terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Quintal

E os anos se vão sucedendo,  sem que a gente nem perceba. As primeiras décadas parecem a lenta subida de uma rampa: dá para curtir a paisagem, prazerosamente dividir com os companheiros de jornada as sensações da viagem. De repente, chegamos a um  topo que é sempre imprevisível  e é como se o carro disparasse , ladeira abaixo. As imagens passam estroboscopicamente, os amigos se dispersam, como por encanto,  e a vida segue num estranho frenesi, enquanto esperamos  a beira do precipício e o ruflar inconsequente das débeis asas do Ícaro.   
                                   Pouco a pouco, ante a perspectiva do voo, nossa viagem vai se tornando mais e mais solitária. Os companheiros tomam estradas paralelas, seguem cursos inesperados, buscando todos um inexistente Shangri-lá. Como Fernão Dias Paes Leme, acabaremos cedo ou tarde descobrindo que eram falsas as almejadas esmeraldas. O tesouro terá ficado , talvez, espalhado pelas trilhas :  no bem que possamos ter partilhado, nas lágrimas que por ventura ajudamos a enxugar, nos etéreos momentos de simples e cristalina felicidade que dividimos com os que estavam no caminho,  ao nosso lado. Quando levantarmos o voo final, logo ali, na plataforma do despenhadeiro que nos aguarda   à frente, essas certamente serão as imagens que brilharão nos nossos olhos,   antes do impacto derradeiro nos imperceptíveis rochedos pontiagudos  do fundo do abismo.
                                   Abaixo, a visibilidade é pouca, a bruma feroz. O que nos espera naquelas abissais regiões , quando as asas se partirem e o remanso último   nos venha a sorver para  goela do tempo ? Alguns imaginam que , lá embaixo, exista um éden nos esperando, como conforto final do nosso mergulho : cascatas, música inebriante, paz.  Uns até garantem que nos será permitido voltar e tentar outras trilhas mais amenas e menos penosas, para outros  mergulhos menos turbulentos e  outras aterrisagens mais dóceis. Asseguram até que exista uma grande Torre de Controle invisível e poderosa ( com um estranho e enviesado censo de justiça)  que controla todos  percursos aéreos e decide sobre pousos, decolagens e colisões. Difícil compreender  as reais regras e objetivos  desse rali vital com partida “no nada” e fim “no coisa nenhuma”: sem louros, sem prêmios aos vencedores. À beira do pélago, são meros sonhos todas as conjecturas: apenas o vórtice é real.

                                   Dentro de cada piloto, no meio da vertigem, no entanto, existe um menino, escondido em algum cantinho do bólido. É preciso, na disparada, encontrar esse garoto. Ele nos reensinará  que a essência de tudo reside na brincadeira de hoje e não na perspectiva do Papai Noel que poderá ou não vir no Natal. Ele mostrará que  alegria está aqui ao alcance das nossas mãos: na simplicidade do pião de goiabeira e da bola de meia. Papai do céu está longe  a cuidar das suas estrelas, pouco nos interessa o que existe do outro lado do muro. Deixemos lá a vida com seus bichos-papões.  A felicidade está segura aqui no nosso quintal, brincando conosco de esconde-esconde .

