sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O Mundo de Bunda Canastra

 


 

                               Um amigo me telefona, cedinho da manhã, com um  vexame danado para dar uma notícia. Com aquele atropelo de quem tivesse resolvido   o Teorema de Fermat. Ainda me espreguiçando, reprimindo os bocejos e a  remela dos olhos,  ouço seu depoimento madrugador. Lasca-me ele  , eu ainda entre lençóis, sua tardia Teoria Milenarista.

                         O mundo vai se acabar !  

                        Tento retrucar que isso não é novidade, só que a hecatombe final não vem por atacado, mas no varejo. A todo momento o mundo está acabando para alguns! Ele, no entanto, salta das suas ceroulas, meio afobado e pede que, por favor, não perca tempo com conversa mole, pois pode até não haver minutos suficiente para ele debulhar suas preocupações, antes que a Terra se dismilingue como sorvete em boca de banguelo. Os sinais , ele catalogou bem direitinho, eram, a seu ver,  inequívocos.

                                    Para onde se olha, arrepare bem, tem um destroço! Calor de pelar porco na Europa, inundações na Bahia,  em Petrópolis e Belo Horizonte. Na Inglaterra, ano passado, morreram mais de mil pessoas por causa do calor.  Terezina e Sobral para eles pareciam o Pólo Norte ! E agora, você já se ligou ? Dias desses deu uma chuva de granizo em Iguatu, meu irmão ! Como diabos essa água foi congelar nas nuvens, num lugar que é um puxadinho do inferno ? Essa semana, tu não assistiu ao noticiário, não ? Aconteceu um terremoto em Jaguaretama! O povo todo pensou que estava com Mal de Parkinson !  A terra tremeu lá , o povo parecia milho em pipoqueira ! Se oriente, meu amigo !  E, trezontonte, outro aviso vindo lá de cima ! Em pleno outubro, mês em que se estrela ovo no calçamento aqui no Ceará, deu uma chuva aqui no Cariri de mais de 150 milimetros ! Onde já se viu isso, me diga ? Nessa época , tu sabe bem, tem cabra assaltando caminhão para roubar a água do radiador; afanando  pedreiro para  aproveitar a água do Nível ! 150 mm em Outubro ? Se prepare, amigo, cuide de fazer suas orações e pedir perdão pelos seus pecados! Desligou, avexado, creio que correndo para arrumar as malas.

                                    Levantei preocupado, fiz a faxina matutina e, no café, pus-me a pensar. Olhando ao redor, o mundo anda mesmo dando bunda canastra. A mentira deslavada virou plataforma de governo. O esporte nacional não é mais o futebol mas o tiro ao alvo. E o alvo preferido são os negros e os pobres. Há meninos telefonando para a polícia denunciando um crime hediondo: fome! Tem deputado travestido de Rambo de fuzil em punho, lançando granada em Polícia Federal. Enquanto isso, santos homens de Deus, agarram-se com barras de ouro, enquanto recitam versículos bíblicos. Hordas de pretensos cristãos invadem templos e eventos religiosos e xingam e agridem babalorixás,  padres e fiéis, tudo isso em nome de Deus. Resta saber se o deus se trata de  Mardok ou de Odin. Estudantes fazem a faxina urbana, tocando fogo em mendigos. Policiais reconstroem as Câmaras de Gás: os judeus agora são os favelados. E, finalmente, se acabou com a corrupção no Brasil, foi só torna-la oficial, um programa de governo: “Meu desfalque, Minha Vida !” Qualquer denúncia é só usar a manobra do gato: enterrar o excremento e proibir a exumação por uns trezentos anos.   Tivemos até um pandemia que durou quase dois anos, matou um mundão de gente e enquanto o povo gritava, Água meus netinhos!  o governo respondia: Azeite, senhora vó ! Talvez  meu amigo tenha lá suas razões. Até o Pai Eterno , me lembrou ele, parecia mais condescendente, paciente , não era mais aquele de Sodoma & Gomorra !

                                    Terminei o café   mixo e o  pão com manteiga. Um pesado ar de fins de tempos me tomou conta da alma. O telefone tocou novamente, atendo e ouço a voz ofegante e agora mais agoniada do meu amigo do outro lado:

                                    -- Cuide, rapaz ! Agora tenho certeza ! O mundo tá numa peiinha de nada. Vi agora mesmo na televisão. Um monte de crente de Bíblia debaixo do braço, gritando como se o Criador fosse mouco, querendo, por fim da força, eleger o Satanás para ser prefeito do céu ! Cuide !

