segunda-feira, 29 de outubro de 2018
sexta-feira, 26 de outubro de 2018
A Besta, o Dragão e o Cordeiro
Noé Crisóstomo , desde pitototinho,
viu-se assoberbado de um sem número de superstições. Todas as contínuas vicissitudes que lhe foram
surgindo durante a vida, não diferente de qualquer um dos mortais, imputava,
imediatamente, ao seu rol interminável
de crendices. Para ele , a vida estava, desde o seu início, predestinada e a
maneira de auscultar o futuro e prevê-lo devia ser , necessariamente, através
de sinais esparsos que o destino ia disseminando pelo caminho. O diabo é que a
maioria dessas explicações não tinha valor prospectivo, apenas eram buscados e
encontrados depois que a casa já havia sido roubada. Sofrera uma batida no
carro ? Crisóstomo, imediatamente, lembrava que, noite anterior, encontrara um
gato preto no jardim; levara uma topada e arrancara o chamboque do dedão? Só
pode ter sido aquele guarda chuva que abriu ontem dentro de casa ! Havia, claro, os bons e os maus sinais
espalhados nas margens dos caminhos da vida do nosso Noé. Deliciava-se quando a
palma da mão coçava, imaginando que receberia uma bolada de dinheiro nos próximos
dias e tinha imagens de elefantes espalhados por toda casa, na certeza de que
atrairiam bons fluidos.
Nosso Crisóstomo,
por outro lado, devotava uma predileção toda especial pelo número 13. Tinha a
absoluta certeza de que sempre lhe trouxera sorte, mesmo nas sextas feiras mais
tenebrosas. E teria sido por isso mesmo que acrescentou o Noé ao seu nome
original na certeza de que junto com as outras dez letrinhas do Crisóstomo,
alcançaria, por fim, o número numerologicamente perfeito. Noé era farto em
exemplos : Cristo escolhera doze apóstolos justamente porque, com ele, somariam
13; o décimo terceiro salário não era a alegria maior de cada fim de ano ? Qual
a passagem da Bíblia mais poética, mais bonita e mais coração? -- O Coríntios
13, dizia um Crisóstomo mais que enfático !
Nestes dias, o nosso
Crisóstomo pareceu mais capiongo e com cara de quem andou chupando groselha
estragada. Os colegas da repartição notaram a mudança meio súbita, aquele
sobressalto de alguém que ouvira o alarme do tsunami. Imaginaram que o nosso
Nostradamus tropicara em algum sinal novo de tragédia anunciada. Abordaram um
Noé de olhos esbugalhados e perguntaram-no o que havia acontecido. Ele apenas
disse com olhar distante e fixo.
--- São exatamente
13 Horas !
Abriu uma Bíblia
surrada que tinha em cima da mesa e pediu, leiam aqui ! Esse é o Capítulo 13 do Apocalipse. Os colegas pegaram o livro
sagrado e alguém leu em voz alta para os outros :
“E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta
que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e
sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.
E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.
E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem poderá batalhar contra ela?
E foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois meses.
E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua, e nação.
E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.
Se alguém tem ouvidos, ouça.”
E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.
E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem poderá batalhar contra ela?
E foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois meses.
E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua, e nação.
E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.
Se alguém tem ouvidos, ouça.”
Após
a leitura, os colegas de trabalho entreolharam-se algo pasmos. Crisóstomo tinha
os olhos vidrados na parede ! Sussurrou apenas palavras soltas:
---
A Besta ferida...Poder sobre toda tribo e Nação...o dragão que dá à besta o seu
poder...Blasfêmias... quarenta e dois meses: quatro anos... !
No domingo, Noé sairá
para a seção eleitoral. Visionariamente
será como se fosse construir uma segunda arca. Levará consigo o número mágico,
aquele mesmo que recebeu quase como predestinação desde o nascimento e que
digitado, cuidadosamente, terá o poder -- quem, sabe? -- de subverter as
profecias e impedir a imolação contínua do Cordeiro, que se arrasta desde a
fundação do mundo.
Crato,
26/10/18
sábado, 20 de outubro de 2018
Fogos
J. FLÁVIO VIEIRA
A corrida de obstáculos começa
cedinho, mal a cidade tira a remela dos olhos. Carros e carros amontoam-se pelas vias obstruídas, logo
cedinho, como se previssem o enfarte futuro dos ocupantes dos bólidos. Homens de cara amarrada ,
manietados no trânsito caótico, desesperam-se, vendo-se escoar pela ampulheta a substância
irretornável : o tempo. Motos, em ziguezagues, costuram as vias entulhadas de
veículos, num estranho crochê matinal. Os cabine-dupla apresentam um ar de
superioridade, quase que nobiliárquico, engolindo os pequenos espaços que vão
surgindo, como se num PAC-MAN gigantesco, na clara convicção de que existe um Código de
Trânsito específico para a realeza. Meninos sonolentos, nos bancos de trás, não
parecem demonstrar preocupação maior com o atraso na sala de aula: bocejam
ininterruptamente. Os carros , hermetizados pelos insulfims e ar-condicionado, aparentam a tranquilidade de quem se encontra
totalmente isolado do mundo que freme do outro lado dos vidros. Sons ambientes são abafados pelo bate-estaca
das buzinas nervosas. Cada Sísifo
carrega consigo seu 13º Trabalho de Hércules do dia: a consulta, a fábrica, o
escritório, a escola, o laboratório, a lojinha, o hospital... Todos , a seu algum modo, revoltados com a praga um dia lançada quando as espadas flamejantes nos expulsaram
do paraíso para o leste do éden. Adiante , os veículos, em continência, param
diante da imposição do sinal vermelho, no cruzamento.