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Pentelho de Capivara

                                                                               
          J. Flávio Vieira

Solidônio Canabrava tinha uma pequena loja de ferramentas em Matozinho.  Negociava  implementos  metálicos,  como dobradiças, armadores,  ferrolhos, correntes  pregos, parafusos, foices, martelos. Talvez tenha sido a proximidade e a dureza  desse material, que ele tanto manipulava no dia a dia, que terminou por impregnar seu temperamento de uma  a uma certa acidez e  petrificação. Tornara-se, aparentemente, do reino mineral, antes que o tempo o levasse a esse que é o destino final de todos os viventes. Era ríspido, direto, sistemático: com ele não tinha perreps. Intolerante, não aceitava perguntas bestas, arrodeios desnecessários, eufemismos, cerca-lourenços. Sua fama espalhara-se por  todos arredores da vila. Os que o conheciam , tiravam de letra a aparente estupidez de Solidônio e até cutucavam a onça com vara nanica, esperando a resposta pronta e carrascante como mourão de cerca. Os de fora, no entanto, tantas e tantas vezes se incomodavam com a rudeza do comerciante. Como se explicar  que quem quer  pegar marreca viver gritando :  xô ! Geralmente, depois de perguntas redundantes, como:
                                               --- Esse armador, seu Solidônio, é pra armar rede ?
                                               Vinha a resposta brusca e incisiva :
                                               --- Não,  Senhora ! Imagina ! Esse armadorzinho  é pra enfiar em cu de sabiá e pegar elas como se fosse anzol!
                                               E, imediatamente, tangia o perguntador peba, da sua loja, com o mote de sempre :
                                               --- Arreda ! Arreda, Dona  Empaia !
                                               Contavam-se as histórias de Solidônio  por toda redondeza, umas verídicas e a grande parte delas nem tanto : foram aparecendo folcloricamente, no fluxo ficcional da memória coletiva de Matozinho.  Uma  rezava que ele estava arrumando alguns rolos de arame farpado na loja, quando feriu a mão acidentamente, no ponta aguda do arame. Continuou a arrumação como se nada tivesse acontecido. Logo depois, novamente, repetiu-se a mesma tragédia: as pontas farpadas foram de encontro aos dedos de Soledônio. Ele não teve conversa : olhou firmemente para o rolo e disparou :
                                               --- Ah ! Já sei ! Tu tá querendo é carne, né ? Pois toma ! --- Enfiou a mão umas quinze vezes no rolo , quase perdendo todos os dedos.
                                               De outra feita, conta-se,  sentado, comendo mel de engenho, por duas vezes, o mel caiu e lambuzou sua longa barba. O velho não contou conversa. Olhou pra barba fixamente e logo sapecou o pires na cara , ameaçando a moita de cabelos:
                                               --- Ah ! Tu num é diabética , não, né?  Tu quer é mel, é ? Pois toma !
                                               Foi por essas e outras que dali , também, saiu o apelido do nosso personagem, embebido na grossura que lhe era a maior característica :
                                               --- Pentelho de Capivara !
                                                Claro que Solidônio não suportava o epíteto, nem sequer quaisquer palavras que por acaso lembrassem esse nome. Por isso mesmo  a alcunha pegou como catarro em parede.
                                               Semana passada aconteceu o inesperado. Canabrava tinha um pequeno engenho de cana de açúcar movido ainda a máquina a vapor. Uma das grandes moendas  quebrou e tiveram que suspender a moagem. Onde diabos encontrar uma estrovenga daquelas ? O maquinário tinha sido importado , muitos anos atrás, da Inglaterra, pelo avô de Solidônio. Os engenhos estavam quase todos de fogo morto. Em tempos de mariola, Coca-Cola  e chilitos, quem diabo queria comprar batida, garapa,  alfenim e rapadura ?  O eito de cana, no entanto, estava cortado e parar tudo era um prejuízo danado.
                               Canabrava soube que, em Serrinha dos Nicodemos, existia um velho que tinha um engenho similar ao seu e que estava parado há muitos e muitos anos. As moendas, segundo lhe tinham adiantado, estavam novas e a história é que O Coronel Balbino, o dono da fazenda,  falara , diversas vezes, na venda daquele mundo de ferro, inclusive para ferro-velho. Soledônio , então, chamou um velho choffeur de praça e resolveu ir negociar em Serrinha a compra da moenda com Balbino. Durante a viagem, no entanto,  o motorista o alertou. O coronel era um bicho do mato, cabra bruto e indomável como um chucro. Para se ter uma ideia, alertou : o apelido dele é : “Apito de Engenho” ! Será que o homem é bruto ?
                               Seguia a viagem e o motorista continuava atemorizando o velho Solidônio:
                               --- O Senhor é que sabe, seu Pentelho... ou...  Seu Solidônio . Ele vai dar um coice danado no senhor ! Pode esperar! Se eu fosse o senhor eu não ia não !
                               Canabrava, no entanto, neste mister tinha PHD e M.B.A. Não quis conversa, nem mostrou-se temeroso. Mandou picar viagem. Vamos simbora !
                               Tardizinha chegaram , por fim, nas terras de Balbino. Pararam defronte a casa alta, onde , após infindáveis degraus lá estava o coronel refestelado numa preguiçosa, assistindo aos últimos estertores do dia. Solidônio, desceu do jipe, mandou o motorista esperar um pouco , subiu calmamente a escada. E, sem delongas, fitou o coronel e perguntou ?
                               --- O senhor  é o coronel Balbino , se má pregunto ?
                                 O  velho, com aquela cara dura de cobrador , sem o fitar nos olhos, latiu de lá:
                               --- Sou sim, por que ?  E se não fosse,  você tinha alguma coisa a ver com isso ?
                               --- Né por nada não, Coronel ! Pegue sua moenda e meta no cu, joviu ?
                               Desceu os degraus, entrou no jeep e voltou pra casa, após a mais rápida negociação já registrada   nos anais do CDL  de Matozinho.


