sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Mano Virabrequim


Recebi, recentemente, carta de Matozinho endereçada a mim pelo velho Senevaldo Jurubeba, um dos últimos amigos que ainda mantém um certo contato comigo, depois que me mandei daquelas brenhas. Senevaldo é desses que ainda  se comunicam por cartas e telegramas com o resto do mundo e -- pasmem! -- acreditam na celeridade dos Correios & Telégrafos. A mal traçada me chegou com mais de um mês da sua postagem e, imagino, os motivos elencados possivelmente hão de ter se agravado desde então.
                           
Jurubeba , do alto dos seus oitenta e lá vai pedrada, sempre se mostrou introspectivo, cheio de regras e rituais. Dificilmente botava a cara para além da porta ou da janela da casa. Trabalhou por algum tempo na prefeitura, até descobrir-se totalmente inapto para a função burocrática em que se viu investido: contador chefe do setor financeiro. Senevaldo era um ás naquela função: metódico, aprendera todos os mistérios do Deve-Haver como funcionário, por muitos anos, de “As Casas Pernambucanas”. O grande problema é que o homem era direito demais para a função, completamente inadequado para fechar balanços municipais, plenos de desfalques e falcatruas e com necessidade, sempre, não de contabilistas mas de mandrakes de plantão. Jurubeba , rápido, foi colocado no olho da rua que já não tinha óculos, nem armação, nem lente de contato , surrupiados pelos políticos locais.
                            Senevaldo, então, me escreve para reclamar da nova modalidade esportiva em pleno curso na pequena Matozinho: a caça ao voto. Candidatos a deputado e senador-- acumpliciados com vereadores, prefeitos, babões--  invadiram a vila, como formiga de anjo em bolo mole. Arrancam crianças catarrentas dos braços das mães; abraçam efusivamente feirantes no meio da feira; vertem lágrimas, quase desidratando em velórios; comem sarapatel, panelada, buchada no mercado, sem engulhar e ainda lambendo os beiços; visitam os pobres nas suas casinhas de taipa , posando de íntimos da família. Distribuem sorrisos  mal ensaiados  para todas as pétalas das Rosas dos Ventos. Numa ânsia mal contida, inauguram obras que sequer ergueram-se do chão: arremedos de escolas, de creches, de estradas, de pracinhas.  Senevaldo reclama dessa epidemia de simpatia e de uma outra praga contagiosa: a proliferação de promessas. Candidatos prometem , sem nenhum pejo, resolver as secas do Nordeste; curar coceira de macaco; perfumar catinga de fiofó; fazer nevar em Picos em outubro; convencer pastor a dispensar o dízimo.
                            Semana passada, narra nosso Jurubeba, aconteceu  um fato que extrapolou toda a perspectiva esperada para a hipocrisia típica dessa época. E esse , em verdade, seria o motivo de nosso contador ter-me escrito a missiva, solicitando-me o abrigasse na minha casa até outubro, quando os políticos , por fim, voltarão, novamente, para as suas tocas, deixando o povo em paz.
                            Na rua próximo ao cemitério da cidade, de repente, conta Senevaldo, um candidato a deputado viu um grande amontoado de gente, seguindo em procissão, avenida abaixo. Parecia, em fim de tarde, tratar-se de um cortejo fúnebre. A turma da frente, carregava, lado a lado, uma longa carga, pesada, que à distância parecia tratar-se de um caixão.  Rápido, o candidato Gonofrino Oliveira, também conhecido como “Gonô Taba-de-Fojo”,  pôs-se piedosamente no séquito, acompanhado por um bando de puxa-sacos, todos, cabisbaixos, remoendo, entredentes, palavras abafadas em feitio de preces. Gonô debulhava-se em lágrimas sentidas, como se houvesse perdido um familiar próximo. No fundo, o candidato percebia que o velório e o enterro são os momentos mais importantes para se explorar o sentimento alheio. De repente, viram o cortejo adentrar um galpão grande que não era, com certeza, o cemitério. Imaginaram que talvez se tratasse da visita última a alguém querido. Mantiveram-se chorosos e balbuciantes. Aos poucos, notaram que demorava muito o retorno do cortejo e que, inclusive, uma parte já tinha se dispersado. Gonô caprichou na enxurrada de lágrimas e se aproximou, então, do caixão. Parte para entender a causa da demora, parte para , por fim, se abraçar com os familiares mais chegados e fazer seu teatro e sua média. Só então percebeu a enrascada em que tinha se metido. Aquilo não era o cemitério, mas uma oficina e, no chão, ao invés do caixão com o falecido, estava um pesado motor de caminhão que havia sido trazido , a muque, com ajuda de  muito gente,  para conserto. O Expedito, o dono da oficina, sem entender, vendo o choro copioso de Gonô, que já inundava toda camisa, quis saber a parte dele naquilo.
                   --- Seu Gonô, o senhor tá tão choroso, oxente ! O caminhão é seu ? O que aconteceu !
                   Gonô, pego de surpreso, enxugou um pouco as lágrimas, mas não perdeu a pose.
                   --- Snif ! Snif ! É que esse virabrequim, Expedito, era mesmo que ser meu irmão !
                  
