sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Lito de Nezim

 


J. Flávio Vieira

 

                                               Passou a ser conhecido, carinhosamente, por Lito. Desde menino, Carmelito mostrou ao mundo a que veio. Irrequieto, cheio de mutretas e de trapaças, não passava um só dia sem pregar uma peça em alguém. Jogava pedras nas vidraças de vizinhos, sorrateiramente; tocava a campainha de todas as casas por onde passava; atirava detergente em aquários; soltava passarinhos das gaiolas    Nos jogos de rua, então, era um terror. Roubava as bolas de gude dos companheiros, lascava as carrapetas nas rodas de pião. Não o escalar para um time era motivo para, na primeira oportunidade, ele furar a bola com algum canivete e escapar em desabalada carreira. Na escola , pensou-se que aquietaria o facho : ledo engano ! Virou um especialista no gazeteio de aulas  e um master chef em pescagem nas provas.  Espalhava as colas por lugares mais inusitados : banheiros, fundos de cadeiras e escrevia-as pelo corpo numa espécie de tatuagem temporária. Sua mais tradicional forma, no entanto , era colocar o papelzinho com a pesca atrelado a um arame e , quando todos estavam sentados resolvendo as questões, ele, calmamente, enganchava o aramezinho no  colarinho do colega sentado logo à sua frente e ficava, tranquilamente pescando, como um músico olhando uma partitura. Numa das provas de Física, escondeu o teste e entregou um papel em branco ao professor que naquele momento estava meio distraído. Procurou, ao sair, um colega cobra, de um série superior, pediu que ele resolvesse para ele aquela pedreira.  Depois, à noite, dirigiu-se à casa do mestre e colocou  a folha de papel por debaixo da porta, com todas os quesitos rigorosamente resolvidos.  No dia da entrega das notas,  o professor comentou sobre a nota 10 que ele tinha alcançado e ainda sobre a sorte do rapaz:

                                    -- Quase perco sua prova,meu filho ! Encontrei no chão já indo pro lixo ! Que sorte, hein ! Que sorte !

                                    Crescido, novamente, todos imaginaram que Lito ia tomar jeito. Que nada ! Os casamentos se sucederam e também o relato seguido de negócios enrolados, de contas a pagar que tomavam fila maior que a da vacinação. O último dos matrimônios foi com D. Risalda. Eles  , seguindo as regras da eletricidade, atraíram-se : ela   era o posto dele, a fase positiva da bateria. Religiosa, carola, direita,  metida em obras sociais e na ajuda dos mais desfavorecidos. Herdara tudo do pai , o velho Nezim Torquato, um português bonachão e que instalara uma padaria na cidade, “Pra variar, gajo ! Como comentava, alegre,  com os patrícios !

                        Lito continuou com suas tramoias, agora já nem tão necessárias, uma vez que vivia, comodamente, sobre as asas do sogro. Quando dava um prego numa barra de sabão tinha que tirar férias de pelo menos seis meses.  Tanto que passou a ser conhecido por “Lito de  Nezim”. A última das suas presepadas foi a venda de uma vaca holandesa, famosa, toda rajada de preto e branco e que, segundo ele, dava mais de vinte litros de leite coado. Quando o novo proprietário cobrou sentido, descobriu que a vaca tinha quatro peitos perdidos e a raça da futura reprodutora da fazenda perdeu-se no primeiro banho. A vaquinha, simplesmente, nunca jogou na mesma seleção   de Cruyff e Lado. No primeiro banho, as manchas negras saíram. Lito tinha pintado  algumas máculas  numa vaquinha branca pé duro que ele tinha recebido num rolo.

                        Dias atrás, Lito de Nezim foi acometido de um mal súbito e caiu durinho . No enterro comentava-se , a boca miúda, que aquele tinha sido o único caso conhecido de um cabra que depois de bater as botas não se transformou em bom, direito, rico e bonito. Até o padre Salustiano, na encomendação, deixou a impressão que cem anos de purgatório, com tornozeleira eletrônica,  ainda não iam dar cobro no desmantelo de Lito.

                        Depois da missa de sétimo dia, uma Risalda chorosa foi fazer a visita de cova do marido e , lá encontrou um epitáfio, rabiscado em uma cartolina e pregado com cera de vela, em cima da pedra de mármore da tumba:  

Enfim preso  aqui no chão

Um cabra sem formação

De procedência ruim.

Fraco, safado e sem linha

Perdeu o nome que tinha

Virou  Lito de Nezim.


