sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Bebêcinha

 

J. Flávio Vieira

                               É mais difícil quebrar um coco babaçu do que um preconceito. Abrir a  mente das pessoas é mais complicado de abrir do que um pequi verde. Por isso mesmo estamos cercados de visões estereotipadas ao nosso redor. Os judeus tidos como  usurários, os mouros e ciganos enrolões, as louras burras, os baianos preguiçosos, os cariocas malandros, os nordestinos atrasados, os cearenses cabeças chatas. Os que têm lerdeza  em pensar são propensos aos clichês e acreditam que com um só adjetivo é possível definir toda um povo. Fica, assim, muito mais cômodo criar os guetos para ali colocar todos aqueles que, a nosso ver, diferem da regra considerada  normal  por alguns censores. Mas não pretendo, aqui, defender os meus conterrâneos da pecha de macrocéfalos, vá lá alguns nestas terras têm aquela cabeça de mamãe-sofreu como dizem os pernambucanos só para nos impingir.  Mas , os neurônios que nos colocaram a mais , como um apêndice, um estepe, serviram para criar um povo resiliente, lutador, desapegado , solidário, com capacidade de rir da própria desgraça,  adaptável a todos climas meteorológicos e sociais como poucos outros neste planeta. Se a inteligência é a capacidade de se adaptar a novas situações, o cearense é imbatível neste critério. Cabeça- Chata, Lascou-Mãe , Fração-Imprópria, Cabeção, Cabeça de Mamãe-Sofreu, para nós não é xingamento, mas elogio.

                        Os pernambucanos que têm o mais animado carnaval do mundo, carnavalizam também seu dia a dia. Na época do Videocassete, que antecedeu o DVD o Blu-ray e o streaming na corrida tecnológica, houve o lançamento de um modelo com quatro cabeças com imagem de melhor qualidade. Os pernambucanos diziam que no Ceará não foi possível fazer o aparelho porque ao juntar as quatro cabeças ficou o artefato do tamanho de uma geladeira. Cabeçudo, em Recife, era greado ( este é um verbo bem recifense) a toda hora. Um conterrâneo de faculdade, na Veneza Brasileira , para variar, tinha aquela cabeça à Rui Barbosa. Chamavam-lhe de “Bebêcinha”. Pediam-lhe a cabeça chata   emprestada para jogar sinuca.  Diziam que o  menino tinha nascido  normal, mas que desde pequenininho a mãe batia na sua cabeça , toc-toc-toc, dizendo: Cresça, meu filho, pra você ir estudar em Recife ! Mãe batendo na lata, tanto bate que ela fica chata !  Ultimamente um colega daquela época ligou pra ele perguntando-lhe se era verdade que o pai do cabeçudo tinha comprado um drone para mapear a cabeça do cristão. Haja gréia !

                        Salvo os mais estourados, toda essa gozação sempre foi levada com muito bom humor. Casca grossa, cedo nos acostumamos ao que hoje se chama de Bulling e tornou as Coordenações escolares um tipo de delegacia. Uma vez, a mãe de Bebêcinha foi reclamar de uns companheiros do filho que estavam zonando muito com o menino. Os colegas então explicaram a razão:

                        --- D. Matilde é porque eu tava assistindo à novela das seis  e Bebêcinha passou correndo na frente do aparelho...

                        --- E daí ? Passou correndo!  E isso te atrapalhou em quê ?

                        --- Dona Matilde, até que ele passou logo, mas e a cabecinha, hein ? Daqui que ela passasse...Ficou empatando na frente e   eu perdi ainda três capítulos da novela das oito !

 

Crato, 23 de Novembro de 2023

                         

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Aos que virão !

 


“Quem contempla de longe a soberba Chapada,

Um mirante de luz  desnudando a amplidão,

Nem percebe que Deus montou grão sobre grão,

Foi partindo do chão   que encetou a escalada.

Para os homens também nada surge do nada,

Esse  fruto que como,  semearam bem antes,

Essa fonte em que bebo vem doutras vazantes,

 E uma  casa se erige é de velhos escombros.