Crato, 16/12/14

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Enchendo linguiça

J. Flávio Vieira

                                             Uglino Petico era feirante do ramo de miudezas. Vivia naquela vida nômade de mascate: domingo em Matozinho, terça em Bertioga, quinta em Serrinha dos Nicodemos, sexta em Ananás Florido , sábado em Jurumenha Mirim. Chegava, em geral, numa D-20 velha, apelidada de “Jega Zonza” . Aportava, sempre,  na noite anterior , na cidade agendada,  para a organização do evento. Escolhia o estratégico ponto, que mantinha geográfica e religiosamente há mais de vinte anos, estendia a lona puída no chão e, madrugadinha, arrumava , em cima,  a troçada toda :  armadores de rede; correntes ; martelos;  cordas;  ferrolhos; dobradiças; serrotes; cabos de enxada, de foice, de machado; traves de porta e janelas; imagens de santos; meizinhas como  arnica, boldo, hortelã, bicarbonato, jurubeba; temperos que inundavam o mundo com seu cheiro : colorau, pimenta do reino, cominho, alho, louro...
U
                                                Cedinho já começava a vender a toda matutada e varava o dia neste ofício. Tardezinha, recolhia tudo, arrumava na velha caminhonete e partia para uma outra Vila a fim de começar tudo novamente. Vidinha cansada, atribulada, mas divertida.  Depois de tantos anos,  já conhecia todos os companheiros de ofício e terminara por criar uma fiel freguesia. A noite que antecedia à feira , onde todos os comerciantes ambulantes se reuniam para arrumar os picuaios a serem vendidos no dia seguinte, passada canseira do arruma-arruma, se transformava sempre numa festa. A zinebra corria solta, sempre havia alguém com um pé-de-bode e, como por encanto,  apareciam um violão, um triângulo , um pandeiro. Altas noites, a cumplicidade da escuridão fazia  os casados se arrumarem  e os solteiros arranjarem um cobertorzinho de orelha para varar o frio da noite. Com tantos anos de estrada, os casais se iam formando naturalmente. Uglino tinha mulher em Matozinho, mas usava, no meio do mundo, como refil, o corpo morno de Dorinha Manzape, uma vendedora de filhóis, charutos e quebra-queixos.  O colete  já durava mais de dez anos e , contava-se a boca miúda,  pelo menos os cinco últimos filhos de Dorinha contaram, certamente, com a participação especial de Petico, seja como ator principal, seja como coadjuvante.
                                               Estes rebentos de Dorinha vinham  se juntar com mais doze que Uglino produzira com D. Estelita , sua fiel companheira, recebida em pé de padre, há mais de trinta anos.  Petico , comentava-se, era uma espécie de jumento de lote e esta história vazara de fontes mais que confiáveis : das amplificadoras quengais  da Rua do Caneco Amassado. Tinha o homem  fama de touro reprodutor e, também, comentava-se  uma outra similaridade que o aproximava do jerico: portentoso nos países baixos, era gigante pela própria natureza.  Mais de uma neófita da mais tradicional das profissões já havia refugado  ante a visão  daquela arma aterradora que parecia o pau da bandeira  nas quermesses de Matozinho. Enfrentar aquela surucucu, não era empreita para amador, mas obra para profissional com curso no  Butantã.
                                               À medida que os filhos foram surgindo, um a um, Uglino notou que , com a entrada de Dorinha em campo, começou uma certa disputa entre as duas mulheres, cada qual querendo ser mais fértil que a outra. Petico tentou até fazer com que as duas utilizassem algum método anticoncepcional, mas instalada a corrida da fertilidade, notou que seria impossível entregar esta tarefa à Dorinha e Estelita. Buscou, então, o Posto de Saúde e um Programa do governo chamado de  BEMFAM. Lá, a D. Veneranda,a mais antiga enfermeira da vila,  tentou orientar o paciente. Ela  se mostrava visivelmente constrangida. Era uma das últimas virgens sacramentadas dali e acreditava que se nunca tinha traçado e cortado o baralho não devia lhe caber a função de dar as cartas. Mas que jeito ? Olhos fitos no chão, cara de acerola, indicou, cheia de dedos,   o uso da camisinha. Era método prático, tranquilo e, o melhor, ficaria completamente sob controle dele.  Informou, então,  de forma muito genérica sobre o uso da estrovenga.
                                               --- Você já viu , no mercado, o magarefe enchendo linguiça ? Pois é daquele jeito, viu ? Só não precisa  picotar a carne, né ?
                                                Petico fez-se meio renitente, por muitos motivos. Aquele papelzinho deixado em cima do caramelo, tinha tudo para tirar o gosto do bom-bom. Depois, pensou consigo: já madurão, vestir aquele negócio, bimba acima,  parecia perigoso. Aquilo era coisa para adolescente , arisco,  bastava triscar que a juriti levantava voo. Na  idade dele, botar aquela vestimenta,  poderia enganar um Bráulio já meio sonolento e o bicho, meio bambo,  poderia interpretar aquela indumentária como touca  e botar-se pra  dormir imediatamente. Mas o certo é que  Veneranda tinha poder de convencimento e conseguiu, mesmo com todos arrodeios possíveis,  derrubar  os seus temores. Iria correr tudo às mil maravilhas, logo ele se adaptaria e conseguiria, por fim, pôr os dois times em disputa , fora de jogo.  Basta de tanto crescei e multiplicai !
                                               Na semana seguinte, depois da via sacra de feiras,  Uglino volta ao Posto preocupado. Procurou D. Veneranda que, ocupada, estava aplicando algumas vacinas numa récua de meninos. Com aquela voz tonitruante de camelô de feira , ele gritou, ainda da porta , sem se incomodar com a plateia :