                                    Acredito até que o galinheiro não vai sufragar a eleição da raposa. Mas, pelo sim, pelo não, estou arrumando meus teréns e meus picuaios. Amanhã voto cedinho e parto para o Cococi. Já pedi meu passaporte ao prefeito da cidade , Manel Vieira. Dizem que lá é o fim do mundo e é lá que vou aguardar o outro Apocalipse que, apesar das previsões drásticas do meu amigo, espero que não chegue no domingo, apesar dos sinais mais que abundantes que a vida está a nos mostrar.

 

Crato, 28/10/2022

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Sabiá em Apanha de Arroz


Abigail viveu um casamento atribulado por mais de trinta anos. Clodoveu tinha lá suas qualidades, mas era muito diferente da esposa. Tocava uma fazenda, tentando, como numa corda bamba, sustentar a família com agricultura e pecuária. A renda dependia, assim,  de fatores imprevisíveis e insondáveis como o clima nordestino, a cooperação das lagartas e das epidemias veterinárias e agrárias.  Afeito à vida dura e ao trato com os animais, Clodoveu era cabra de poucas palavras,  pragmático e de pouca delicadeza. Cumpria, no entanto,  à risca todo o esforço que, à sua época, se esperava de um macho alfa na proteção da sua manada. Nunca se soube de trapalhadas suas quer nos negócios, quer fora do sagrado território do casamento. D.  Biga -- como Abigail era carinhosamente chamada por todos -- enveredara por um Curso Normal, em outro estado e, embora tivesse ensinado numa escolinha por pouco tempo, teve que se dedicar ao lar e à filharada. Mais viajada,  ela  tinha uma visão mais ampla , fora mais festeira, mergulhara em livros e em filmes na juventude e, tudo aquilo, idealizara-lhe uma perspectiva de mundo bem diferente do que a vida acabou por lhe oferecer. O casamento com Clodô, como ela o chamava, contara com o corta-jaca de umas tias  bisbilhoteiras, mas Biga acostumou-se a gostar do companheiro por suas qualidades, embora o soubesse caseiro, adestrado pela vida e casca grossa. Os cinco filhos cresceram rápido, e , quando deu por si, já haviam levantado voo e estabelecido ninhos bem longe dali. Terminaram os dois apenas em casa e, já sem o fulgor  dos anos primaveris, Clodô e Biga ficaram mais distantes ainda, já sem muitos arranca-rabos, os dois foram tocando os dias pela simples necessidade de continuar estrada afora.

                               Um dia, anoiteceu e Clodô não retornou da fazenda. A esposa preocupou-se. Aquilo não era comum.  Juntou amigos e começaram a caça. Encontraram-no caído, no meio da roça, sem vida, parecia ter sofrido um ataque fulminante do coração.  Abigail viu-se tomada de uma tristeza extrema, nem tanto pelo amor que já se mantinha apenas com pequenas brasas em meio às cinzas. Perdia um companheiro de muitos anos , via-se só e, antes de tudo, esfacelava-se uma rotina a que já se acostumara. Como se, súbito, tivesse que refazer novamente o roteiro dos dias que viriam, já agora em voo solo. Durante uns dois anos, Biga mergulhou naquele fosso e naquela fossa. Os filhos queriam levá-la para morar com qualquer um deles. Ela, porém, entendeu que seria mais um cavalo de pau que daria na existência e sabia que a convivência diária é a maior fábrica de inimigos figadais.  Sogra morando com nora ou genro é como fumar charuto na Casa da Pólvora.

                               Um belo dia , simplesmente, parecia que o nevoeiro cessara e , por fim, um sol de outubro incendiou o horizonte. Biga acordou cedinho foi ao  cabeleireiro , cortou o cabelo e o pintou. Partiu para o comércio e comprou roupas da moda , maquiagem e perfumes. Daquele dia em diante, não mais perdeu uma festa. Viajava periodicamente para ver os filhos e netos, mas sem muita demora. Qualquer festividade ao redor de cinquenta quilômetros contava com uma Abigail pronta e maquiada, um pé-de-valsa. Os conhecidos, de início, assustaram-se com a transformação. Os homens rapidamente malharam a chamada viúva fogosa. Embora já com dois anos da partida de Clodô, ainda achavam tudo prematuro. Ralhavam, principalmente, com uma atitude que lhes parecia  a mais reprovável. Nas festinhas de jovens, Biga contratava um dançarino particular para dançar a noite inteirinha com ele, já que sabia que não teria lá tantos parceiros interessados por conta da diferença de idade.

                               -- Tá vendo aí ? Vá morrer, vá ! Não deixou nem a fel do falecido estourar e já tá toda fogosa e serelepe !   E chorava feito uma desesperada no velório ! Devia era ter vergonha.