Crato,31/08/2018

sábado, 25 de agosto de 2018

Sabath




                                               A pracinha encarnava ,naquele domingo,  seu  destino sabático. Os meninos corriam em volta,  iluminando com sua alegria  a fonte que um dia já fora luminosa. Casais conversavam, despreocupadamente, nos bancos espalhados em meio aos jardins que um dia já haviam florido. Velhos, em rodinhas  esparsas,  tricotavam sua infinita colcha de fofocas. Mulheres de meia idade transitavam com ar circunspecto, em busca dos templos,  com seu rosário de pedidos de proteção às divindades de sua devoção. No parquinho,  outros meninos revezavam-se na gangorra, nos escorregadores, nos tubos, nas casinhas com uma felicidade cristalina, transbordando das retinas. Nas barracas pessoas empanturravam-se de filhós, de sucos, de sandubas , de salgadinhos. Uma senhora vendia pipoca , um outro ambulante, bombons. O moço , em uma das extremidades da fonte, alugava carrinhos e motinhas para as crianças nelas montarem seus sorrisos. Outros vendedores ofereciam balões e pequenos brinquedos com a orientação infalível para a gurizada : “Chora que mamãe compra!”
                                    Ao redor da pracinha,  as lanchonetes estavam prenhes de bocas famintas , em busca do maná infalível dos domingos, dia também sabático dos afazeres domésticos: as pizzas. Todos pareciam celebrar não a sagração do fim de semana, mas a perspectiva depressiva da segunda que prometia reencaixar  as engrenagens em moto-contínuo das suas vidas repetitivas e comezinhas, em copiar-colar. Nas ruas laterais, carros passavam céleres,  carregando caras fechadas que previam a continuação do trabalho de Sísifo.
                                    A igreja da sé , defronte,  já tinha empreendido seu repicar de sinos, um álacre alerta aos fiéis. Naquele dia, quebrando suas milenares tradições, saíra do templo para ver o mundo lá fora. O sacerdote, nas festividades da padroeira, celebrava o culto num grande palco, para uma  comitiva de beatos, que, com ar algo distante, regateava os loteamentos do paraíso, balbuciando, em mantra , orações e preces quase que maquinalmente. Ao redor do palco, religiosos acertavam os últimos preparativos para a quermesse que devia se iniciar logo ao final da missa.
                                    De repente, alguns estampidos secos. Sobre um dos bancos da pracinha o corpo ensanguentado e in extremis de uma mocinha. Alguns novos componentes acrescentam-se ao cenário: a polícia vasculhando casas vizinhas em busca do homicida, por fim preso. Uma criança chorando inconsolavelmente. Uma iluminação especial para a tragédia: incontáveis luzes de celulares filmando, com um indisfarçado ar mesclado de revolta e de satisfação, a prisão do assassino e  o corpo já sem vida da mocinha no banco, que esperaria horas pela vinda da cavalaria , para o gáudio das redes sociais.
                                    Ao redor, o mundo nada se modificou. Os meninos continuaram a brincar, as pizzas desciam calmamente de goela abaixo, as conversas, nas rodinhas, apenas ganharam um assunto a mais. A missa continuou seu rito impassível, com os fiéis pedindo bênçãos, desejando “a paz de Cristo”, prometendo cristãmente solidariedade, amor e confraternização entre os irmãos. Um corpo jazia exangue sobre o banco. Ao derredor, as almas afogaram-se num plácido e impassível oceano sem marolas ,  o pantanoso  Mar da  Normalidade.