                                               --- Enfermeira ! A tal da camisinha não deu certo , não !
                                               D. Veneranda,  com cara de urucum, se fez de mal entendida.
                                               --- Deu , não... ? E o que aconteceu , meu senhor ? Rasgou ? Estas costureiras de hoje...
                                               Uglino, quase berrando,  relatou um sério defeito de alfaiataria :
                                               ---  Não ! Ficou foi pegando marreca !


Crato, 28/ 11/ 14

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Clareira

Oremildo Jurema foi eleito com uma votação estupenda em Matozinho. Coisa de deixar o partido contrário de crista caída, mas para baixo que escada magirus de colher maxixe. Sinderval Bandeira ou Bandalheira( como era conhecido por todos) alternava-se no poder municipal, junto com apaniguados, há mais de 20 anos. O tempo , como um cupim inexorável, lhe foi roendo o brilho e a fama; o poder lhe foi proporcionando mais insatisfeitos que correligionários. A ascensão  de Oremildo , até então um nome totalmente desconhecido, apareceu naturalmente, talvez por falta de maiores opções. Montara uma pequena padaria na vila chamada de “Pubas & Manzapes” , progredira com alguma rapidez para os padrões locais e terminara por se candidatar sem muitas pretensões. Percebeu, sem ser necessário folhear nenhum compêndio de psicologia, que Matozinho vivia uma terrível crise de autoestima. A vila fora até anos atrás uma referência em toda região, mas nos últimos quinze anos, vinha perdendo terreno continuamente para Bertioga. Antigo distrito de Matozinho , a localidade tomara um impulso tremendo após o pretenso milagre acontecido, alguns anos atrás, quando se encontrou a milagrosa imagem de N.S. dos Desafogados ,nas enchentes do Rio Paranaporã. A partir daí, foi um não parar de esticar, de crescer tanto populacionalmente como economicamente, com o advento das seguidas romarias a Bertioga.
                        Oremildo montou-se neste banzo da população pelos tempos gloriosos e prometeu o retorno do passado e dos bons momentos da Vila de Matozinho. Não lhe foi difícil tocar a campanha de reabilitação, uma vez que os matozenses associavam a derrocada da vila às sucessivas e desastrosas administrações de Sinderval. Abertas as urnas, a lavagem se mostrou histórica: Oremildo viu-se eleito com mais de setenta por cento dos votos válidos. Votação expressiva, expectativas multiplicadas. A cobrança das promessas feitas em campanha não demoraram a se concretizar. O grande problema é que Oremildo mal tinha condições de administrar a “Pubas & Manzapes” e , achando pouco, viu-se ainda cercado de secretários fracos como caldo de andu. Passada a metade do mandato, não se tinha uma obra de mínima importância para apresentar. A vila regredia a olhos vistos e já parecia apenas um mero dormitório de Bertioga. A língua viperina do povo matozense não parava de tagarelar: essa era a sua única defesa : pinicar o oratório do prefeito.
                        Oremildo pressionado, reagiu como se intuitivamente tivesse incorporado Gobbels: com propaganda. Criou uma grande rede de puxa-sacos e passou a espalhar , por todo canto, histórias da carochinha, numa espécie de pabulagem pública , um deliberado projeto de cagamento de goma. Espalhava que conseguira, em Brasília, verba para construir um estádio, uma quadra coberta, um Centro de Convenções . Apresentava ainda a planta de um Elevador do Açude do Sabugo até o topo da Serra da Jurumenha e a verba, dizia,  já estava garantida. Pegava ainda carona nas obras desenvolvidas na região pelos governos estadual e federal, sem lhes  ter dado, em contrapartida,  um pau pra bater num gato. Os matozenses , de início, até se abestalharam com as novas promessas, mas rápido, como não dá para enganar  todos durante todo tempo, descobriram, fácil, a manobra. Faltava gaze no posto de saúde, merenda escolar para garotada, professores e funcionários viviam com salário atrasado:  a propaganda desvanecia-se frente à dura realidade cotidiana. Todos se perguntavam onde era aquela ilha da fantasia que Oremildo administrava pois desejavam se mudar para lá.
                        Os matozenses passaram a tomar a propaganda descabida dos apaniguados de Oremildo, como mangofa. A irreverência é a última defesa às mãos dos desafortunados. Semana passada, um dos maiores críticos do prefeito, o velho Mané Vieira, chegou na praça da matriz e, estranhamente, passou a criticar todos aqueles que viviam falando do prefeito, um homem bom, cumpridor de promessas e grande administrador. Os amigos das rodinhas de praça estranharam a mudança súbita de Mané. Estaria tresvariando? Estava ficando gagá e conversando arisias ?
                         Uma das maiores promessas de Oremildo na campanha tinha sido a construção de uma estrada ligando Serrinha dos Nicodemos a Matozinho. A obra fazia-se naturalmente difícil pois tinha que varar  toda a Serra da Jurumenha, subindo e descendo, pois Serrinha ficava justamente do outro lado da montanha. Na noite anterior, uma chuva grossa tinha caído na vila e fizera rolar uma grande pedra do topo da serra, ladeira abaixo,  e abrira uma grande clareira na cabeleira da serra, perfeitamente perceptível de Matozinho. Quando se discutia a possível demência do velho Mané Vieira, ele se mostrou mais lúcido do que sempre:
                        --- Povo falador esse de Matozinho ! Vôte ! Oremildo promete, Oremildo cumpre !
                        E,  mostrando  a clareira no alto da serra:

                        --- Ó ali onde já vem apontando a estrada de Serrinha ! Lavem a boca quando forem falar o nome de Oremildo, seus fofoqueiros miseráveis !

17/11/14

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Sitônio da Furquia

J. FLÁVIO VIEIRA


                               Vivendo em áreas inóspitas, onde a sobrevivência parece mais uma dádiva dos céus, a pobreza , nos cafundós-do-judas ,  desenvolve técnicas de guerra contra os rigores da natureza. Sabe que qualquer pequeno detalhe pode ser crucial e muitas vezes o determinante entre a vida e a morte.  Talvez, por isso mesmo, a solidariedade seja um sentimento bem mais presente por ali que nas grandes metrópoles, onde somos todos estrangeiros dentro do mesmo país. Nos grotões, o  sofrimento  e a sequidão ao derredor umedece as almas e as torna mais maleáveis e afáveis. A cacimba e  o paiol  passam, facilmente, a ser bens comunitários. As cercas das senzalas naturalmente se desfazem       , como que dando exemplos pedagógicos aos muros da casa-grande.
                        Em Matozinho, assim, logo que a TV anunciou a Seca no Sudeste do Brasil, a gandaia se agitou. Conhecia  bem aquela paisagem cinza :   leitos dos rios se transformando em estradas, carro pipa sendo disputado a tiro.  Os matozenses , de conversa em conversa, começaram a se preocupar. A notícia, porém, não lhes causou  estranheza, ora o Beato já havia até cantado a pedra: “O Sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão!”. O problema, na visão dos matozenses, é que os sulistas são mofinos danados e não entendem  desse negócio de seca. Faltou chuva um mês por lá, dá desespero, neguinho bota pra chorar e fica esperando o fim do mundo.
                        --- Aqui, nós já somos tudo bargados.Tem peixe em Matozinho com três anos de idade que ainda nem sabe nadar! Tem menino já encabelando que, quando vê chuva caindo, sai correndo doido pensando que o céu tá se rasgando! Essa miuçaia das bandas de lá, tudo engravatado e cheio de carambas e uais  não aguenta o arrocho, não!
                        Foi pensando no aperreio do povo  do Sudeste que Sitônio da Furquia, um marcador de cacimba de Matozinho, resolveu fazer um adjunto para ajudar os irmãos do Sul neste momento tão ressequido e difícil. Sitônio viera dos Inhamuns e se gabava de entender do assunto como ninguém.
                        --- Comi palma frita, mucunã lavada  nove vezes, espremi mandacaru e raiz de imbu pra tirar  a água. Em estiagem sou PhD !
                        Sitônio reuniu alguns amigos mais próximos e criaram um Coletivo que matuto agora, depois de Lula, tá é chique meu filho ! O famoso C.L.P.  – Coletivo Língua de Papagaio. O objetivo principal era desenvolver técnicas  anti-estiagem com o fito de ajudar os irmãos do Sul, nestes novos tempos de choro com lágrima em pó e ranger de dentes sem saliva. E lá se reuniram inúmeros especialistas no assunto: esgotadores de fossas, tiradores de mel-de-abelha, profetas de chuva, caçadores de tatus, curiosos e sobreviventes.  Aos poucos , nas reuniões, o CLP foi catalogando pontos importantes a serem desenvolvidos. Técnicas de marcação e cavamento de cacimbas e poços; plantio de xerófitas aguaceiras como imbu, mandacaru e palma; economia de água catalogada no seguintes pontos:  banho em dedal, banho de cuia, sabugo e caco de telha,  uso de espanador como papel higiênico, tapagem e reparo de vazamento de potes, jarras, cabaças e ancoretas; aproveitamento de fontes alternativas como : barriga d´água, água de joelho. O Coletivo Língua de Papagaio já tinha organizado todo um Dossiê e dirigiu-se ao prefeito Sinderval Bandeira que prometeu levar a questão adiante,  quando , por fim, as eleições terminassem. É que, em período eleitoral, nada sai do lugar, o país todo pára e só se pensa em voto.  Nem mesmo paulista dá por falta da água !
                        Passada a eleição, Sitônio já se preparava para se dirigir à prefeitura com as ideias escritas, num grande calhamaço de papel almaço, pelo escrevinhador geral da CLP: Totonho das Cabaceiras. Pensava em dar continuidade ao projeto , formar a equipe e oferecer os serviços de consultoria  aos sulistas que andam mais perdidos que tucanos em noite estrelada. À noite, no entanto, “Da Furquia” soube da ruma de impropérios que o povo do sul estava jogando em cima dos nordestinos, por conta do resultado da eleição. Chamados de burros, de idiotas e ameaçados de morte até, por terem votado segundo sua própria vontade. Tinha até uns jornalistas inflamados, rogando praga, falando numa tal de  separação:  apartar o Brasil em duas bandas: a sabedoria e progresso na parte de  baixo e a burrice e o atraso na porção de riba. Sitônio, fulo da vida, chamou uma reunião de emergência do CLP. Decidiram, por unanimidade, cancelar a assessoria proposta  ao Sudeste.
                        --- Pois se é assim que vocês querem seus brocóios, que assim seja ! Guerra é guerra ! Cuidado com a lambedeira de doze polegada no vazio, viu ? Se vocês não aguentam o pote, como não vão se meter a pegar na rodilha ! Uma ruma de maricas desses que se caga com medo de seca,  ainda tem a cara de pau de querer desfazer de nordestino ! Querem separar o Brasil? Pois lembrem que aqui em cima vai ficar o cuscuz, a tapioca, a buchada e a galinha de cabidela.  Pois se lasquem na seca que não vamos ajudar ninguém , não ! Querem água,  é ? Pois lá vai : Azeite , senhora vó !
                        No mesmo dia andaram dando uns safanões num pobre mestre de couro de Matozinho. Motivo ? Por azar,  o homem tinha o nome de “Sulino”.
                        Andaram comentando, dias depois, na praça,   que Sitônio tinha botado um nome muito esquisito numa jumenta do seu roçado. Dias depois, alguns membros do CLP passando por ali,  mataram a charada. A jumenta estava sendo coberta, na manga, pelo jumento de lote.  Meio agoniada com a virilidade excessiva e monumental  do companheiro, tentava se safar , em vão, do assédio sexual, subindo uma ribanceira.  Nisso, ouviu-se quando Sitônio gritou, revelando, por fim, o apelido estrambótico que colocara na biroba:
                        ---  Aguente o ferro !  Num rifugue não ,  viu,    seu  Diogo Mainardi !

