segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A Bela Adormecida no Vale


Pois é , amigos ! Chegam de novo os tempos da simpatia epidêmica, dos sorrisos fartos, da solidariedade desmedida. Aproximando-se o ano eleitoral , as sensibilidades políticas ficam à flor da pele; as varinhas de condão dos bruxos  aparecem com mais  facilidade; os problemas da cidade tornam-se bem visíveis e há soluções fantásticas para todos eles. Já há um vasto cardápio de candidatos soltos pelas esquinas e praças do Crato, saltando em festas e solenidades, abraçando afetuosamente pessoas e causas. Alguns até já tentaram seus remédios em edições passadas e , sem pejo, esquecem que os efeitos colaterais contribuíram para levar a cidade à UTI. Há outros sorrisos novos e largados circulando , parecendo manequins, a maior parte deles sem aparentar, claramente, qual sua função nesse safari.

                                                                                      Foto: Juliana Negrão

                                               A todos que pretendem disputar as eleições municipais, tenho algumas sugestões a fazer. Acredito que minhas quase sete décadas como cratense me dão esse passaporte. Não esqueçam da história gloriosa da cidade que vocês pretendem administrar. Essa vila carrega toda uma saga de pioneirismo quase única no Ceará. Aqui ecoou um dos primeiros gritos republicanos do Brasil! Aqui se  instalou o primeiro jornal, o primeiro curso secundário  e o pioneiro cinema de todo o interior do nosso estado. A primeira médica nordestina teve como primeira imagem a lhe bater os olhos  a verdejante Bebida Nova. Aqui, também, nasceu o maior mito religioso do Nordeste e os artistas plásticos Vicente Leite e Sérvulo Esmeraldo.  É preciso entender a cidade em toda sua grandeza, construída histórica e economicamente nos alicerces multicultural e ecológico. Essa sempre fez-se a vocação natural da Vila Real do Crato. Entendam, também, que nos últimos quarenta anos o município vem num profundo processo de desmoronamento. Nenhuma cidade do Cariri sofreu tamanho processo de encolhimento, de desfalecimento e estreiteza de horizontes. Já não existem cinemas na cidade, jornais de circulação regular, um teatro que mereça esse nome. Temos um Museu de Artes Plásticas com acervo rico e invejável fechado e fadado à deterioração final e irreversível. A  Rodoviária , nossa sala de visitas, tem mais de quarenta anos e tornou-se  uma das mais precárias de todo o estado do Ceará:  o monumento mais heráldico e exposto da nossa destruição. A Educação, que nos fez fortes e um centro gravitacional do interior de vários estados nordestinos, vê , seguidamente, fecharem suas instituições mais tradicionais. Mais da metade dos nossos hospitais cerrou as portas. As nossas instituições culturais como SCAC, ICC, Academia dos Cordelistas, SOLIBEL vivem momentos difíceis e tenebrosos e só ainda subsistem porque aprenderam, ao longo do tempo, a nutrirem-se da abnegação de seus diretores e membros e das poucas migalhas que se lhes oferecem. Ninguém consegue compreender em que roca a Bela Adormecida espetou o dedinho.
                                   As causas dessa tragédia são, certamente, multifatoriais. A decadência da nossa atividade agropecuária; a concorrência mercantil ferrenha de cidades fronteiriças; mas, certamente, a principal delas terá sido de viés político. Nem Paris suportaria quatro décadas de descaso político e econômico ! Mantivemos, durante esses quarenta anos, salvo raríssimas exceções, administrações municipais pífias, totalmente desvinculadas da nossa genuína  tradição cultural   e ecológica. Não se pressentiu qualquer apego à história gloriosa da cidade. A maior parte das vezes  os interesses particulares se superpuseram às demandas coletivas. Os mesmos grupos políticos revezaram-se, sem alterações mais significativas de pessoas,  na administração, com os critérios espúrios de sempre, distanciados do merecimento e da tecnologia. Todo um patrimônio arquitetônico que dava o arcabouço memorialístico e histórico da cidade foi literalmente tombado. Algumas poucas obras de importância acontecidas neste período devemos mais ao empenho dos governos estadual de Cid Gomes e Camilo Santana e dos federais de Dilma e Lula.  
                                   Assim, postem-se nesta corrida eleitoral com os olhos fitos não só na vitória possível. Vocês não administrarão uma vilazinha qualquer, perdida nos cafundós do judas. Pensem grande! Imaginem  a possibilidade de galgar os degraus da escada política não pela porta larga do compadrio, do toma-lá-dá-cá; mas adentrando  a janela estreita das realizações, da administração moderna e científica, da observação criteriosa das demandas dos mais diversos segmentos sociais, com equidade, alimentando a vocação natural da cidade de Frei Carlos. Afastem-se das perspectivas da mesmice, da continuidade dos mesmos rumos e da administração dos mesmos remédios amargos que nos têm levado à bancarrota, ano após ano. Uma cidade linda, nas suas geografia e história, merece o cuidado de um ourives que descobre, rápido,  que o valor  da joia que burila  está não na avaliação bruta do seu peso mas na esperança de encantar a todos que se deleitam com seu brilho.
Crato, 24/10/19