Crato, 25/08/2018     

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

É PRA TU , LUDU !


                                        De onde vem a tradição, profundamente matozense, de se pagar promessa de santo com dois litros de cana  e um saco de umbu ?
                                               Há versões e mais versões deste costume, vamos à mais aceita. A história de Matozinho confundia-se , umbilicalmente, com a do catolicismo na vila. Rezava a lenda que um missionário, que se dirigia à capital, perdera o rumo e dera nas margens do Paranaporanga há muitos e muitos anos . A hostilidade da seca, à época, fez com que permanecesse ali por algumas semanas por conta de cacimbas abertas à margem do rio de onde  brotava uma água um pouco salobra , mas potável.  Consta que ali tivera algumas visões , quando tirava uma madorna debaixo de uma juazeiro frondoso, o certo é que, alguns meses depois da partida, resolveu retornar e ali se estabelecer. Aos poucos, atraídos pelas missas que a celebrar próximo a um grande cruzeiro que fincou às margens do rio, começou-se a formar um arruado. Era a futura Vila de Matozinho que brotava gravitando em torno da fé cristã.
                                  
Depois da chegada daquele primeiro missionário, muitos e muitos outros se sucederam, principalmente depois de se ter erguido a capelinha de Nossa Senhora dos Desafogados. Eram quase todos padres bem tradicionais, guardiões intransigentes da moral e dos bons costumes. Apontavam as artimanhas  do capiroto, sempre pronto a desviar as pessoas da boa prática religiosa, pensando em arregimentar almas para as caldeiras esfumaçantes do inferno.  Claro que naquelas brenhas, longe da rédea curta  dos bispos  e da santa inquisição, vez por outra terminavam por tropeçar nos bueiros que tanto apontavam no caminho dos fiéis. Mantinham , no entanto, uma postura externa impecável, cuspiam ordens e sentenças, como se o simples exercício do seu sacerdócio já lhes trouxesse  um salvo conduto para o paraíso.
                                   Houve, no entanto, um desses padres que destoava totalmente do padrão estabelecido até então. Chamava-se Ludovico. Era um varapau de quase dois metros de altura, magricela, elétrico e meio alvoroçado. Falava como se as palavras fossem lançadas de sua boca como de um cano de pistola. Com ele não se percebia aquela hipocrisia tão típica dos velhos sacerdotes que o antecederam, adeptos do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Estabeleceu , publicamente, um casamento público e notório,  com uma Irmã de Maria,  e com ela vivia, abertamente : o casal tinha quatro filhos. Se interrogado sobre o caso respondia, claramente, que a invenção do celibato tinha sido mera convenção do catolicismo e aquilo não tinha nenhuma sustentação nos livros sagrados: o primeiro papa, Pedro, não fora casado?  Por outro lado, era um ferrenho ativista na política local, colocando-se, frequentemente, contra os prefeitos e vereadores que, como sempre, não tinham qualquer sensibilidade social e utilizavam seus bolsos como se fossem os cofres públicos. Gostava de festinhas, de um sueca em final de tarde e um pé de ouro nos sambas de pé de serra.  O padre era um copo fenomenal e tinha o hábito de degustar a cachaça, em longas talagadas, tirando o gosto com umbu. Abençoava as relações gays , para o espanto dos poderosos da vila, lembrando que qualquer forma de amor é válida e bem melhor que o livre tráfico de ódio tão presente na sociedade.  Chegou a sofrer ameaças de morte, mas não se desviou um milímetro das suas convicções. Ludovico, por outro, levava uma vida modesta e franciscana, acolhia os mais pobres , os humildes e os perseguidos , ajudava-os nas suas necessidades mais prementes, até parecia que acabara de retornar da Montanha onde ouvira o famoso sermão. Talvez fosse essa transparência que o tornasse tão querido, respeitado  e amado pelo seu rebanho.