Crato, 06/11/14

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

De cima ou de baixo : um mesmo Brasil



J. FLÁVIO VIEIRA

Brasi de Baxo subindo,
Vai havê transformação
Para os que veve sintindo
Abandono e sujeição.
Se acaba a dura sentença
E a liberdade de imprensa
Vai sê legá e comum,
Em vez deste grande apuro,
Todos vão te no futuro
Um Brasi de cada um.
Patativa

                                               O certo é que o ninho tucano já tinha preparado o alpiste e o xerém para comemoração. A Grande Mídia, devota aliada, já havia colocado o smoking para a festa e havia filhotes por todo o terreiro esperando o aviso para começar o rapapé. O diabo é que o tiro saiu pela culatra e todos ficaram encandeados com o brilho de uma estrela que resplandeceu nos céus do Brasil. Baile desfeito, fantasias rasgadas, o desapontamento da Mídia levou-a, imediatamente, a buscar culpados pelo cancelamento das festividades. E o culpado mais óbvio, quem seria? Ora, o mordomo !
                                   De imediato os colunistas dos grandes jornais, mostrando mapas e infográficos, tentavam demostrar que o país estava dividido: Norte e Nordeste, todo vermelho ; Sul, Sudeste e Centro-oeste azuis. A pobreza, o atraso, a dependência econômica haviam eleito a candidata pior. As Redes Sociais, de repente, se viram atulhadas de insultos , impropérios, ameaças, ditos preconceituosos contra nortistas e nordestinos, coisas dignas do III Reich. E o bombardeio não pára !  A Casa Grande não se conforma  com qualquer movimento abolicionista, parece que vivemos ainda em pleno Século XIX.  Se o eleito tivesse sido o candidato tucano, com a mesma margem de votos,  a linha editorial seria completamente diferente. Não haveria divisão, estava tudo perfeito, a virada era mais que esperada, finalmente brotava a esperança no país. Basta ver todo o material pronto pela UOL, ligada à Folha de São Paulo, já pronto para comemoração, que terminou vazando depois da derrocada. Só encômios e elogios ao bravo povo brasileiro.
                                   A divisão alardeada é a mais perfeita falácia. Não  os chamo de levianos porque dá um azar miserável. Segundo os publicitários , o povo, em todo o mundo, vota de maneira pragmática. Todo eleitor pensa especificamente em que candidato, se eleito, poderá melhorar sua vida pessoal e profissionalmente. O nosso bem-estar próprio é o que conta, a felicidade da nação é apenas uma questão distante e filosófica.  Os médicos apoiaram abertamente os tucanos ao se sentirem feridos pela quebra da reserva de mercado trazida pelo “Mais Médicos”.  Assim, na França, Bordeaux é historicamente socialista, única e exclusivamente porque seus habitantes entendem que são os socialistas que têm uma sensibilidade maior para seu meio de vida : as vinícolas. A Flórida é secularmente Democrata e a Califórnia Republicana. Se se reparar direitinho, não dá para pintar as regiões do Brasil de Vermelho ou Azul.  Aécio ganhou no Sul e no Sudeste, mas lá Dilma teve mais de 26 milhões de votos, inclusive mais que em todo Norte-Nordeste.  Cotejem , minunciosamente,  Fortaleza, onde Dilma teve franca maioria, possivelmente perdeu nas urnas da Aldeota e do Meireles. No Leblon, no Rio, Aécio saiu vitorioso. Em  Caetés, Pernambuco, terra de Lula, Dilma teve 90% dos votos, mas 10% escolherem o tucano. Em São João Del Rey, terra do peessedebista, Aécio teve 65% dos votos, mas 35 % sufragaram o nome  da Dilma. Em Minas , estado natal do peessedebista, ele levou uma peia histórica. Se houvesse a divisão alardeada pela mídia e pintada no mapa do Brasil, Aécio teria sido o grande vitorioso, com uma margem gigantesca de votos. Simplesmente a população vota naqueles em que mais confia para resolver seus problemas mais prementes.  Pois foram os brasileiros espalhados no  Sul,  Sudeste,  Norte, Centro-oeste e Nordeste que deram a maioria absoluta à candidata petista.  Há de haver  razões mais justas para explicar o fenômeno.
                                   A elite brasileira tem que entender : o voto de cada um dos brasileiros tem o mesmo valor, independente de raça, cor, grau de instrução, poderio econômico. Os ricos e remediados sentiram-se  feridos em seus interesses por conta da regulamentação do emprego da doméstica ( ninguém pode mais ter empregada!); pela melhoria das condições de vida da pobreza que agora tem moto e carro e ninguém mais anda no trânsito; por ter aparecido nos aeroportos, coisa antigamente só de grã-fino; por não mais querer trabalhar no campo , só que com diárias de R$ 10,00.  Antes de apregoar que foram os votos comprados pelo Bolsa Família o responsável pela derrota do tucano, têm que afinar primeiro o discurso. Em off chamam o Bolsa Família de “Bolsa  Fome”, “Bolsa Esmola” , o “ vício do cidadão”. No microfone e no palanque pousam de pais do Programa .  Deduz-se, então, seguindo-se as premissas da elite,  que se D. Ruth e FHC são os pais, então, foram eles os reais responsáveis pela derrota do PSDB nestas eleições.
                                   A divisão alardeada  é perigosa e potencialmente mortal, quando incita preconceitos vis e seculares.  A Globo, a Bandeirantes, a Record, o SBT, a Folha de São Paulo, o Estadão estiveram em oposição franca e determinada à Presidente Dilma. A “Veja”, numa atitude criminosa, antecipou uma edição, nas vésperas do pleito, com denúncias caluniosas e sem prova, tentando mudar o curso inevitável da história. Sabemos que a liberdade de imprensa significa a plena liberdade do grande capital em veicular as informações de seu interesse, pois é ele que financia a Mídia. Pois é essa mesma trupe que agora tenta seccionar o país no meio, enfiando na cabeça do povo que foram os esfomeados e esfarrapados que elegeram o PT, em troca de um prato de feijão.
                                   Se deseja , um dia, retomar o poder, a elite brasileira precisa  compreender o Brasil em toda sua dimensão e complexidade. O mundo vai bem além da Avenida Paulista.  Justiça Social tem que preceder à Caridade. O Brasil, historicamente, não é vermelho ou azul, mas de todas as cores e essa é nossa mais importante grandeza.


Crato, 29/10/14

sábado, 18 de outubro de 2014

O Cabra da Peste

                
                                               J. Flávio Vieira


A década de 1860 foi trágica para todo o Cariri. Iniciou-se, por aqui, a terrível epidemia de Cólera que ceifou incontáveis vidas. Só  no primeiro ano da tragédia, 1862, mais de duas mil almas  sucumbiram em Crato, Milagres, Barbalha, Jardim, Missão Velha, Santana. A região entrou em pânico, pessoas abastadas fugiram, o Exu bloqueou, com fogo de artilharia,  a entrada de pessoas vindas do Cariri, temendo contaminação. Um padre negou-se a dar extrema unção ao Padre Marrocos , um seu irmão em Cristo, e outro escafedeu-se para outras paragens. Segundo o Jornal “O Araripe, o delegado de Crato Francisco José de Pontes Simões, abandonou seu cargo,  temendo a peste, só voltando “gordo e rechonchudo” quando os casos começaram a rarear, dois anos depois. Como em toda grande epidemia, não houve respeito a classes sociais, a sexo ou  poderio econômico. A população terminou dizimada igualmente. Imaginem uma hecatombe dessas no Cariri, em tempos em que quase não havia profissionais de saúde, em que inexistiam hospitais, em que nada se sabia sobre a causa e tratamento da doença. Aqui em Crato foi preciso construir um novo Cemitério, ali nas imediações da Igreja de São Miguel, a fim de acolher as incontáveis perdas. Estabelecida a histeria coletiva, não tão diferente do que acontece hoje com o Ebola, muitos foram inumados ainda vivos, igualzinho  à Peste Negra, na Idade Média.
                                   Designado a vir combater a epidemia  no Cariri , aqui chegou, em 1861, o médico militar Dr. Antonio Manoel Medeiros.  Chefiou, na região, uma equipe que incluía os Drs. Pedro Théberge  de Icó , Cristovão Holanda Cavalcanti e Manuel Marrocos . Trabalhou incessantemente até 1864 , visitando todas as cidades acometidas da moléstia e , com os parcos recursos disponíveis, buscou minimizar as mortes e lenir o sofrimento. Dr. Medeiros era natural de Aracati, onde nascera em 1820 , formara-se na Bahia e a ele devemos a primeira cirurgia realizada no Sul do Ceará. O ato aconteceu em 29 de Novembro de 1861, uma amputação, registrada no Jornal “O Araripe”. O paciente foi cloroformizado , esta sendo também a primeira anestesia registrada nestas plagas. Um avanço formidável para a época, uma vez que o Clorofórmio passou a ser utilizado apenas a partir de 1846, na Inglaterra.
                                   A vida de Dr. Antonio Manoel de Medeiros  foi épica. Poderia fazer parte da Ilíada caririense. Tão logo deixou o Cariri, foi designado , como voluntário, para a Guerra do Paraguai, onde prestou serviços valiosos como Diretor em  hospital de Montevideo.  Terminou condecorado comas Ordens de São Bento de Aviz, da Rosa e de São Gregório Magno em Roma. Exerceu, a partir de 1872, o cargo de Delegado do Cirurgião-Mor do Estado do Ceará. Logo depois, enfurnado no interior do estado, no combate a várias epidemias de Varíola e  Febres, adoeceu , em viagem de Icó a Fortaleza,  e veio a falecer em Limoeiro, em 1879, aos 52 anos. Faltou-lhe, nos últimos instantes,  a assistência médica que durante toda a existência proporcionou a  grande número de cearenses pobres e famintos.  Numa vida tão breve, imersa numa Arte tão longa, além dos estudos, das viagens seguidas, do combate incessante às epidemias, do trabalho no campo de batalha, o que lhe terá sobrado para dedicar à sua vida pessoal e à sua família ?  
                                   O certo é que o Dr. Medeiros  ofereceu-se quase à imolação no altar da Ciência. Deu-nos o melhor da sua arte e o melhor dos seus dias. Lutou, palmo a palmo, contra um inimigo terrível e desconhecido, enquanto tantos escapavam pela tangente. O Cariri nada lhe ofertou em troca, nem o mais simplório reconhecimento. Sequer o nome de uma rua, de um hospital, de um edifício. Nem mesmo uma citação honrosa. Nada ! Cento e cinquenta anos depois, neste dia dos médicos, lhe ofereço este texto , simples, descolorido, cru. Mas percebo , claramente, que é por conta de pessoas despojadas e corajosas como o Dr. Antonio Manoel de Medeiros que ainda vale a pena exercer a Medicina não como técnica , mas como vocação, fatalismo  e arte. São artistas como ele que impulsionam os movimentos de rotação e translação da terra.


