sexta-feira, 28 de abril de 2023

Quero-quero

 

Cresolino Quero-Quero tomou um supapo danado quando recebeu a intimação do juiz. Audiência marcada para dois meses depois de assinar o AR daquela fatídica carta que lhe chegou pelas mãos do oficial de justiça. Buscou os óculos bifocais para poder soletrar as palavras da missiva. Só , então, lhe caiu a ficha: era um processo de verificação de paternidade impetrado por uma tal de Minervina do Nascimento. O sobrenome dessa peste, pensou com seus botões, já era quase uma profecia, eu devia ter desconfiado! A raiva, no finalzinho, foi substituída pelo medo: assinava o ofício o juiz Godofredo Justo da Silva, um sobrenome, também, meio premonitório. Quero-Quero  lembrou da fama do chefe afamado da Vara da Infância e Adolescência: cabra chegado mais aos finalmente e menos aos vamos ver. Direto, claro, sem querequequé ele que gostava mais de criança do que gripe, sarna  e bicho do pé.

                        Cresolino, rápido, fez uma retrospectiva  das cenas típicas do ramo de turismo e entretenimento e que, nestes casos, geralmente começam em motel e terminam em pensão. Tinha uma lojinha de vender produtos importados da China. Beirando os sessenta, era um ex-casado  convicto, desses que dizem que matrimônio, como sarampo, só acomete o indivíduo uma vez, isso se ele escapar. Minervina trabalhava, como balconista, numa farmácia defronte à Wuhan Importações de Quero-Quero. E foi, justamente, na compra periódica do remédio de pressão, que rolou um clima entre os dois. Conversa vai, conversa vem, curruchiado daqui, quiriquiqui dacolá, uma Minervina desimpedida terminou caindo na rede já meio esburacada do comerciante. Passado um ano de rala-e-rola, sem promessa de um contrato mais claro, Minervina , sorrateiramente, suspendeu o anticoncepcional. Dois meses depois avisou a Cresolino que ele ia ser pai. Quero-Quero se sentiu traído e, a partir dali, ao invés de assumir, resolveu sumir. A buchuda tentou , de toda maneira, estabelecer algum contato :  nada! O menino veio a furo, já estava com dois anos sem conhecer papá e foi neste momento que a mãe solteira buscou as barras do tribunal e foi empurrar a porta do Dr.  Godofredo. Dali para a intimação foi rápido como o satanás quando esfrega o olho.

                        Cresolino chegou na sala de audiência com aquela sensação de gato que vê Mastim Napolitano. De um lado da mesa uma Minervina ciente dos seus direitos, com Cresó Júnior no colo. Na cabeceira um Godofredo empertigado, sem tempo a perder. Foi direto ao assunto, ouviu a requerente que contou toda sua história sentimental com Quero-Quero até ele fazer bunda de ema e desaparecer ao saber da reação adversa do remédio em gel que Cresolino lhe aplicara: um bucho. Godofredo, então, voltou-se para o acusado e começou o cerca-lourenço. Avisou logo que havia já o depoimento de mais de vinte testemunhas sobre a vida comum deles dois. Perguntou-lhe se  a conhecia, ele não pode negar: sim. Quis saber se tiveram um relacionamento, o jeito foi confirmar, já que era público. O juiz, então, perguntou se ele confirmava a paternidade do rebento. O comerciante desconversou: podia ser, mas como ter certeza? Acusou que Minervina, na Farmácia , passava remédios e unguentos não só para ele, mas para muitos outros clientes, bastava pagar um pouco acima do preço de tabela. Godofredo, então, embrabeceu.

                        -- Você teve ou não teve relação sexual com essa mulher, rapaz?

                        Um Cresolino acuado, trêmulo, balbuciou:

                        --- Tive, tive, seu juiz ! Mas eu juro, pela alma da mãe dela,  eu tava lombrado, foi sem querer!