Crato, 27 /08/ 2021

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Entre sustenidos e bemóis

 



J. Flávio Vieira

 

                               Se a vida é feita de altos e baixos, de vales e depressões, os amigos não estranhavam quando Ariosto contava que a dele, especificamente, tinha sido um verdadeiro  Rali. Nascera pobre , filho de uma mãe solteira, numa favela. Desde os primeiros dias,  travou uma renhida batalha pela sobrevivência. Nem pôde frequentar os bancos de escola por muito tempo e se o fez, reconhece , fora por conta da merenda escolar.  Ali, ao menos, livrava-se do risco de morrer por inanição. Como todo menino pobre de morro, teve que se virar, desde cedinho: como flanelinha nos sinais, pastorando carros estacionados na rua e enveredando pela única carreira militar oferecida aos desfavorecidos, a aeronáutica dos lascados: Avião de drogas ilícitas nas horas vagas. Depois de cair algumas vezes nas garras da polícia, com estadas em centros de correção , os hotéis e pousadas disponíveis aos descamisados, desistiu dos caminhos mais fáceis e, por isso mesmo, mais perigosos. Aprendeu o ofício de pedreiro e conseguiu um empregozinho na construção civil. Ariosto agora podia contemplar a cidade dos arranha-céus e dos cutuca-infernos, do alto do seu andaime. Entendeu, rapidamente, que o elevador do andaime, salvo melhor juízo, seria a única ascensão que lhe seria permitida na vida. Fez um barracozinho no morro, juntou-se com uma lavadeira de roupas , sua vizinha,  e  resolveu degustar o prato conforme lhe era servido. Rápido compreendeu que não só ele, mas o Brasil, também, vivia de declives e ladeiras. Crise econômica, trabalhador na rua. Voltou, sem que imaginasse, ao primeiro degrau da escada. Para aguentar o tranco, precisava de um anestésico e mergulhou no aguardente que acabou seu casamento e quase o destrói  também. Ariosto estava no bico do urubu, quando resolveu, mais uma vez , dar uma cambalhota na vida. Largou a cachaça, voltou a trabalhar com pequenos serviços de alvenaria até que, um dia, despretensiosamente, passou diante de uma lotérica e resolveu jogar .

                                    Na quinta feira, já nem se lembrava da fezinha, a moça da lotérica o procurou, exausta e vexada como se fosse tirar a mãe da força. Ariosto ganhara o Sena sozinho:  estava milionário ! A partir dali, sua vida deu um cangapé. Mudou-se para um bairro chique, comprou carro importado e resolveu passar o resto dos dias na maciota. Nada de dar um prego mais numa barra de sabão ! A palavra trabalho, para ele, passou a soar como palavrão. Amigos apareceram aos borbotões. Ariosto sempre se perguntava onde eles tinham se encantado quando ele ainda ralava na construção. Um dia , até lhe apareceu uma mocinha nova , bonita e produzida, para lhe fazer uma entrevista para as redes sociais, disse ser uma tal de  digital influencer. Entrevista vai, entrevista vem, de repente, ela lhe contou que estava apaixonada por ele. Chamava-se Thássia Navinsky. Ariosto ainda tentou escapar das garras dela, mas lembrou os tempos da seca , onde quase se acabou como a colher de pedreiro que usava nos serviços. Thássia ganhou por Yppon: era gostosa e bonita demais para se jogar pela janela.

                                    Ariosto teve seus anos gloriosos, mas donde se tira e não se bota, um dia seca. A manutenção de Thássia era muito cara, o preço pela amizade de tantos amigos, também, onerava muito, um golpe financeiro perpetrado pelo contador... Um belo dia, Ariosto constatou que voltara, novamente, à estaca zero. Os amigos desapareceram, Thássia desapaixonou-se na mesma velocidade com que se tinha enrabichado e , na volta, como o mesmo selvagem furacão  que tinha chegado, levou sua casa, seu carro, metade dos poucos bens que lhe tinham restado. Como desgraça pouca é meio de vida, antes que Ariosto tentasse começar, novamente, a subida da Montanha Russa, caiu gravemente doente: um câncer no pâncreas.

                                    A sinfonia da sua existência alternara-se entre sustenidos e bemóis. Sozinho, pobre novamente, resolveu retornar ao morro. Lá ficou pensando consigo mesmo sobre seu Rali. O dinheiro, pensou consigo, não traz felicidade, é verdade. Ele compra a felicidade e, como um objeto qualquer adquirido num mercadinho, ela tem prazo de validade, pode vir com defeito de fabricação e, um dia, como um cristal, se espatifa no chão.