                                   Ludovico , por outro lado, tinha um atitude bastante condescendente com os pecadilhos nossos de cada dia. Entendia que atitudes altruísticas diante da vida, a solidariedade, a compreensão, o amor e a amizade, no final, contavam mais, diante do Criador, do que tropeços pequenos ao longo do pedregoso caminho da existência. Suas penitências tinham um padrão todo ludoviquiano de ser. Os dez mandamentos necessitavam de um upgrade, no seu entendimento. Pecar contra a castidade devia ser específico para a terceira idade, os jovens tinham mais era o direito de fazê-lo. O “Não roubarás” devia ser , totalmente, excluído da atividade política, já que era inerente àquela profissão. O “não desejar a mulher do próximo” precisava ter uma correlação direta com a proximidade do próximo.  No final, segundo Ludovico, no balançar da peneira, ficava o mais importante deles: Amar ao próximo como a ti mesmo!”.
                                   Quando Padre Ludovico adoeceu gravemente, pairou uma grande consternação na região. A vila já se adaptara ao Concílio Matozinho II impetrado pelo pároco. Ele partiu, sereno, numa sexta feira, reclamando de Deus que devia ao menos ter deixado desfrutar o final de semana: -- Bastava me levar na segunda, balbuciou o moribundo ! O certo é que Ludovico se foi, mas ficaram muitas das suas histórias, citadas, tantas e tantas vezes, pelos matozenses, como parábolas.
                                   Um dia, percebeu que o número de confissões estava insuportável. As pessoas tomavam o precioso tempo do pároco para contar desvios pequenos e insignificantes que podiam ser diretamente resolvidos em suas orações. Não bastasse isso, era o mesmo público que vinha eternamente aos pés do padre como os mesmos pecadinhos repetitivos de sempre. Rezavam apenas para poder voltar aos mesmos agravos. Resolveu, facilmente, o problema com uma portaria onde, para organizar os trabalhos de confissão estabelecia o atendimento: no sábado, para os adúlteros; domingo, para os ladrões; segunda, para assassinos; terça, para os falsos testemunhas; quarta, para os invejosos; quinta, descanso.
                        Contavam ainda que um adolescente, em confissão, meio choroso, lhe confessou que havia pegado no peito da namorada. Ludovico, sério e brusco, perguntou-lhe se tinha sido por cima da blusa ou por baixo. O menino tremendo disse-lhe que tinha sido por cima da blusa, apenas apalpara. O mão de Ludovico, atravessou a parte superior do confessionário e imprimiu-lhe um croque fenomenal no quengo, seguida de um advertência feroz:
                        --- Menino besta ! Aprenda, seu zé-mané !Devia ter pegado por baixo da blusa, seu leso ! A penitência era a mesma !
                        De uma outra feita, segundo reza a tradição de Matozinho, uma  mulher, na confissão, sussurrou que estava tendo um caso com o padre da vizinha vila de Bertioga. Não sabe como aquilo acontecera tão de repente. Ludovico, pareceu espantado e revoltado e sapecou-lhe uma pena pesadíssima, fora dos critérios normais da sua liberalidade.
                        --- Reze vinte e cinco rosários, esta é sua penitência !
                        --- Mas seu padre , isso tudo ?
                        --- Isso sim ! É pra você aprender ! Se você é da paróquia de Matozinho tem que cometer seus pecados é nessa paróquia e não em outra, joviu ?
                        Pelo sim, pelo não, as pessoas rezam para o Pe. Ludovico e o veneram como santo. Fazem promessas e alcançam graças, prometendo o pagamento mais inusitado e tradicional da religiosidade de Matozinho. Antes do primeiro trago, nos bares, é de praxe. Derrama-se um tiquinho do aguardente no chão e ordena-se:
                        --- É pra tu, Ludu !