                         Godofredo, voltou-se para o escrivão e lavrou a sentença. Escreva aí: “ O meliante fica sentenciado a pagar uma pensão mensal de dois salários mínimos ao menino Cresó Júnior  e de três salários mínimos para D. Minervina, registrar o rebento em cartório como seu filho legítimo, e,  desta vez: querendo ou não querendo ! E mais: pode continuar tomando seus ligantes: você vai precisar !

Crato, 27/04/2023

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Desobriga

 

 

                              


Alvoroço ! O arruado pretensiosamente se chamava Vila  Alegria e estava fincado na zona rural , umas duas léguas para lá  de Matozinho. Eram   vinte casinhas, a maior parte de taipa, perfiladas em formato de rua. Numa das extremidades,  uma Capelinha, de uma torre só,  sob a proteção de São Roque, preenchida por uns trinta banquinhos comprados em Cabrobó. Uma única  se sobressaía, construída de tijolo e coberta de telha: a residência de Zé Bernardo , D. Colatina e de seus nove filhos: uma escadinha que ia do menorzinho ainda de braço até à primogênita, Florzinha, de dez aninhos. O arruado tinha o nome de Alegria, mas, de tão pacato, talvez merecesse um outro epíteto: Vila da Paz. Aquele dia, no entanto, quebrara a rotina de mais de cinquenta anos. O povo estava afogueado como se saísse do Metrô de São Paulo. Uma agonia danada, parece que ia tirar a mãe da forca.

                        A razão de tanto vexame? Os pouco mais de cem viventes dali receberam a notícia de que Dom Pergentino Gründ, o bispo da capital, iria visitá-los naquela páscoa e fazer uma desobriga. A novidade chegou através do Padre Arcelino, o pároco de Matozinho. A máxima autoridade eclesiástica resolveu não visitar apenas a cidade, mas escolheu um pequeno distrito e a Vila da Alegria , talvez por conta do nome, foi a premiada. Desde que a notícia chegou naquelas brenhas, o povo não teve mais sossego. Dentro das parcas possibilidades, iniciaram uma verdadeira renovação: no vestiário, na cal das paredes, nos potes e canecos , nos borzeguins. A casa de Zé Bernardo e Colatina foi , por unanimidade, apontada como o salão de eventos para o almoço das autoridades. Aquilo trouxe uma responsabilidade a mais na vida até então tranquila do casal. À medida que o prazo se esvaía, a ansiedade se viu multiplicada. Providências se fizeram necessárias, além da dos outros viventes comuns da Alegria. Colatina  comprou uma mesa de jantar maior, uma colcha de frivolité bonita para cobri-la e separou dez capões cevados para o almoço. No dia anterior, no entanto, descobriu uma falha imperdoável. Esquecera a toalha para colocar junto à bacia de lavagem das mãos. Zé Bernardo teve que correr às pressas para Matozinho e tomar emprestada uma bordada e bonita, de uma comadre remediada . Reuniu, depois,  toda a récua de filhos e , como numa Ordem do Dia, passou as instruções,um verdadeiro Código de Posturas,  para o comportamento no dia seguinte: nada de barulheira nem de danação; só almoçariam quando as autoridades terminassem; não era para ficar entrançando dentro de casa e, pedagogicamente, mostrou um cipó de mufumbo: qualquer estripulia, quando os padres forem embora, vocês vão conversar com esse cardeal aqui. E,  principalmente, lembrou:  não era para dar a entender que a toalha de enxugar as mãos foi emprestada, é pisa certa !

                        A Vila da Alegria, finalmente, fez jus ao nome. As ruas se encheram de gente das redondezas. D. Pergentino e o Padre Arcelino quase não acabam as confissões: uma fila maior que a do Bolsa Família. Dizem em Matozinho que à tardinha quando o bispo terminou as confissões gigantescas, se espreguiçou num canto da rua e sussurrou: Ô lugarzinho pra ter ladrão de bode! Vôte!