Crato, 17/10/14 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O acordo ou a corda

Nas últimas semanas,  o Crato se viu assaltado por uma onda de seguidos suicídios. Alguns deles em pessoas jovens que deviam carregar nos olhos o dourado sonho da existência.  Este ato extremo, que leva pessoas a fugirem pela porta dos fundos, põem toda a cidade em polvorosa. Parentes e amigos jamais tirarão da mente um certo sentimento de culpa : -- Eu poderia ter pressentido os primeiros sintomas e , quem sabe, evitado a catástrofe ! Os conhecidos e transeuntes embebem-se num certo blues, como se perguntassem : o que há de errado neste mundo que ninguém o suporta sem algum tipo de anestesia ?
                                   Longe de ser um questão meramente doméstica, os suicídios alcançam, no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde, quase 900.000 mortes ao ano. Este valor numérico , pasmem vocês, ultrapassa as mortes por guerras, os homicídios e desastres naturais somados ! E, o pior de tudo, desde a década de 70, os suicídios cresceram mais de 60 % e, ultimamente, têm tomado um vulto totalmente inesperado. Acredita-se que a crise econômica global possa ter contribuído para o aumento. O desemprego, o arrocho salarial, principalmente em países europeus, a instabilidade da economia em nações outrora prósperas, impulsionam o desencanto junto à juventude. Acredita a OMS que a urbanização desenfreada , certamente, tem exposto a população às agruras e estresse das cidades e megalópoles. Desde 2010, pela primeira vez, a maior parte da humanidade vive em zonas urbanas e não nas rurais.  Deixamos o campo e sua plácida tranquilidade,’ para a violência da rua, do trânsito, a competição terrível no mercado de trabalho. E mais que tudo, perdemos a identidade e passamos, na cidade grande, a ser apenas um número, no meio da manada, com a clara sensação de que corremos em disparada para o abismo logo à frente.
                                   Estudos têm demostrado que os laços sociais são fortes aliados na prevenção dos suicídios. Amigos, namorados e namoradas, parentes,  esposas, maridos,  filhos, companheiros de trabalho  e  de farra são os liames imprescindíveis que nos prendem à vida e lhes dão algum significado. Estudos feitos nos EUA demonstram que quase metade dos adultos se consideram solitários e este preocupante percentual é exatamente o dobro da década de 80. Este isolamento proporcionado pela urbe , certamente,  estaria impulsionando os casos de depressão responsável esta  por mais da metade de todos os suicídios.
                                   Basta refletir sobre os destinos da modernidade , para se perceber que nós mesmos destilamos nossa própria cicuta. As pessoas fogem dos relacionamentos sérios, como o trombadinha da polícia. As relações passaram ser na sua maioria transitórias e eventuais : amizades coloridas, rolos, ficas. Mulher ou homem que consiga uma certa ascensão econômica prefere a cueca ou calcinha do parceiro na cadeira, nunca no guarda roupa. Casamentos se dissolvem como gelo em Teresina: a primeira cara feia, o primeiro bate-boca ou arranca –rabo é motivo para o divórcio. Já há incontáveis casais que simplesmente optam por não ter filhos, sob a alegação de que atrapalha demais e dá muita dor de cabeça. A explosão da comunidade global fez com que a comunicação ficasse, aparentemente,  mais fácil, mais rápida com o Smartphone, a Internet, o WhatZapp, as Redes Sociais. A tecnologia aproximou absurdamente os distantes, mas afastou terrivelmente os próximos. Nas rodas de bar , já não se conversa: se tecla. Passamos a ter incontáveis amigos virtuais, mas praticamente deletamos os amigos reais. O Curtir substituiu o bate papo, o olho no olho, o toque, o abraço. Não bastasse isso, a vida profissional se tornou um verdadeiro campo de guerra. Já não temos companheiros mas competidores. O objetivo de todos é o mesmo do Flamengo :  vencer, vencer, vencer. Como em toda maratona poucos vão ao pódio e muitos são os derrotados.  Viver é consumir e aí daqueles que ferirem esse mandamento básico. De repente, uma grande turba percebe-se só no mundo aniquilada : sem família, sem amigos, sem agregados, sem companheiros.  O parto atravessado da vida não se suporta sem anestesia: álcool, lexotan, tabagismo, cocaína, fanatismo, religião,  moralismo...  A solidão no meio da turba talvez seja a mais cruciante solidão. Vale a pena continuar a jornada ?
                                   Há algo errado na viagem, quando tantos desembarcam antes da estação final.  É preciso mudar o roteiro, aproximar o grupo de viajantes para que possam dividir a estafa do caminho e desfrutar juntos a paisagem que passa definitiva na janela. Como o trem   segue sempre  para o descarrilamento inevitável, o companheirismo, a solidariedade, a  amizade , no final, serão a única atração verdadeira do nosso roteiro turístico. Não dá para viver sozinho, nem existe felicidade individual. São as nossas relações interpessoais que nos atam ao vazio da existência. Só temos duas opções neste mundo : o acordo ou a corda.


