sexta-feira, 25 de maio de 2018

Maneiro Pau





                                               Sinésio soube da novidade , na Praça da Sé, conversando com outros companheiros da terceira idade.  Reuniam-se ali , quase que diariamente, logo cedinho , que velho é bicho madrugador feito tetéu. Falavam, com entusiasmo, num tal de Forró do Chicote Mole . Juntava-se,  na Exposição, nos domingos, uma cambada de sobreviventes das duras batalhas da vida, para uma horazinha de lazer. Num mundo projetado para ser o paraíso da juventude e quando muito o purgatório dos experientes, aquela era uma notícia para lá de promissora. Sinésio aposentara-se , há uns cinco anos, com seus sessenta e lá vai pedrada. Fora coletor de impostos da prefeitura, antes que a modernidade trouxesse os computadores, a internet, o pagamento bancário por boleto. Enviuvou quando atravessava a quarta década. Dona Umbilina teve um AVC desses fulminantes que a fez ensebar o capim, em poucos dias. Os três filhos já tinham ganhado o mundo, naquele destino nômade típico do cearense, cujo mapa do estado se confunde com o Mapa-múndi. Foi tocando a vida conforme o prato lhe era servido.  Resolveu trocar o atacado do casamento pelo varejo das relações. Todo mês, quando ia à agência bancária pegar o minguado dinheirinho do aposento, dava de cara com o mesmo caixa que o olhava com aquela cara de “ainda vivo?” , de “desse jeito esse velhote quebra a previdência”.  Seu maior lazer era sentar-se com os ex-combatentes e trocar em miúdo as últimas fofocas cabeludas da cidade, discutir as questões mais difíceis da história da filosofia como religião, futebol e política, sabendo que aquilo dava panos para mangas e que não havia qualquer possibilidade de consenso no próximo milênio. Unia a todos uma espécie de dor e desencanto comuns, todos, no fundo, embora não reconhecessem, como que se queixavam de uma ou outra jogada meio troncha  realizada no grande tabuleiro da vida.  
                                    O Forró do Chicote Mole tocou Sinésio de maneira muito peculiar. Fora um dançarino pé-de-ouro em tempos de Jovem Guarda, vivia antenado com a programação dos bailes, dos convívios  e das tertúlias. A atração entre ele o D. Umbilina havia surgido justamente nas festinhas. O imã entre os dois foi, desde sempre, muito mais musical e coreográfico do que amoroso. Depois do casamento, claro, com as atribulações da vida, de lado a lado, eles terminaram por se afastar das badalações. Diziam sempre que dançavam todos os dias, mas agora já na segunda acepção da palavra.
                                    Agora, no entanto, já não havia freio de mão na sua vida, só embreagem e acelerador. Por que não voltar à ativa e botar o esqueleto para sacolejar ? Comprou uma roupa nova, um perfume da Avon, emperiquitou-se todo e, no domingo, noitinha, partiu para o famoso Forró. Antes de entrar no campo de batalha , tomou umas talagadas numas pequenas barracas ao redor do parque. Esperou que as orelhas esquentassem e só então adentrou no grande pátio. Ali formigava de gente, sentiu como se todos ali estivessem ávidos, armando usas armas já meio enferrujadas, com as últimas balas da cartucheira. Sinésio começou a soltar-se no salão e