Crato, 18 de Agosto de 2018

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Pai


 O rapazinho procurou o programa policial de televisão. Aquele especializado em expor todas as mazelas da miséria nas suas mais variadas feições. De um lado, o mundo real com suas vísceras expostas, do outro,  rostos falsamente indignados que sorviam aquele torvelinho de sangue, de violência com a avidez sádica de quem está convicto do isolamento total do que acontece naquela outra dimensão.     Chamado ao palco, o rapazinho, de uns vinte e poucos anos,  vestido com cópias bizarras das grifes esportivas mais famosas, cabelo esquisito como se cortado pelo cabeleireiro de Neymar, antes das primeiras quedas, entrou meio atarantado, como galo em rinha.  Interrogado, desenovelou os motivos da sua aparição naquele programa. Soubera da grande audiência e foi claro e direto. Esperava localizar seu pai, figura que nunca conhecera.  
 Segundo ele, sua mãe vivera, quando mocinha, em Teresina e trabalhava como doméstica. Sabe-se lá como, terminou enrabichada pelo motorista do patrão. Transas daqui, transas de lá ,  aconteceu o previsível : gravidez. O problema é que o motorista era casado e armou uma pegadinha para ela. Fingiu-se terno e loucamente apaixonado, comprou uma passagem para a namorada ir a Fortaleza, com a promessa de que seguiria no dia seguinte, depois de alguns acertos, e lá teriam vida em comum e esperarando o nascimento no bebê. A mocinha, inexperiente, seguiu viagem, com a passagem e alguns míseros tostões. Esperou em vão na rodoviária por dias e mais dias. Sem dinheiro, não tinha como retornar. Com ajuda de alguns pequenos comerciantes de rua, passou a vender bombons, milho verde e a dormir debaixo de alguma marquise próximo à rodoviária. A barriga foi crescendo e, um dia, por fim, amigos a levaram à Santa Casa, onde o reclamante nasceu. Depois de alguns meses, a mãe, por fim, começou um relacionamento com outro pequeno ambulante e, vida nova, passou a morar em um bairro periférico. Ao menos agora tinham um teto. Com o tempo, o casamento foi de água abaixo, por conta do alcoolismo do esposo. O menino, já crescidinho, passou , também a virar-se, vendendo quinquilharias , como ambulante, nas proximidades da rodoviária que um dia já lhe servira de abrigo. Agora, já taludo, tinha vida própria, arranjara um emprego de porteiro de edifício na Aldeota e se considerava um homem realizado.
Vinha ao Barra Pesada , por um motivo simples. Nem imaginou que estava no foro apropriado  ao abandono por que passara.   Soube que se aproximava o Dia dos Pais e ele, lembrou-se, então daquele sêmen que um dia lhe pôs no mundo. Mostrou um retrato desbotado do pai motorista que sua mãe lhe dera e que foi projetado na tela. Desejava encontrá-lo , soubera ainda residente no Piauí. Sabia da grande audiência do Programa Policial e que, quem sabe, haveria tempo de localizá-lo. Tudo correndo bem, desejava viajar até Teresina, abraçá-lo no seu dia e entregar-lhe um presentinho: uma lanterna, de olhinhos puxados, que comprara, a preço módico, de um amigo ambulante.
Do outro lado da telinha, telespectadores observavam a cena, incrédulos. Como alguém, depois de tamanha sacanagem, de um crime perpetrado fria e calculadamente contra a infância e a maternidade, teria a coragem de querer encontrar-se com seu algoz? E mais, sem aparentes sinais de ranço e de revolta? Que fios biológicos fortíssimos uniam pai e filho que se não apartavam mesmo diante dos mais violentos ataques sísmicos ?
O rapazinho saiu do programa feliz e com olhos brilhando. Tentava reconciliar-se com seu passado. Já não lhe pesava sob as costas a covardia inominável do genitor. Nascera numa manjedoura: um Jesus , filho de Maria,  apenas José não apareceu na foto. Mas muitos bichos pastavam por perto e reis magos acercaram-se do seu presépio, trazendo o incenso da presença, a mirra que embalsama a dor, o ouro  da solidariedade. Recompusera-se o milagre da vida. Faltava apenas, na cena,  a estrela brilhante que orientou  os reis magos. Talvez, por isso mesmo, agora, o rapazinho levava para o pai, depois de uma longa via crucis, a lanterna como presente. Quem sabe ela lhe servisse de guia e, rasgando os céus da sua velhice,   lhe iluminasse os dias e lhe aclarasse os turvos caminhos ?