                               As mulheres, do outro lado, não pareciam menos lenientes. Mas, no fundo, presas aos afazeres domésticos, não disfarçavam uma certa inveja pela liberdade de Biga. E, quem sabe, um certo temor em que vulcânica  viesse a atacar seus maridos. Pareciam pássaros na gaiola olhando o voo plainante de um carcará.

                               -- Abigail devia se dar mais a respeito ! Clodô num era lá essa flor que se cheirasse, mas não precisava sair por aí parecendo um cachorra no cio.

                               Biga, no entanto, não ligava para o falatório, numa espécie de nem “escuto a zoada da mutuca !” Continuou a celebrar a  vida e escancarou portas e janelas. Clodô, agora, ficara até como uma boa lembrança, uma imagem fixa numa estação de trem. Ela apenas descobrira que a locomotiva estava em movimento, que não mais retornaria e que era preciso curtir a paisagem mutante que estroboscopicamente  se projetava  da janela do trem, antes que também chegasse o momento do seu desembarque.

                               O velho Quinco Leré passou meses ouvindo os mexericos da vizinhança pinicando o oratório de Abigail. Manteve-se sempre, do alto dos seus oitenta, numa placidez digna de um faquir indiano em transe.  A fofoca comia solta pelas esquinas e calçadas, Quinco não dava um pio. Um dia, no entanto, viu com os próprios olhos, já meio embaçados pela catarata,  os volteios e coreografias de uma alucinante  Abigail , com o seu parceiro contratado, num forró promovido pela Associação de Bairro.  Chegou em casa calado, olhou para a esposa que lhe preparava o mingau de Aveia Quacker e lhe confidenciou:

                               --- Eita, mulher ! Vi hoje Biga numa festa, mais alegre do que sabiá em apanha de arroz ! Se eu tivesse certeza que viúva, Isaurina, tu ia ficar feliz daquele jeito, eu te juro, mulher,  eu me suicidava, eu dava um tiro no cocuruto!

 

Crato, 21/10/22  

                              

                                  

 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Urgências de Escandelos à luz do dia

 

Sempre confiei na ficção como a fórmula de um escritor se aproximar mais da realidade. Talvez, por isso mesmo, utilizo a memorialística como um simples arcabouço para as histórias e , a partir daí, vou colocando penduricalhos e adereços para torná-las mais interessantes e palatáveis. No fundo, este é sempre o artifício de quem se envolve com arte: procurar ângulos inusitados para dali flertar o universo. Muitas vezes é preciso colocar filtros, óculos de degrau, para abrir o leque de possibilidades dos objetos observados. Vi críticas de amigos sobre a minha predileção por histórias bem humoradas, alegres e divertidas, cheias de nonsense. Para tantos, perco, com elas, a profundidade da existência e a possibilidade de mergulhar nas camadas mais abissais da alma humana. Com o bom humor, na visão mais crítica dos especialistas, fico apenas no Termoclina, na camada mais superficial dos oceanos,  incapaz de observar a vida em toda a sua espessura. Por outro lado, imagino, que tendo optado por fitar o Plâncton, bebo mais da sua bioluminescência, plaino ao doce sabor mutante das vagas e do vento  e firmo-me no local onde a vida se encontra mais presente e pulsante.

                               Claro que esta preferência não foi uma escolha pura e simples. Meu lado paterno é varzealegrense, um lugar onde o riso faz parte indissociável das pessoas. Impossível encontrar  amigos e parentes sem que, imediatamente, o foco  da conversa  não salte para as presepadas, as potocas e histórias irreverentes dos conterrâneos. Convivi com meu avô, meus tios, primos, todos com a verve na ponta da língua, prontos para jogar uma “puia”,  a qualquer instante. Meu pai e meus tios, como uma Sherazade, contavam e recontavam histórias incontáveis, todas cheias de picardia e irreverência. Intimamente temiam a chegada do Sultão do Tempo com o seu apagador imperdoável. Nascido no Crato, convivi, de perto, com inúmeros outros presepeiros, figuras míticas que preenchiam nossos livros de mitologia, com as histórias mais engraçadas e estapafúrdias: Chico Soares, Padre Verdeixa, Melito, Asa Branca, Félix Cândido, Zé de Matos e muitos, muitos outros.  Sem o talento de criar e recriar contos, lendas e fábulas e sem a capacidade teatral dos meus parentes de encená-los nas suas apresentações, resolvi escrever, com a certeza , meio inglória – ledo engano!- de que teriam, assim, alguma permanência.  Perdoe-me assim, tendo optado pelo plâncton, alguma superficialidade na minha escrita, os textos são mais claros, menos tendentes ao sombrio e aos mistérios indevassáveis da existência. Não mergulhando profundamente, talvez temendo a asfixia, não os trarei, com certeza, nenhuma grande revelação digna de uma Fossa das Marianas, mas já ficarei feliz e realizado se os proporcionar alguma alegria, alguma felicidade e os afastar das perspectivas sempre mais tenebrosas das regiões mais abissais dos oceanos, com seus monstros desconhecidos e bizarros.