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Voo Solo



                                               Sinuca de bico. Difícil transitar em areia movediça, sem o constante risco de desaparecer no limbo. Albertino pensava naquela saia justa em que vivia metido nos últimos meses, sem perceber qualquer fresta no fim do corredor. Via-se numa encruzilhada em que todos os caminhos possíveis pareciam de alguma maneira obstruídos: o da esquerda por uma árvore tombada; o da direita com um enxame de abelhas oropa; o da frente atapetado de serpentes; o de trás desembocando num abismo. Pensava nisso, enquanto se encaminhava para casa, em meio de expediente, a chamado urgente do irmão Manoel. Nos últimos tempos os sobressaltos se sucediam.
                                             
  Mente anuviada, lembrou, de relance, do passado , quando as coisas pareciam mais simples e a vida inundava-se mais de fragrâncias de piqueniques do que de trovoadas.  A mão trêmula  girou  a chave da ignição do carro em meio à turbulência de pensamentos e reflexões.  Manoel , pensou com seus atavios, fizera-se sempre o atleta da família. Lépido, fagueiro, encarou  os esportes mais radicais com  incríveis  bravura e destemor. Atapetara os móveis da casa de troféus: body jamping, windsurf, parapente, asa delta. Classificara-se , inclusive, recentemente, como atleta olímpico numa modalidade pouco comum : o wingsuit. Com um traje especial, Manoel refizera o sonho de Ícaro, sobrevoara vales e montanhas, contornando escarpas pontiagudas de picos e paredões, com manobras ágeis e certeiras. Impossível imaginar que o  grave acidente que terminou por lhe tolher os voos futuros viria de um simples  tropeção   na escada de casa. De repente, aquela mudança súbita, como se a  intensidade  que Manoel imprimira à vida tivesse sido uma compensação da paralisia que em breve tingiria seus dias. Como engolir aquela sentença  peremptória: até os fins de seus diasele estaria fadado a mover apenas o braço direito, ficaria dependente de cuidados mínimos de higiene, mobilidade  e sobrevivência.
                                               Albertino, enquanto dirigia o carro, maquinalmente, meio atabalhoado, ia recordando flashes da tragédia que se abatera sobre a família. De início, Manoel manteve-se impávido e esperançoso, mesmo com a sentença sinistra. Talvez porque lhe foi passada meio truncada pelo neurologista, deixando antever ainda a possibilidade de algum lume em meio à cerração. Com o passar dos dias, porém, a bruma espessa invadiu lhe a alma. Manoel manteve-se sorumbático e  revoltado. Depois calou, monossilabou-se. Albertino procurou novamente o médico, a pedido da mãe e deixou transparecer suas preocupações. O profissional , experiente, pediu aos familiares que tirassem, sorrateiramente, os remédios do alcance do paciente. Prescrevera muitos medicamentos controlados e temia que, no desespero, Manoel fizesse um gesto tresloucado e procurasse abreviar o destino tenebroso a que estava condenado. Assim o fizeram e nos primeiros dias, aparentemente, ele não deu pela mudança, continuou silente, aceitando a medicação que lhe entregavam, sem estrebuchar. Albertino, assim, não conseguia prever a razão do chamamento súbito feito pelo irmão. Estacionou o velho Opala/92 defronte da casa e entrou um tanto sobressaltado.
                                   Manoel , ao vê-lo,  deitado na cama que tinham alugado do hospital, falou-lhe que queria uma conversa particular. Aparentava calma, estranhamente parecia que tinham se dissipado as nuvens carregadas dos dias anteriores. Albertino pediu à mãe que os deixasse a sós por alguns instantes fechou a porta do quarto.  Ele então olhou-o sereno e explicou ao irmão todo seu dissabor. Não havia justiça naquilo que tinham feito com ele, afastando-o dos fármacos. Disse ser um condenado às galés perpétuas pelo destino. Sabia : eles imantavam-se das melhores intenções, mas que ninguém nesse mundo carregava o direito sagrado de tirar das suas mãos a única possibilidade de aliviar seu sofrimento. Sabia-os religiosos e , por isso mesmo, temerosos de uma saída drástica pela porta lateral da vida e a possibilidade de uma outra condenação na eternidade, mas , a seu ver, se existisse uma força superior uma tragédia daquela seria evitada e uma decisão sua, por mais extrema que fosse,  seria, certamente, compreendida. Olhando profundamente  nos olhos  de Albertino, Manoel pediu-lhe para que não fechasse a única porta nesta vida  que ainda lhe permanecia um pouco entreaberta.
                                   Albertino abraçou longamente o irmão, banhado em lágrimas. Sem pronunciar uma palavra, pegou os vidros de remédios que repousavam em cima da cômoda e os colocou ao alcance da mão direita de Manoel. Ao sair convenceu a mãe que falara com o médico e ele confirmara que era melhor deixar o próprio paciente controlar sua medicação, naquela fase do tratamento.
                                   Albertino retornou ao trabalho aflito mas  aliviado. À noite , como um milagre, de repente Manoel levantou-se do leito e vestiu sua roupa de wingsuit. Saltou pela janela e voou alto. Lá embaixo a cidade estava iluminada por uma infinidade de vagalumes. Um vento doce  aos poucos lhe refrescou o corpo. A lua brilhava no céu como uma promessa.