                                    Semana passada, Ariosto teve uma piora sensível na saúde. Uma beata foi visitá-lo , aparentemente, por solidariedade cristã. Tentava disfarçar a real razão da maior parte das visitas nestas circunstâncias. A colheita de material para fofocas e comentários na redondeza e um certo sadismo típico destes momentos, alguma coisa como: “Era todo metido a besta, quero ver agora a empáfia dele com a velha da foiçona nos seus calcanhares !” Vitalina entrou com cara solene, observou atentamente o paciente moribundo no seu leito e não perdoou:

                                    --- Mas Ariosto, veja como são as coisas ! Você, um pé rapado, ficou milionário de repente e agora tá aí, lascado, morre-não-morre ! Tá vendo ! Já vi tudo ! Dinheiro não traz felicidade !

                                    Ariosto, levantou um pouco a cabeça do travesseiro e, meio cansado, com olhos baços, fitou a fofoqueira que lhe tripudiava  e sussurrou:

                                    --- É Vitalina! Dinheiro não traz felicidade, não ! Traz nada ! Pobreza  é que traz uma felicidade danada !

 

Crato, 20/08/21

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Horinhas de Descuido

 


J. FLÁVIO VIEIRA

 

                        “Felicidade se acha é em horinhas de descuido”

Guimarães Rosa

 

                               Estudo patrocinado pelas Nações Unidas,  desde 2012, este ano elegeu a Finlândia, pelo quarto ano consecutivo,  como o “País Mais Feliz do Mundo”.  O Gallup entrevista  habitantes e perguntam-lhes sobre sua percepção de felicidade, cruzando com dados estatísticos como PIB, liberdade individual, corrupção, IDH. A Finlândia goza de um padrão de vida muito elevado, serviços públicos eficientes e muitas florestas e lagos. O país também está muito bem posicionado em termos de solidariedade e na luta contra a pobreza e as desigualdades. Dos dez países tidos como mais felizes, nove são europeus. Das Américas, a Costa Rica foi o melhor colocado em 16º lugar. O Brasil ficou na 35ª colocação e o Afeganistão foi o último da escadinha, acompanhado da Índia e de muitos países africanos.

                        Importante balizar a sensação de felicidade  com o bem-estar social oferecido pela Sociedade  em que vivemos. Sonhamos todos com um Estado, pago com nossos impostos, em que toda a população tenha acesso à Saúde, Educação, Emprego e Renda,  Segurança de qualidade. Que a Justiça não use óculos e que os cidadãos não existam em infinitas categorias. Sabemos ser impossível a igualdade econômica, mas é imprescindível a igualdade de oportunidades para todos, independentemente de cor da pele, de orientação sexual, de poder aquisitivo. Coletivamente é assim que mapeamos e catalogamos os países felizes.

                        A felicidade individual, no entanto, trafega por caminhos bem menos previsíveis. Ela independe de condições financeiras, de geografia, de posses , de credo. Postos no mundo,   vemos-nos, de repente, numa montanha russa e, na maior parte das vezes, não nos é permitido, sequer decidir o trajeto. Recebemos um mapa com tudo pré-determinado: cancelas, cercas, veredas, placas de sinalização. E até uma cartilha: Feliz é quem... Nos dia de hoje (segundo atualização feita) feliz  é quem consome. A cartilha me ensina que venturoso é quem usa a roupa de grife ( que dura a moda da estação) , quem tem o carro do ano( que muda todo ano), quem tem geringonças eletrônicas ( um modelo a cada semestre), quem pode comparecer a lugares chiques que se alternam rapidamente... Quem não tiver a chave desse Shangrilá... não tem razão de viver. A felicidade individual depende, sempre,  da altura que você coloca sua perspectiva de satisfação. E, a maior parte das vezes, é a própria sociedade que escolhe o píncaro para pôr a sua ventura e, mal você alcança o cimo, ela, caprichosamente, recoloca-a em um cume mais elevado.  A vida , assim, torna-se apenas um exercício angustiante  de alpinismo em busca de um zênite impossível de ser atingido.

                                    Talvez, por isso mesmo, seja tão difícil suportar a existência sem anestesia. Baudelaire já ensinava: É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!  Alguns até substabelecem e diante da árdua tarefa projetam a bem-aventurança para outras encarnações.   E talvez, por isso mesmo, sejam tantos os que  desistem e pulam da montanha russa, em plena velocidade, num voo de Ícaro.