Crato, 10 de Agosto de 2018   

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Fogo Fátuo


Luneta jura, de pés juntos, que tudo que se passou naquela noite foi a mais pura realidade. Como sempre, existem controvérsias irremovíveis. Primeiro, dificilmente nossa testemunha estava “de cara”. Por outro lado, depois da energia elétrica, os fantasmas, as almas penadas, as visagens desapareceram como por encanto. Na sua transparência e fluidez, estes personagens adoram as sombras, os ermos, as entocas. O certo é que Luneta visitava o cemitério de Crato, naquela noite pouco especial, como o fazia cotidianamente. Vezes acompanhado de amigos, vezes sozinho, adentrava o campo santo, tarde da noite, para , sem ser incomodado, pacificamente, empreender viagens montado no bólido do pó  ou suspenso nos etéreos balões da marijuana. Diz ele, com olhos algo arregalados, que naquela noite, estava sozinho, sentado em uma catacumba antiga, quando, depois de sorver o quinto baseado, sob a trilha sonora de um radinho de pilha, encostado, estrategicamente, junto à cruz do túmulo, percebeu uma figura estranha, aproximando-se.
                                    Veio silente, sem algazarra e sentou-se  defronte a ele, de cócoras, numa campa baixa, em formato de cama de casal.  Luneta descreve-o como de altura mediana, uns sessenta anos,  olhos fundos, corpo esquálido. A aparição insólita, no entanto, não lhe causou medo ou apreensão, parecia a visita de um velho conhecido. Luneta ensaiou um boa-noite meio sem jeito e ouviu a resposta do outro lado, numa voz em barítono como se soprada de dentro de uma jarra: Boa Noite ! Passados alguns instantes, como se tirada a rolha do champanhe, o senhor começou a narrar uma infinidade de queixumes. Parecia que de há muito aguardava um companheiro a fim de debulhar seu rosário de atribulações.
                                   Lembrou que morava naquele condomínio há já uns vinte anos, que lhe haviam augurado repouso eterno. Havia visto as lágrimas de familiares rolarem como as fontes do pé da serra, quando da sua mudança. Luneta confirmou que a convivência com os vizinhos era a mais pacata possível . Ali, não havia ricos ou pobres, poderosos e pés-rapados,  brancos ou negros, homos ou héteros: tinham alcançado a plena equidade e o mais perfeito socialismo. As coisas tinham, no entanto, mudado nos últimos tempos. Claro que os familiares, depois do rateio dos testamentos, haviam desaparecido. Um ou outro retornava no Finados, com alguma velinha e algumas ave-marias insulsas. O condomínio, no entanto, estava superpovoado, mal se tirava uma palinha , ouvia-se o tilintar das enxadas e a chegada de novos moradores. Estava pior do que o presídio de Crato, alma batendo em alma. Ademais, a garantia de repouso eterno de há muito se esvaíra. Na Expocrato, bandas inundavam os ares com um barulho ensurdecedor que varava a noite, tocando um arremedo de música que lembrava a todos ( celestinos, luciféricos e purgatorianos ) que tinham sido condenados às labaredas do inferno. A falta de segurança, por outro lado, segundo o interlocutor de Luneta, era uma realidade que até já batera no outro mundo. Ladrões rapinavam os túmulos, carregando argolas, cruzes, porta-retratos. Além do mais, o condomínio estava inteiramente sujo, mal cuidado, destoando, totalmente, do novo Parque de Exposições que ficava , do outro lado, mangando do campo santo e ralhando :
                                     -- Eu sou obra do estado, miserável ! Tu é uma pocilga, entregue ao desmantelo da prefeitura municipal !
                                    A revolta maior de “Fogo Fátuo”, esse foi o apelido que Luneta colocou no companheiro,  e que o fez sair naquele dia da cova, teria sido uma declaração do prefeito da cidade que tinha visitado o cemitério, conversado com os condôminos, não tendo havido reclamação nenhuma. Tudo estava na mais perfeita ordem!  Fogo Fátuo, então, ameaçou:
                                   --- Tá tudo em paz, é ? Pois já falei com o satanás para a gente marcar uma reunião aqui na Caldeira 666 , e trazer o prefeito pra discutir a questão !
                                   Luneta, afirma, por fim, que para acalmar os ânimos,  deu um dos seus cigarrinhos ao Fátuo e que ele, depois da quinta baforada, olhou em volta do cemitério , viu tudo lindo, brilhante e reluzente, teve uma crise de riso e perguntou:
                                   --- Mano Lulu, será que tu num deu foi um cigarrinho desses ao homem, brother ?  Tá todo em cima, a maior limpeza, óóó !

Crato, 03/08/2018