Crato, 18/10/19 

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Assim na terra como no céu...


Onevaldo Castriciano  era um jumento de lote. Cabra de uma virilidade invejável, desses de fazer inveja a galo de briga. Fogoso, lépido, espalhou rebentos pelas redondezas de Matozinho com um furor quase bíblico. Lia apenas os versículos do “Crescei e Multiplicai”.  Em tempos ainda livres da pensão alimentícia e dos testes de paternidade, Onevaldo se espalhou como pinto no monturo. Um dia, porém, já adentrado na meia idade, enrabichou-se por  Adeilde, uma mocinha pobre de recursos mas rica de fundos. Onevaldo acerou, jogou o landuá de malha fina, mas Adeilde resistiu, fez-se de difícil e desinteressada, escapou das laçadas do pretendente, até porque sabia de cor os detalhes da sua folha corrida. As investidas sem efeito de Onevaldo terminaram por leva-lo às fronteiras do desespero. Lançou, então, aquela que parecia ser sua última cartada, procurou os pais de Adeilde e propôs um casamento. No primeiro momento, ela manteve-se intransigente. A diferença de idade era muito grande e a mocinha já tinha um namorico com Jobertino do Pé-de-Bode, um músico da sua idade e que andava animando sambas nos pés de serra de Matozinho. Os pais de Adeilde, no entanto, fizeram a sua parte: mostraram à filha a oportunidade de ascensão na vida, já que Onevaldo parecia um sagui com cólica menstrual , mas tinha um comerciozinho na vila e umas nesgas de terra e, ao menos, na bitola e na trena de Matozinho era um sujeito pra lá de remediado. O certo é que o pragmatismo terminou por vencer  o sentimento: Castriciano e Adeilde subiram ao altar.