não lhe falaram parceiras: o pé-de-ouro ressuscitara. Dançavam todos pelo mero prazer lúdico do baile, já não existiam muitas restrições no agarrado e nem aquela ânsia louca, dos velhos tempos,  do sarro, do esfrega-esfrega. Em nenhum momento percebeu a ressureição do vulcão aparentemente extinto, da retificação do engenho  de fogo morto. Sabia que erupções eram sempre possíveis e que chegando um pouco de bagaço na boca da fornalha contava como certa a inflamação de materiais que já foram um dia facilmente comburentes. Pela primeira vez, dançava a dança pela dança, talvez, por isso mesmo, imaginou, o Forró tivesse aquela denominação de “Chicote Mole”.
                                    Entre as partes, enquanto o sanfoneiro arrancava dos dedos xotes, sambas e xaxados, Sinésio continuou o abastecimento nas cachaças dos barraqueiros. Aos poucos, animado, estava meio grogue e mais bonito e rico do que sempre fora. Talvez tenha sido a alegria, o charme e a riqueza proporcionados pela “Kariri com K” que fez dele se aproximar um anjo de criatura: Alta, longos cabelos, corpo recortado como as ladeiras do Belmonte. Montada num sapato de salto que mais parecia uma escada, aproximou-se leve, fogosa e sensual  e, do alto de seus vinte e poucos anos,  convidou Sinésio para  o salão. Atracaram-se e caíram na frenética “Escadaria”  , dançando miudinho.  O casal era um show a parte e, aos poucos, os pares que estavam ao lado, se foram afastando e virando plateia. Sinésio feliz, imaginou que aquilo acontecia por admiração e, também, por alguma inveja, dos outros velhotes não se conformando em vê-lo se transformar no pegador da festa.
                                    O que não condizia com o objetivo da festa terminou por acontecer. Excitado, Sinésio conduzia seu partner para as  partes mais escuras e isoladas do salão, o famoso lugar conhecido por “corrupio”. Viu-se com o poder alavancador dos velhos tempos, só que, em meio ao frenesi, começou a perceber uma força contrária, um vetor de igual força e intensidade, como que comprovando a segunda Lei de Newton, a da ação e reação. Meio desconfiado, pediu licença para ir ao banheiro, com a autoestima nas alturas. Enquanto tirava água do joelho, um velhote encostou-se no mictório ao lado e, de cara sisuda, perguntou se ele era agricultor. Sinésio negou e quis saber porque ele assim o imaginara. O velho, com cara de poucos amigos e ar reprovativo, deixou o enigma no ar:
                                    --- Pois é ! Vi logo que não era !   Comprando pepino,  como se fosse tomate !  Vivendo e aprendendo !
                                    Lançado ao ar  o enigma da esfinge, Sinésio nem tentou decifrá-lo. Saltou o muro quietinho e enfurnou-se  em casa por uma semana. Depois do silêncio obsequioso , tentou retornar à normalidade. Voltou, por fim, à rodinha da praça. Esperava que o enigma permanecesse indecifrável.  Mal apontou na extremidade do logradouro, o coro já entoou a musiquinha com o apelido que, a partir daquela data, o acompanharia por toda esta encarnação. Referia-se à luta de esgrima acontecida naquele domingo, em que Sinésio fora espetado sem pena.
“ Maneiro Pau !
Maneiro Pau !
Dê de lá que dou de cá
Maneiro Pau “