                                    Schopenhauer pregava que a vida resumia-se na oscilação  entre a ânsia de conseguir e o tédio de possuir. Talvez, nesta equação, a solução esteja  em diminuir o afã desesperador da conquista, procurar as sensações simples e primitivas, escondidas, caprichosamente, nas horinhas de descuido.

 

Crato, 13/08/2021

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Os Aluviões do Tempo

 

“Os cientistas dizem que somos feitos

de átomos, mas um passarinho

me diz que somos feitos de histórias.”

Eduardo Galeano

 


Olhem para o céu estrelado à noite ! As unidades astronômicas justificam esse adjetivo. Correndo na velocidade estonteante da luz, precisaríamos de cem mil anos para chegar à borda da nossa Via Láctea. E existem bilhões de outras espalhadas pelo universo ! Em contraponto, a vida de cada um de nós tem uma ínfima duração. Somos um mero piscar de olhos na insone e imensa noite do cosmos. Do pó ao pó, separa-nos apenas uma mera lufada de vento. A única possibilidade de alongarmos a nossa existência é torná-la intensa, mas há sempre o perigo de,  se aumentarmos o brilho da nossa lamparina, esvazie-se mais rápido o querosene que nos alimenta o pavio. Somos, assim, seres fadados ao esquecimento. Quando a preamar engolir os nossos castelos de areia, levantados à margem da praia, tudo voltará à placidez de sempre: o firmamento continuará azul, o movimento cíclico das ondas manterá seu curso imutável e a areia manter-se-á límpida e intocada sem lembrar que um dia a escavamos. A nossa escultura  permanecerá como uma mera lembrança, também fúlgida e fugaz, no coração das poucas testemunhas que tiveram o privilégio de ver nossos castelos, esculpidos na areia, no breve espaço entre uma e outra maré. Só.

                        O esquecimento pleno e total é a única certeza que carregamos no nosso embornal nessa breve viagem.  Nossa trajetória permanecerá viva, com sorte, por mais duas ou três gerações. Aos poucos, aqueles que testemunharam nossas fortificações na areia, também serão tragados pelos outros dilúvios e aluviões do tempo e, por fim, não restará um mero resquício fóssil da nossa passagem pelo planeta.  A partir daí, seremos, no máximo, uma foto perdida em algum álbum, um nome opaco, um galho seco,  em alguma árvore genealógica.

                        A nossa improvável  perenidade, mesmo que transitória e efêmera, depende da Memória, essa substância também  volátil e etérea e que alguns privilegiados, companheiros da mesma peregrinação terrestre, carregam consigo como um fogo sagrado. Observadores contumazes do fluxo cotidiano das relações humanas,  catalogadores de fatos,  amplificadores de estripulias e potocas, essas figuras   contam a história íntima da nossa tribo, aquelas que vão bem além dos fatos heroicos e épicos, e adentram o varejo das existências: no picaresco, no hilário, no irreverente. Eles narram o lado B da nossa saga, sem o glamour afetado, sem o ficcional forjado. Os personagens apresentam-se nas suas fraquezas, nas suas incongruências, nos seus vícios, com aquelas tintas menos coloridas e brilhantes que todos possuem nas suas aquarelas. É que na geometria humana não existem triângulos equiláteros.

                        Essa semana, o Crato perdeu dois desses imprescindíveis guardiões da nossa memória afetiva. Assis Landim e Almério Carvalho impregnaram-se, durante toda a vida, dos feitos de incontáveis personagens . Com memória privilegiada, inventariaram, classificaram e arrolaram o dia a dia de muitas gerações de cratenses. Foram os Homeros da nossa Ilíada. Enquanto os livros detinham-se no épico, nas grandes epopeias de figuras influentes e poderosas, Assis e Almério voltaram-se para os bastidores, narrando o lado oficioso e hilário da cidade de Frei Carlos. Demonstravam , claramente, que , talvez, a nobreza, a grandeza estivessem mais na  face mais oculta da vila, em protagonistas aparentemente desconhecidos e que não emprestavam seus nomes às ruas e logradouros públicos.

                        O Crato fica mais triste e mais pobre sem Almério e Assis. Perdemos nossos cronistas das miudezas e minudências  e esvai-se , com eles, um pouco da alma da cidade.  Lutaram, bravamente, contra a impermanência e o esquecimento. Que o Crato retribua-lhes com a mesma substância que eles cultivaram por toda vida : a Memória.

Crato, 06/08/21