                        O almoço na casa dos Bernardo ocorreu tudo nos conformes. Apenas um contratempo. Enquanto as autoridades aguardavam o capão à cabidela, Lilico, o filho de cinco anos, ficou o tempo todo agarrado com a toalha, olhando, pesquisando, amaciando. Parecia sagui no visgo.  Nem ligou para os olhos de Colatina que o fitavam com promessa de ajuste posterior. Nisso, uma Florzinha preocupada com o desenlace, como primogênita, correu, empurrou Lilico de lá aos berros:

                        --- Saia daí, saia, seu teimoso! Tu, com esse chamego, vai terminar descobrindo pro povo que essa toalha foi emprestada !

 

Crato, 19/04/23

sexta-feira, 14 de abril de 2023

A Escola de Herodes

 

                                                O Massacre dos Inocentes - P. Rubens


                                                     J. Flávio Vieira

 

Então Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se muito, e mandou matar

todos os meninos que havia em Belém, e em todos os seus contornos, de dois anos para baixo,

segundo o tempo que diligentemente inquirira dos magos”

 Mateus 2:16

                               Voltaram os tempos bíblicos? Desde 1999 quando aconteceu a tragédia de Columbine, segundo o jornal Washington  Post, 377 ataques a estudantes em escolas aconteceram nos EUA . A partir daí, os atentados só têm aumentado. Apenas no ano passado foram 47: uma média de um por semana.  Neste 2023, os americanos já computam 131 tiroteios em massa , três atentados a cada dois dias. Mais de dez mil pessoas pereceram varados por balas  e, entre crianças de até 11 anos,  houve 59 mortes e 130 feridos. Entre adolescentes foram abatidos  344 e 827 ficaram lesionados. Isto apenas nestes três primeiros meses de 2023. Uma carnificina que faria Herodes pedir penico.

                        Abismados, vimos, rápido, a tragédia chegar nas nossas portas. É que as boas ações andam montadas em tartaruga e a maldade trafega em supersônicos.  Desde setembro de 2022, até hoje, já somamos cinco atentados similares aqui no Brasil. Nos últimos doze anos já são trinta e sete perdas. O último atentado aconteceu numa creche em Santa Catarina, agora em abril,  com o trucidamento de pelo menos quatro garotos. Para quem acreditava que catástrofes assim só aconteciam com bacanas e estrangeiros, ontem um aluno, armado com uma machadinha, invadiu uma escola pública no Sítio Carás, em Farias Brito e feriu duas meninas de nove anos. A delinquência já não respeita fronteiras geográficas, econômicas, sociais. E, mais uma vez são alunos das Escolas públicas, os mais pobres, os alvos preferenciais.  

                        A pergunta que nos chicoteia a mente, nestes momentos, é a mesma: Que diabos está acontecendo com a humanidade? Como imaginar que a raça humana, que se diz racional, seja capaz de agredir de morte crianças que nem conhece? É a reprise da Banalidade do Mal de Arendt ? Que tempos são esses? O que justifica a loucura reiterada, o holocausto agora à prestação? Como combater uma horda de insanos , de celerados que mata e trucida como se jogasse um videogame?  O que desencadeou essa avalanche de desvario ? A proliferação de armas ? A pouca espiritualidade e empatia das atuais gerações? A desestruturação das amarras familiares ? O torvelinho do consumo como chave da felicidade a qualquer preço? A transferência tecnológica da juventude para um mundo virtual paralelo, um Matrix onde tudo é permitido? A revolta dos excluídos social, econômica e psicologicamente? Como combater um inimigo que se não conhece ?

                        O certo é que a esfinge olha os ponteiros do relógio enquanto aguarda que a decifremos. O mal ataca nosso calcanhar de Aquiles, as crianças, as janelas do futuro. Dá para ver os dentes vorazes da esfinge que lambe os beiços. Cuidemos !  Tic, Tac, Tic, Tac...

Crato, 13/04/23