                               Tenho alguma dificuldade em falar dos meus parentes mais próximos, talvez porque, de alguma maneira, a impossibilidade de tê-los perto, fisicamente, já me amargure a alma. Ontem, um parente, em um telefonema, me lembrou de um tio e uma tia queridos. E decidi recontar a história divertida que ele guardou carinhosamente. Tio Zé Odimar casara com uma irmã de meu pai, tia Balbina e sempre morou em Várzea Alegre. Foi, por um tempo, dono de um pequeno ônibus que fazia a linha para o Crato. Depois tornou-se funcionário público,  trabalhando na Coletoria daquela cidade. A tia foi professora, cuidava de uma récua de filhos, alguns deles ainda residentes em Várzea Alegre. Nas férias, de meio e fim de ano, juntavam-se  todos netos, no sítio de meu avô, Lagoa dos Órfãos, ali pertinho. Chegavam dezenas de meninos e meninas , com uma vitalidade incrível, própria da idade, mais parecendo uma peste de gafanhotos. Só regras militares para controlar um batalhão daqueles. As leis eram executadas por uma outra tia, à época ainda residente com meus avós, e que tinha que fazer cumprir as determinações a força de cipó de marmeleiro. Os netos foram assim criados quase que como irmãos, dividindo as alegrias da vida no sítio, nas férias, com as penitências pelos castigos cometidos.

                               O tio Zé Odimar tinha como uma das suas iguarias preferidas, um pirão de Mocotó   que era preparado diligentemente por tia Balbina e que finalizava, sempre, com um toque de Chef. Ela, com um martelo, batia na ponta do osso para sacar de dentro o tutano que seria servido como cobertura do pirão. Prato impensável nos dias de hoje, depois que um sacana achou de descobrir um tal de colesterol. Ao menos duas ou três vezes por semana, o tio se regalava com aquele prato que dava sustança e tinha fama de levantar  até velho na missa de sétimo dia. Um dia, no entanto, aconteceu um pequeno acidente. Tia Balbina quando martelava o osso em busca de extirpar o tutano, o martelo resvalou e foi de encontro ao dedão da mão esquerda. A tia fez uma careta danada, o dedo inchou de imediato como se tivesse levado ferrão de marimbondo de chapéu. Com o passar dos dias, a coisa piorou pois “afuleimou” e virou um panarício, fazendo com que a tia sofresse por mais de quinze dias até que o bicho veio a furo,  às custas de muita compressa  de água quente e pomada de basilicão. Depois do sofrimento, tia Balbina disse ao marido que continuaria fazendo o pirão, com a mesma diligência, mas nunca mais teria coragem de bater o tutano. O tio Zé Odimar, que presenciara o sofrimento da esposa, acatou de bom grado a decisão: não havia problema. Quando fosse dia de pirão e já estivesse pronto, mandasse avisá-lo na Coletoria que ele viria imediatamente e providenciaria a extração do tutano. Só não demorasse muito pra não esfriar. Pirão, café e mulher, só prestam quentes, vaticinou do alto dos seus sessentinha.

                               Na outra semana, pirão quente, a tia pediu ao filho, Aldenízio, um menino danado, de uns dez anos para que fosse de bicicleta até ao trabalho do pai e o convocasse imediatamente para  vir finalizar o prato principal da casa. Aldenízio saiu disparado e, quando chegou na pracinha defronte da Coletoria,  Zé Odimar vinha saindo para o almoço, acompanhado do prefeito da cidade e de um fiscal de rendas que havia chegado de Fortaleza. Ante a praça apinhada de gente Aldenízio gritou, do lado de cá,  a plenos pulmões:

                               --- Pai, pai ! Mamãe disse que tu fosse agora mesmo pra casa ! Ela disse que já tá quente ! Disse que tá na hora de fazer...

                               Aí fez o gesto dúbio para os que não tinham acompanhado os últimos,  acontecimentos, simulando quem tira tutano, batendo a palma da mão direita contra a mão esquerda fechada: top, top, top...

                               Na praça foi um quiririquiqui danado. O fiscal de rendas quis saber imediatamente, a receita daquela iguaria que parecia ter poderes afrodisíacos invejáveis, levando até a urgências de escandelos em plena luz do dia.

 

Crato, 13/10/22