 Gerações elevaram  uma torre de  ombros

Pr´eu puder  ver do cimo mais claro e distante.”

 

 

                               A SAAEC  está completando sessenta anos. Entre as festividades comemorativas à efeméride, a diretoria estará inumando uma cápsula do tempo com depoimento de cratenses sobre a Chapada do Araripe . Pediram-me um texto em nome do Instituto Cultural do Cariri. Como muitos não estarão presentes, inclusive o autor, quando a cápsula for aberta daqui a mais sessenta anos, segue o texto para apreciação agora, antes que o apagador do tempo passe sua flanela no quadro negro da vida.

                     Caririenses, emoldurados pela verde Chapada, nem percebem que a vida palpita e ruge do outro lado da montanha.  O mesmo paredão, que aparentemente nos separa do resto do mundo, nos imprime um elã de pertencimento, como uma fortaleza que nos protegesse de invasões bárbaras e alienígenas. Talvez, por isso mesmo, não nos prende qualquer banzo da vida alhures. Basta-nos a sensação de que já nos banhamos nas salgadas ondas do mar, já provamos das dulcíssimas águas de um lago, já fomos planície e, hoje, serra. Andamos numa passarela imantada por muitas gerações de animais fabulosos, agora dormentes nos veios magmáticos das rochas, mas que nos magnetizam duma estranha energia primal. Basta fechar os olhos um pouquinho para contemplar, nos céus, os voos balouçantes dos últimos pterossauros.

                           Em meio à sequidão desértica do semiárido, a Chapada  prendeu, caprichosamente, todo um rio sob seus pés. Um rio que corre entre pedras: Itaytera. Um caudal que escorre e se esparrama, como artérias, para nutrir, com sua seiva, toda a encosta ubérrima que se espraia, como um tapete, ladeira abaixo.  Talvez, por isso mesmo, os caririenses comemorem esse milagre , essa dádiva,  nas suas Saturnálias, nas suas Festas de Solstícios e nos seus Kuarups.  Os espelhos e espadas do reisado, os tambores de crioula, os pífaros, o batuque do maracatu, a rabeca, o violão, a sanfona... O cratense carrega aquela placidez do transe,  como se tivesse há pouco bebido o cauim e sintonizasse  diretamente a estação Craterdam. E caririense não é um adjetivo gentílico, mas um estado de espírito, tantos e tantos, mundo afora,  se sentem tocados da mesma energia cósmica, aquela força gravitacional explicada apenas nos tomos do esoterismo, e, imediatamente, recebem o visto de permanência, o Greencard  , tornam-se Chapados: caririenses por adoção. Temos até uma fruta litúrgica, típica para nossos  rituais de iniciação: o pequi. É uma epifania para o iniciado descobrir que para degustá-lo  -- e a lição serve também para a vida --  é preciso lamber e mordiscar, voluptuosamente a polpa, mas sem cravar os dentes  muito a fundo, ali onde a aranha teceu sua teia de espinhos.

                        Diante da imensidão da Chapada, descobrimos apenas que somos parte integrante e imanente dela. Não carece entender todos seus mistérios esfíngicos, tão-somente relaxar e curtir o transe. Para atingir os céus  fez-se mister que o Senhor Tempo ajustasse placa sob placa do quebra cabeças.  Incontáveis transmutações geológicas e biológicas aconteceram desde então: placas tectônicas se conflitaram, mares avançaram-recuaram,  lagos e rios se formaram e muitas espécies se fizeram fósseis. A vida é sedimentar ! Somos apenas a placa da vez. Mais alguns anos passados e eis-nos uma mera e fugidia  lembrança de uma era. A Chapada do Araripe continuará impávida e firme na sua exuberância e nós viveremos nela como parte secreta mas indissociável do seu esplendor.