Dois pardais pousam, obedientemente, sobre os olhos rubros
do semáforo, e saltitam de um lado a outro do curto campo
disponível, tilintando como crianças no playground. Enquanto a realidade urra
ao derredor, ensinam lições de alegria e
distanciamento. O pássaro fugirá do azáfama. No alto, dançará sobranceiro, sobre os fogos, mesmo sob a dura
perspectiva da abertura próxima da temporada de caça, como se as luzes semafóricas fossem apenas os
holofotes estonteantes da boate. A vida
rege-se na ciclicidade do verde, do amarelo , do vermelho, comandada por uma
longa mão invisível que apaga ou acende aleatoriamente seus sinais.
20/10/18
quinta-feira, 11 de outubro de 2018
O Lobo no Espelho
O Brasil, último
país a acabar com a escravidão,
tem um perversidade intrínseca na sua herança,
que torna a nossa
classe dominante
enferma de
desigualdade, de descaso.
Darcy Ribeiro
Este período eleitoral desvendou
uma face do país bem diversa daquela que vimos apregoada por nossos mais
famosos sociólogos e antropólogos. Como entender que a nação mais cristão do
mundo, em pleno tempo do Papa Francisco, se veja com ganas de cão
hidrofóbico, com ataques sistemáticos ,
com a aparente catarata da autoridades constituídas, às eternas minorias de
gays, pobres, negros, nordestinos ? Onde
ficou guardada a Bíblia, em que gaveta se esconderam os rosários e os crucifixos? Observando ,
friamente, as hostes bárbaras ao nosso derredor, parece que estamos vivendo uma
reprise alemã dos anos 20-30, com milícias armadas aterrorizando as ruas; com
discursos inflamados tomando de assalto
as mídias televisiva e social, pregando, sem nenhum pejo e pudor: o assassinato
sistemático de adversários políticos. Adiante vê-se o armamento aberto e
despudorado de uma população totalmente despreparada para portar sequer uma
baladeira; o assalto a todos os direitos da população trabalhadora; a ameaça de
fechamento do Congresso e do retorno à Cortina de Chumbo dos tempos
ditatoriais; o abandono do grosso da população brasileira, a miséria, à fome, à
doença e ao extermínio; a substituição de fatos e notícias
por fofocas cabeludas disseminadas pelos Gobbels de plantão. E o mais
insensato e incompreensível em tudo isso, como na Solução Final, do Nazi
fascismo, com o beneplácito da população
burguesa, mas, incrivelmente, com enorme respaldo também naqueles que, logo
mais, estarão diante do pelotão de
fuzilamento. Poderemos ter -- tempos loucos ! -- uma ditadura mascarada, ao
arrepio da Constituição dita cidadã, instalada com o respaldo das urnas, sob a
eterna justificativa ( aí a receita sempre se repete) de combate à corrupção,
ao ateísmo, às distorções morais. Falta apenas, no nosso projeto de Fascismo tupiniquim, o exacerbado patriotismo , antes
tão prevalente nas casernas, mas, agora, incompreensivelmente, substituído por uma lúbrico e desbragado
entreguismo. Sempre é bom lembrar que se a porta de entrada para tempos
ditatoriais aqui poderá ser pelo voto, a saída sempre faz-se demorada, penosa,
aberta com golpes de baioneta e, a história tem mostrado, com muitas baixas do
lado daqueles que não portam as armas de guerra.
Temos
que conviver, neste Brasil, em pleno Século XXI, com discursos pré-iluministas. A Escravidão passa a ser
novamente perfeitamente justificável; as questões ecológicas são mero
atravancamento ao progresso humano; os pobres , como os índios, merecem seu
sofrimento e extermínio por conta da preguiça desenfreada; os Caldeirões, os
Canudos são novamente resolvidos com rajadas de metralhadoras . Onde
escondeu-se, envergonhada , a propalada cordialidade do brasileiro, um dia
apontada pelo nosso Sérgio Buarque ? O elogio à nossa miscigenação, como pedra
de toque da nossa grandeza humana, que tanto nos fez pábulos , nas palavras de
Gilberto Freyre, como escafedeu-se tão sorrateiramente ? Por que . agora, de
manhã acendemos uma vela aos santos e, à noite, como lobisomens , saímos para nossos rituais satânicos ?
