alguns semestres farão um juramento impossível de cumprir:  RESPEITAR a autonomia e a dignidade do seu paciente; GUARDAR o máximo respeito pela vida humana; NÃO PERMITIR que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o seu dever e seu paciente; RESPEITAR os segredos que lhe  forem confiados, mesmo após a morte do paciente ; NÃO USAR os seus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça. E , como se vê, o mais difícil de todos: GUARDAR respeito e gratidão aos seus mestres, colegas e alunos pelo que lhes é devido.

                        Notícias recentes dão conta de que a UNISA expulsou sete alunos e investiga outros. A PM está investigando os atos obscenos. Estas medidas todas estão sujeitas a reviravoltas jurídicas e é provável que os alunos terminem seus cursos antes de um julgamento definitivo. Ficam no entanto perguntas no ar: se o principal remédio manipulado pelo médico é a confiança, como farão para tratar eficazmente seus pacientes?  Se não têm apreço os futuros médicos nem por seus pares, que desvelo terão para os pobres que lhe procurem ? Se não conseguem respeitar nem a própria intimidade, que farão com a dos que lhe forem confiados ?

                        Os alunos da UNISA não se despiram sozinhos, deixaram nua também a Arte Médica: já fica impossível diferenciar  o homem do jaleco branco do ator pornô. Não é a nudez que é pornográfica mas o vilipêndio de uma Arte meticulosamente cuidada, com sacros cuidados de sacerdotisa,  por mais de vinte e seis séculos.

Crato, 19/09/23