                                   Depois de trocarem as alianças, o antigo jumento de lote, consertou-se. Onevaldo, diziam os amigos, virou um ferrolho: sempre entrava no mesmo buraco. A virilidade do homem, porém, apenas adquiriu uma exclusividade. O casal era diarista, chovesse ou fizesse sol, morresse parente ou doença atacasse, o poço estivesse cheio ou rios vermelhos fluíssem,  não tinha desculpa: todo dia era dia de índio.  E a frequência milimétrica das atividades de alcova terminou por medrar uma récua de filhos, na regularidade de quase um a cada ano: vinte e um caboclinhos, até um dia quando Adeilde , por fim, viu cair a postura.
                                   No princípio, o fogo na cama de  vara trouxe uma alegria incontida à noiva. Contava os feitos às amigas, muitas delas esvaindo-se de inveja,  e agradecia aos céus pela pujança do marido, pelo vigor e, também, a certeza de que incendiando as noites em casa, não tinha condições físicas de acender outras coivaras. O tempo, no entanto, fez com que o que parecia vantagem, aos pouco se fosse transformando em suplício. Depois da menopausa, o vigor e a vontade de Adeilde já não eram os mesmos. Filhos e netos circulando na casa que ficou pequena.  Começaram a aparecer os reumatismos, as securas, o apocalipse da geografia corporal, as preocupações. Castriciano, no entanto, parecia envernizado.  Não queria saber de desculpa, de conversa, de queixas, todo  dia: pau na moleira. Já perto dos oitenta, parecia o mesmo jovem que D. Adeilde conhecera nos tempos do cerca-lourenço.  Mesmo quando ela precisou tratar um câncer que lhe tomou parte do pescoço e que a fazia aparecer sempre com um cachecol amarrado no gogó, fazendo tratamento com drogas que ela tinha a certeza tinham sido prescritas pelo satanás, nem assim, queixava-se ela às amigas, nem assim Onevaldo largava do pé.
                                   Um dia, como era previsível, o garanhão  sucumbiu. Saíra para Matozinho, fazer umas compras, e, sabe-se lá como, caiu do cavalo e deu com a cabeça num tronco de timbaúba. A cidade parecia que ia descer também à cova com Castriciano. Todos lamentaram a queda daquela madeira de lei, um varão bíblico, orgulho da masculinidade da vila. Adeilde, passado o choque, viu-se tocando as migalhas da vida que lhe sobrara. Deixava transparecer um certo alívio, agora que haviam interrompido seu destino de Sísifo. Mesmo assim, contava às eternas amigas, que não raro acordava à noite, num pesadelo terrível, com a alma de Castriciano bolinando-a e querendo fazer escandelo.
                                   Há alguns dias, chegou a vez de Adeilde, por fim, ajustar as contas com o criador. O tumor do pescoço arrebentou novamente e, depois de dias de sangramento, dor e agruras, arrodeada de filhos e netos,  ela foi juntar-se a Onevaldo, nas paragens celestes. Aleluia, o almejado descanso eterno -- pensaram as amigas, próximo ao caixão.
                                   No dia seguinte, as colegas de tantos e tantos anos acompanharam Adeilde à sua derradeira morada. Lá os coveiros tiraram a tampa do túmulo da família. Era pequeno , meio apertado e, dentro, já estava o féretro de Castriciano que ali chegara cinco anos antes. Rápido os profissionais notaram que não cabiam os dois caixões no mesmo túmulo. O espaço interior era exíguo. Tiraram, então, aquele envelope onde estava o marido e colocaram  o esquife da nova ocupante da casa: Adeilde. Eliminaram, então, os restos do esquife de Onevaldo e , cuidadosamente, puseram os seus ossos por cima do caixão de Adeilde: única maneira de caber os dois restos mortais no mesmo espaço. Em meio a choro e ranger de dentes de muitos filhos, netos e bisnetos, os coveiros fecharam o jazigo. O casal estava, novamente, reunido agora pera sempre.
                                   As amigas de Adeilde, enquanto enxugavam as lágrimas, usaram também os lenços para conter os risos, pensando baixinho, enquanto viam colocar os ossos de Onevaldo por cima do caixão da colega.
                                   --- Mas menino, assim na terra como no céu, já dizia o Pai Nosso ! Descanso eterno que nada !  Castriciano já tá por cima, de novo ! O Sem-vergonha não deixa a mania !

11/10/19