Faltam
poucos dias para que, definitivamente, aclare-se esta bipolaridade que invade
nossa alma. Somos um projeto de Nação, com o longo caminho a ser percorrido
ainda, em busca de acolher toda a população como irmãos, sob o manto da
liberdade e da cidadania ? Ou apenas um mero aglomerado humano, cuja
sobrevivência se rege pela lei do mais forte e do mais poderoso, sem rumo, sem
alfa, nós selváticos e selvagens : chacais e lobos de nós mesmos ?
Crato,
11/10/2018
quinta-feira, 4 de outubro de 2018
A Senda
“Toda
a invenção é memória. (...)
Quem nos arranja os materiais é a memória.
As
tais coisas de que a gente não fala
e
aparecem nos livros, de maneiras
desviadas.”
António Lobo Antunes
A história de uma vila, de um bairro, de uma nação não
se faz apenas com os fatos épicos que
locupletam os livros didáticos. O sangue das batalhas, as grandes
jogadas da política, o heroísmo dos homens da Arte e da Ciência são apenas uma
pequena notícia de rodapé na verdadeira odisseia da humanidade. A saga de um
povo ou de uma cidade passa pelos pequenos gestos desapercebidos da maioria dos
mortais, do dissipável sabor das nossas
mais simples relações cotidianas, do fragor mudo da mãe solteira que
batalha pela sobrevivência da ninhada, do heroísmo imperceptível e cotidiano da
grande massa de trabalhadores e operários , da lágrima que rola no escuro da
alcova, do sorriso monalísico esboçado pela criança que se agarra à côdea de
pão. A grande História narrada nos livros , uma aventura de amplos gestos e de
gigantescas atitudes, temperada com um quantum considerável de ficção, é um
mero arcabouço da inteira história de uma civilização. Tentar reconstituir o
passado faz-se sempre o árduo ofício de alguém que coloca as mínimas e
incompletas peças do quebra-cabeças no
tabuleiro e, tenta, deduzir dali o colorido mágico da aquarela que um dia
existiu. São esses fragmentos desiguais e esparsos dos ladrilhos da memória
afetiva, sentimental coletiva que , inseridas , pouco a pouco, por múltiplos
memorialistas possibilitam-nos entender um pouco do bordado do passado e tentar
depreender, por simples projeção, os rumos das novas aquarelas que pouco a
pouco irão sendo debuxadas pelos novos tempos, como afrescos, mas que são
simplesmente pintadas com as mesmas tintas com que um dia nossos antepassados
grafitaram as cavernas mundo afora. A
memória de um povo é o seu DNA, o núcleo da sua existência. Sem o filme, mesmo
incompleto, da nossa trajetória, somos mera projeção de imagens dadaísticas,
vazias e estroboscópicas, sem início , meio ou fim.
O Instituto Cultural do Cariri faz
65 anos, neste 4 de outubro. Instituição pobre, órfã de governo, como tantas
outras neste Brasil, conseguiu, com o empenho de visionários desenhar o melhor
painel que se conhece da História Regional do Sul cearense. Nenhuma outra
instituição pública, acadêmica e científica conseguiu delinear um bordado
mais próximo de uma realidade almejada e
perseguida e o fez com os cuidados típicos de mentes iluminadas e iluministas. Irineu Nogueira Pinheiro, Padre Antonio Gomes
de Araújo, J. Alves de Figueiredo Filho, Joaryvar Macedo, Plácido Cidade Nuves,
F. S. Nascimento, Manoel Patrício de Aquino, Antonio Teodósio Nunes , Pe
Antonio Vieira, para citar apenas alguns desses pioneiros, bosquejaram a mais
bela tela memorialística do sul cearense
de que se tem notícia. Mentes críticas podem até inferir que eles colocaram holofotes nesse ou
naquele ladrilho , que carregaram nas tintas nessa ou naquela pecinha a seu
bel-prazer, atitude típica de qualquer artista que deseja enaltecer algumas
nuances da sua obra. Mas é preciso reconhecer que a estes artistas devemos a
cola que une nossos incontáveis fragmentos e que faz com que unos possamos nos
apresentar como únicos: um povo com uma cultura própria embebida em valores
indígenas, afros, lusitanos: valente e guerreiro quando preciso, místico e
beato quando necessário.
As sessenta e cinco velinhas que
hoje fincamos no bolo do Instituto
Cultural do Cariri são representativas
da fúlgida luz que a instituição
projetou sobre o nosso passado. É ela
mesma que, reflexa, se esparrama pelo infinito caminho à nossa frente, delineando rotas, aclarando
veredas, guiando outros magos por novas , benfazejas e messiânicas sendas.
Crato, 03/10/18
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