 

Crato, 15/11/ 2023

 

José Flávio Pinheiro Vieira

Médico e escritor

Presidente do Instituto Cultural do Cariri

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Loteca

 


J. Flávio Vieira

                               Cilistrino  recebeu a notícia sem o estardalhaço  que era esperado. Beirava os oitenta anos e sabia, perfeitamente, que dobrada a próxima esquina , o mais provável é que lhe aguardasse o precipício e não os campos de girassóis. Ouviu pelo rádio: ganhara trinta mil reais no Cariri da Sorte em que arriscava pules há muitos e muitos anos. Antes de um galardão  a grana deveria significar apenas um ressarcimento , um retorno de uma poupança. Imaginou, de pronto, que a ex-mulher que o abandonara há muitos e muitos anos poderia , subitamente,  voltar a apaixonar-se e os filhos, que não via há décadas,   com saudades repentinas agora sentiriam uma estranha ausência do pai. Os amigos do barzinho o cumprimentaram sem disfarçar uma certa inveja e, os mais sensatos, orientaram para que fizesse uma poupança, no aguardo das estações mais turbulentas que se prenunciavam:  de remédios, de exames, de internações, de cirurgia e de pijama de tábua.

                        Cilistrino pôs as mãos na bufunfa , que chegara de forma desavisada, mas sem o grande entusiasmo de outrora. Viera meio fora de época, como uma micareta. Tinha lá sua animação, mas não se comparava ao Carnaval. No dia seguinte, fez um plano de saúde, imaginou que era um bom investimento para um velho já meio descascado. Projetou em deixar um pouco na poupança e comprar um terreno no Cemitério e comprar um plano funerário. Não queria dar trabalho nem despesa ao que ficassem ( não era justo, se não ia legar herança material, deixar essa batata fervente na mão de familiares que nem sequer o consideravam).  Procurou uma funerária – “ Furdunço no Céu”—e conversou com o corretor. O rapaz, cheio de mesuras e querequequés, o atendeu com presteza e apresentou-lhe as possibilidades de planos funerários com as mesmas desenvoltura de um agente de turismo: batizados, casamentos, Bodas de Ouro. Docinhos como Bem – Morridos, Coroas  das mais variadas flores, lembrancinhas, Bandas musicais. Caixões de vários formatos: guitarras ( para músicos ), livros ( para escritores), Caixetes ( para farmacêuticos), Caixa de Aguardente para os pinguços, etc. E os ginecologistas e urologistas ? interrogou para si mesmo. O agente funerário lembrou que médicos ( não era o seu caso), como fornecedores da matéria prima, tinham desconto especial. Quanto ao terreno no campo santo , possuía , também várias opções e preços. Locais com vista privilegiada para a montanha, pontos mais tranquilos e sem barulho, outros mais agitados para os roqueiros, por exemplo. Podia, ainda, optar por música ambiente e wi-fi. Cilistrino, pensou um pouco, e pediu tempo para pensar.

                        Voltou para casa cabreiro. Tudo aquilo, nos finalmente, era prova inequívoca da vaidade sem limites do homem. Lembrou de tantos, cheios de dinheiro, acumulado por toda existência, simplesmente para florir depois o inventário. A vida passara ao largo como um ginete veloz, e eles, pés fixos no chão, esqueceram de montá-lo. Alguns ostentam agora  o título de serem os mais ricos do cemitério. Cilistrino, pensou com seus botões:  depois da sua partida não havia qualquer diferença entre o enterro e a cremação, o esquife de ouro ou o caixão das almas, o túmulo suntuoso ou a vala comum. O pó é apenas o pó. Depois da partida, a preocupação com o defunto ( o projeto do nada) é uma  questão relativa aos que ficaram. Até porque as poucas lágrimas e as lembranças cessam definitivamente após a missa de sétimo dia. A morte não é apenas física é total e definitiva.

                        Os amigos do bar, nos dias seguintes, viram um novo Cilistrino que surgiu em meio às notas da loteca. Resolvera investir em vida o dinheirinho que lhe chegou como prêmio. Comprou um carrinho, arranjou uma namorada nova, caiu nos bailes da vida e passou a anestesiar um pouco o duro caminho a custas de conhaques e umas baforadas:  que ninguém é de ferro. Disse aos amigos que quando a velha da foiçona chegasse, não gastassem vela com defunto ruim: vala comum, caixão das almas, nada de flores. O que ganhei na loteria gastara com vida !

Crato, 03/11/23