sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Fossa Séptica

 

 

J. Flávio Vieira

 

“Os homens quando não são forçados a lutar

 por necessidade, lutam por ambição.”
                                                                            Nicolau Maquiavel

 

            Em pleno Século XXI, quando imaginávamos que as escaramuças agora se resolveriam nos campos da diplomacia , eis que vemos, novamente, o mundo conflagrado. As imagens terríveis  da Ucrania em ruinas e chamas foram , rapidamente esquecidas, no conflito entre Israel e a Palestina. A selvageria de hoje em nada fica a dever  à carnificina dos tempos medievais. E a regra, como disse Sartre, é imutável: os ricos planejam as guerras mas são os pobres que são dizimados. As chacinas de lado a lado :  jovens sendo assassinados em uma Rave e mais de mil crianças massacradas na Faixa de Gaza , velhos sequestrados, bombas seguidas destruindo prédios e hospitais do lado palestino ( agora as imagens se sucedem a vivo e a cores) nos deixam temerosos do futuro do planeta. Se se reparar direitinho não há tanta diferença das imagens dos palestinos famintos, feridos , sem água e energia, daquelas que alguns anos atrás presenciamos estarrecidos nos Campos de Concentração e Extermínio ou no Gueto de Varsóvia. A violência na guerra não tem lado, cor, partido político, etnia, religião. Basta observar direitinho que ali, na Palestina, se digladiam e se matam reciprocamente, fiéis das duas religiões monoteístas mais importantes da humanidade:  judeus e Islâmicos. Seus livros sagrados (  o Torá e a Alcorão) pregam todos a harmonia, a paz, a tolerância, o amor entre os homens.  E ali, também, nasceu Jesus, um outro profeta do Cristianismo, que veio trazer a Boa Nova. O Novo Testamento  é uma cascata de lições de empatia, de compreensão e convivência pacífica entre irmãos. Os livros sagrados foram rapidamente incinerados. Os Cavaleiros do Apocalipse estão de volta.

                        A opinião pública, jogada de lado a lado, rapidamente toma partido nesta disputa quase que impossível, historicamente, de se entender. Numa extremidade o povo judeu, perseguido historicamente desde Moisés, escravizado, vagando no deserto sem pouso certo, reescravizado pelos Babilônios e Romanos e depois caçados como fera bruta pela Inquisição. Depois  chacinados nos Campos de Extermínio na II Guerra, quando mais de seis milhões foram sistematicamente trucidados. Do outro lado o pobre povo palestino que teve seu território dividido e, depois, guerra após guerra, metodicamente usurpado. Hoje se espreme, como sardinha na lata, num território mínimo de 10  por 30 Km , onde mais de dois milhões de viventes tentam sobreviver. No meio da conflagração múltiplos interesses envolvidos geopolíticos e econômicos: os países ricos, o Irã, o Líbano, o Egito, a Síria... E o temor crescente da disseminação do caos, uma nova guerra mundial , só que agora com risco de ser a última por conta do arsenal nuclear.

                        A ONU não chega a um consenso quanto à necessidade de intervir, criando a possibilidade de amparo aos civis encurralados entre o Hamas e Israel. Pede uma guerra limpa o que significa mais ou menos solicitar que brote água bidestilada de uma fossa séptica. Um conflito que remonta a Abraão, claro, não se consegue apaziguar com miolo de pote. É preciso, no entanto, impedir um genocídio. Israel, atacado, tem todo o direito legal de se defender. Necessário, no entanto, compreender que seu agressor é o Hamas e a ele deve dirigir sua resposta bélica. As crianças, os idosos, as mães e avós não são soldados, mas vítimas, estão pagando um preço exorbitante por uma mercadoria que não ambicionaram,  não encomendaram e nem receberam.

Crato, 27 de Outubro de 2023

                         

                       

 

 

                       

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O Velho do Espelho

 

O VELHO DO BANHEIRO

                                                                               J. Flávio Vieira

“Na infância... Bastava sol lá fora e o resto se resolvia”

Fabrício Carpinejar

 

                               Toda manhã, despertado com aquele gosto de cabo de guarda-chuva na goela, olho para o espelho e chego a não reconhecer a imagem nele refletida. Remeto-me, imediatamente, a Rubem Braga: “Se o espelho refletisse bem, não refletiria certas imagens...” Do outro lado me olha uma figura estranha: cabelos enevoados e  em desalinho; rosto atravessado por sulcos profundos, como os açudes secos do sertão; olhos com o brilho sugado por algum buraco negro  e, por trás,  uma alma cheia de canyons  esculpidos tela talha do tempo.  Quem diabos é esse senhor que já não é senhor dos próprios momentos e vontades ?  Como ele passou a morar, sem que eu ao menos o compreendesse, na lâmina do espelho  ? Por alguns ângulos aparenta traços familiares: um sorriso leve como voo de colibri que um dia saltou dos lábios do meu avô; um olhar profundo e inquisitório de madre superiora que algumas vezes vazava da fisionomia firme da minha avó; um discreto esgar do canto superior do lábio , nos momentos de tensão, que escapava do rosto da minha bisavó Madrinha Dona. No mais, aquele velho  surge perfeitamente inusitado, um invasor como a “Loura do Banheiro” tão temida pelos meninos do meu tempo. Que forças sobrenaturais permitiram que se escondesse logo atrás do cristal do espelho ?

                        Custa a acreditar que , de alguma maneira, aquele senhor idoso aprisiona com sua carapaça um menino. É como se tratasse de uma gestação ao contrário. A criança não se desenvolve naquele que poderia ser um novo útero, para dar-se uma nova luz. O bebê vê-se enclausurado impedido de nascer e ganhar o mundo. É como um retorno à barriga primal para um desnascer. Sua incansável mobilidade será pouco a pouco levada à estática pela ferrugem dos dias. Sua poética inocência será turvada pela lava incandescente e antipoética do cotidiano. A criatividade e bulício serão embotados pela sucessão cansativa das linhas de montagem.  Num determinado instante , o bebê retroagirá , em sua contra gestação, até alcançar a fase de óvulo.  Neste fatídico dia, a imagem do fundo do espelho passará a ser real, já não mais existirá o menino, apenas o velho com sua casmurrice e seus achaques. Lá estará ele sozinho de  boca mole  balbuciando a contagem regressiva do big-bang.

                        Por enquanto, o velhinho continua me parecendo enigmático e misterioso do outro lado do espelho. Mas vou aprendendo a conviver com ele, um dia há de seu meu avatar. O menino ainda está vivinho aqui e não percebo  como se aprisionado nos seus grilhões. Ainda agora o vi abrir a porta e sair ansioso procurando pelos cantos onde possam ter deixado o presentinho dos dias das crianças.

Crato, 12 de Outubro de 2023