Recife, 25/Maio/ 2018

sexta-feira, 18 de maio de 2018

São Gualberto do Cuvioco


J. Flávio Vieira


                                               Existia uma regra geral típica de Matozinho. Proprietário de bar, que se prezasse, tinha que ser casca grossa. Nada de meter-se com mesuras excessivas, com muitos “com licenças”, com demasiados “por favor”. Bar que que merecesse essa denominação não tinha muitos querequequés que aquilo não era salão de beleza, não sinhô ! Botequim tradicional possuía não um dono, mas um  general por trás do balcão. Havia que se manter a autoridade e a ordem no ambiente. Bêbado se meteu a besta com palavrório inapropriado tinha a boca fechada por muque. Coçou-se para pegar faca, já encontrava o dono de facão em punho; sacou de pistola,  levava cano de escopeta nos peitos, antes que pronunciasse qualquer baboseira. Aquilo era boteco e não cabaré! Cuspia logo o balconista, antes de jogar o primeiro pinguço engraçadinho de porta para fora. Bar com estes estatutos , ganhava confiança da freguesia e já era meio caminho andado para o sucesso.
                                   Destoava dessa regra pétrea o famoso “Cuvioco do Gualberto”. Fazia-se um estabelecimento mirrado, de duas portas, encravado em uma das ruelas , sem saída, próximo à Praça da Matriz. Talvez porque fosse uma instituição flex que envolvia mais de uma atividade comercial. Um misto de bar, de confeitaria, padaria, tabacaria. O Gualberto , em pauta, era um sessentão, comprido como um dia de fome, mas de trato fácil, voz mansa e pausada, educado. Nunca o flagraram com rispidezes , com altear de voz. Tirante isso, tinha lá suas idiossincrasias. Não era de levar, também, desaforo para casa e, claro, precisava, à sua maneira, manter a boa convivência e a boa reputação do seu Cuvioco. Uma das especialidades da casa eram os doces: banana em rodelas, coco, leite cremoso e talhado. Ficavam postados sob o balcão, em grandes aribés, envolto por um vidro grosso, como chamariz para os que transitavam pela calçada. Eram preparados pelas mãos de fada da esposa do Gualberto: D. Mariquinha.
                                   Para os padrões matozenses, nosso taberneiro era um gentleman, um diplomata, mais fino que assovio de sagui gay. Claro que as regras diplomáticas do Itamaraty sofreram lá seus reajustes até chegarem a Matozinho. Dia desses,  “Rosenildo Trapaiada”, um desses malas da região, o típico malaca que não paga as contas antigas e põe as novas em incubadora para amadurecerem, pediu uma tirrinta de doce de coco a Gualberto. Ao terminar, solicitou a conta e , ao saber que se tratara de dois reais, sacou uma nota de cem do bolso, já contando com a possibilidade de não ter troco disponível e recair na inevitável “pendura”. Gualberto, com uma calma beneditina, perguntou ao cliente se não tinha dinheiro mais trocado. Claro que não tinha!
                        --- Tenho não, rapaz ! Se vire ! Dê um jeito! Se quiser posso passar depois para acertar, já que não tem troco.
                        Como se pegasse um cálice sagrado na ceia larga, Gualberto rasgou a nota de cem reais no meio e entregou um pedaço à “Trapaida”, sem se alterar.
                        --- Tem problema , não ! Você é amigo nosso, de toda confiança. Leve esse pedaço, quando você trouxer os dois reais, devolvo o outro. Você cola, Rosenildo,  e vai ficar como novo ! Se avexe, não !
                        De outra feita, entrou no “Cuvioco”, em dia de feira, um matuto meio apressado. Olhou de cima do balcão de vidro as bacias de doce , logo abaixo e , com o dedo, ficou tamborilando em cima do vidro, apontando o de sua escolha ,meio exasperado.
                        --- Toc, toc, toc... Bote esse aqui ! Bote esse aqui ! Toc, toc, toc...
                        Gualberto, sossegado, nem bateu a passarinha. Meteu a mão, pegou a colher de pau dentro da panela  e colocou o doce de coco em cima do vidro do balcão, exatamente no local onde o matuto apontava.
                        --- Pronto, meu amigo ! Você manda ! Bom apetite !
                        A história, no entanto, que levou o povo de Matozinho a admirá-lo, ainda mais, pelas finesse e educação aconteceu pertinho do São João. Antonildo Jurubeba era um freguês assíduo do “Cuvioco”. Tinha apenas uma perna, a outra perdera num desastre de trem. Andava com ajuda de muletas.  Tomava lá suas talagadas, mas frequentava o ambiente mais pelo papo, pelo debulhar da conversa, do que propriamente pelas meropeias. Tinha o hábito de sentar em um tamborete grande do bar  e recostar as costas na parede, equilibrando-se apenas nas duas pernas traseiras do  banco. Punha-se, então,   a balançar-se, num leve movimento de vai e vem, impulsionado pelo único pé que lhe restara. Gualberto incomodava-se com aquilo, mas , do alto da sua diplomacia, não reclamava de Antonildo, parte por conta do defeito, parte porque temia perder a freguesia. Naquele dia, porém, Gualberto parece ter vindo trabalhar depois de chute  nos quibas. Jurubeba chegou como sempre, pediu um oito de fubuia e entornou como se fosse água benta. Encostou as muletas na parede e tomou assento no seu tamborete, elevando os dois pés dianteiros do bicho  e descansando o lombo na parede de trás.
                                   Nisso, o depósito de fleugma do proprietário do “Cuvioco” parece ter esvaziado.   Sem se alterar, sem mostrar quaisquer sintomas de exasperação, Gualberto pegou um serrote, em uma das prateleiras, ajoelhou-se e começou a serrar as pernas dianteiras e suspensas  do tamborete de  Antonildo. O homem deu um salto danado.
                                   --- Oxe ! Tá ficando doido, Gualberto ! Serrando os pés do banco ? Tu num tem o que fazer, não ?
                                   O dono do bar, tranquilo, voz leve e macia, com aquela paciência quase que budista,  explicou :
                                   --- Nada, não ! Eu notei, Antonildo, que banco pra você só carece ter duas pernas !  Vou cortar essas duas aqui da frente, só serve pra atrapalhar ! Vai vê, o doutor cortou essa outra sua, por essa mesma causa !
                                   Por essas e por tantas outras, os matozenses já pensam em dar entrada no processo de canonização do nosso São Gualberto do Cuvioco.

Crato, 18/05/18

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Despojos de Guerra


Cenildo acordou cedinho. Aonde deixara guardado aquele sono interminável da juventude? De hábitos noctívagos, sempre ralhara com aquele necessidade de levantar cedo e partir para o trabalho na repartição onde enfrentou, por muitos anos, a pouca flexibilidade do Relógio de Ponto,  sempre o esperando com aquela cara de poucos amigos. Agora , um desses contrassensos da vida, quando vestira o pijama de aposentado, e as manhãs se ofereciam lúbricas para o seu deleite, Morfeu , como um amante temeroso, saltava pela janela do quarta ainda de madrugadinha.
                                   Sem muito ter o que fazer com os lençóis, Cenildo ganhou a rua aos primeiros raios do sol. Peitou com os primitivos espreguiçares da cidade ainda insone e com seus personagens primais: o velho que trazia o pão ainda quente da padaria; operários que corriam para o trabalho,  como ele um dia o fizera; o primeiro bêbado da manhã e o último ébrio da noite anterior; os comerciantes que abriam as bocas sedentas de seus armarinhos. Para ele, aquele era um dia especial. Rumou até a repartição da prefeitura para tirar um diploma inusitado: A Carteira de Idoso. Pois é, era preciso comprovar, com documento , sua condição de senilidade para poder auferir os enormes benefícios que a velhice pode proporcionar. De posse da carteirinha, teria direito a estacionamento gratuito e com vagas especiais, prioridade em filas, abatimento em passagens. Cenildo seria , por fim, um velho documentado, assumido  e regulamentado. Perderia, claro, a partir daquele momento, a licença poética de mentir a idade, de usar subterfúgios para parecer mais jovem:  pintar o cabelo e a barba, aplicar o Botox,  usar roupas adolescentes, abastecer o som do carro com funks, breganejos e forrós estridentes da hora.  Demorara um pouco a tomar a decisão drástica, esperou lá uns cinco anos, mas , por fim, entendeu que já não era possível deter a inundação com uma caquera de passarinho: perdido por cem, perdido por mil ! Meio a contragosto, chegou no departamento municipal, ainda no romper da aurora. Na fila, já lá se empertigavam uns dez velhotes, insones como ele,  e com aquela cara de quem entornou um suposto copo de leite condensado e só então descobriu que se tratava de chá de boldo. Depois de algumas horas de espera, chegou por fim ao pé do balcão. Aguardava-o um barnabé de cenho franzido que maquinalmente preencheu   o formulário e anexou os documentos que Cenildo lhe passou. Sem levantar a cabeça, informou ao solicitante que voltasse com uma semana para pegar a carteirinha.
                                   Cenildo retornou no prazo combinado. Depois da aposentadoria andava meio a esmo, à deriva, perdido como  cachorro que cai de caminhão de mudança. Tanto tempo na rua, a casa lhe funcionava como simples guarida noturna. Não entendia do seu funcionamento, do fluxo diário e contínuo do seu pulsar. Apenas a cama e a TV lhe pareciam familiares. Depois de devidamente emplacado como idoso, Cenildo acrescentou algumas dúvidas mais ao seu estranhamento. A carteirinha como que lhe deu os superpoderes do Homem Invisível. Trafegava pelas ruas como um espectro. Em casa, quase que passava desapercebido. Deslizava em meio às multidões na rua, como uma agulha que tentasse, loucamente, tecer uma colcha de retalhos com seu fio invisível.  Muitas vezes assaltou-o a sensação de que já tinha feito a passagem e estava perambulando por este mundo, como alma penada. A única prova de que isto não acontecera é que, a cada final de mês, como por encanto , recobrava , novamente, seu estado sólido e concreto. A partir do dia vinte e oito, os filhos e a esposa lhe sorriam, o padeiro o cumprimentava   com certa galhardia, o dono da bodega lhe fazia mesuras, alguns amigos das antigas acervavam-se e puxavam conversa. A  visibilidade, no entanto, durava pouco: por volta do dia dez, retornava, aos poucos,  ao estado gasoso, à fluidez etérea e transparente . Era como se hibernasse.
                                   Cenildo tomou nas mãos a carteirinha mágica. Pareceu desvendar, em meio aos traços vetustos, a silhueta de um menino.  Onde estava ele agora ? Investira-se da mesma invisibilidade do velho que lhe embotava as feições ? Do fundo do peito,  teve a certeza de que se morresse, voltaria , contraste dos contrastes, a ser vívido, palpável e real como já fora um dia, ao menos enquanto durasse  os trâmites do inventário, da divisão de bens, da rapinagem final dos seus despojos de guerra.

Crato, 11/05/2018