Crato, 08/10/14 

sábado, 4 de outubro de 2014

Muito joio para pouco trigo



E cá estamos nós, mais uma vez, às vésperas de eleições. Amanhã estaremos postados diante das urnas prontos a , democraticamente, assinar um cheque em branco e uma procuração para aqueles que nos representarão nos próximos quatro anos. A responsabilidade é grande e, talvez por isso mesmo, esse período se encha de paixões desenfreadas e  tantas vezes incontroláveis. Torcidas se dividem nas arquibancadas no grande jogo da Democracia.      
Uma parte dos espectadores , temerosos dos arroubos típicos da época, simplesmente se isola : eu não gosto de Futebol ! O grande problema é que, na partida que vai se desenrolar, está em jogo não apenas um mero placar ou a alegria ou tristeza da vitória ou derrota. Ela definirá nossa saúde ou doença, nosso salário no final do mês, o preço do arroz e da farinha na bodega da esquina, a qualidade da educação dos nossos filhos, a tranquilidade de andarmos na rua sem armas apontadas para nossa cabeça, a segurança do nosso emprego. Ou seja : não somos torcedores mas atletas, sair do jogo significará, apenas, desfalcar o nosso time e ter que engolir as consequências do placar desfavorável.  
Outros, simplesmente, alheios às consequências futuras, passarão para o time adversário, facilmente, vendendo o passe, de forma imediatista, por um chinelo, um milheiro de telha, um dinheirinho a mais, por um emprego ou futuras licitações ( aí varia apenas o preço da sem-vergonhice). Terão assim negociado, como Judas, o futuro dele e de seus filhos. Transformam , sem pejo, o grande templo democrático, num bordel.
Grande contingente de brasileiros, no entanto, começa a ter ciência da importância da eleição. Passa a entender que a culpa das deformidades seguidas dos políticos, metidos em escândalos reiterados de corrupção, tem um só e grande responsável : o povo que os elegeu. Os políticos são apenas o reflexo perfeito dos eleitores: nem mais nem menos.  Teremos representantes melhores quando melhorar o nível ético dos representados. Quem suborna o guarda de trânsito para evitar a multa; quem arranja uma sinecura para um parente; quem sonega o imposto devido; quem embolsa o dinheiro público em qualquer cargo que exerça,  tem hombridade moral para se escandalizar com os desfalques de políticos e apaniguados ?
Claro que o cidadão comum pode se sentir  na berlinda na hora de escolher o menos pior. Não pode confiar no marketing dos candidatos que prometem como sem falta e faltam como sem dúvida. Por outro lado, toda grande mídia é perfeitamente facciosa : Rádios, TV´s e grandes jornais defendem seus patrocinadores que apoiam os candidatos do interesse do grande capital e não do zé povinho. O Brasil, praticamente, não possui partidos políticos, apenas um amontoado de candidatos unidos por interesses comuns,  geralmente pútridos e escusos. Como escolher ?   Como separar o pouco trigo em meio à profusão de tanto joio ?
No caso específico dos deputados,  é catar aqueles que mais se associam com a defesa da nossa classe. Se sou peão, dificilmente o empresário me representará. Se sou canário, certamente o gavião não será meu melhor representante.  Se o candidato pleiteia a reeleição , avalie-se o que ele fez na anterior, que projetos apresentou e que frutos estes projetos trouxeram para nosso quotidiano. Na eleição presidencial o mais importante é responder à pergunta: Minha vida melhorou ou piorou nos últimos anos ? Estamos melhor agora do que há dez anos atrás ? Emprego, moradia , salário, acesso à escola melhoraram ou pioraram ? A resposta a essas perguntas pode nortear nosso voto mais preciso e consciente.
 No horizonte delineiam-se dois projetos políticos claros : de um lado aquele que centra sua maior atenção na população mais simples e carente , a fatia maior da população brasileira, que vê o estado como responsável direto por nosso bem estar. Do outro,  um projeto centenário que foca sua atenção na elite brasileira que deve receber todas as benesses e distribuí-las caritativamente com a pobreza, nesta plataforma o estado é sempre um árbitro distante e cada um deve se virar como  puder. O cardápio está à mesa, escolham os pratos e vamos ao grande  jantar democrático, palatável ou indigesto, a escolha é sua !


Crato, 03/09/14

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Arca


J. Flávio Vieira

                                                               Passados tantos anos, as imagens se vão turvando, surpreendidas, aqui e ali,  apenas pela fresta da saudade. A ausência, antes dolorida como uma chaga aberta, foi, aos poucos , se anestesiando, bafejada pelo bálsamo do tempo, mas a cicatriz  permanece ainda sensível como um queloide. A vida, depois do cataclismo, precisou ir tomando jeito. Recolhidos os estilhaços do cristal esfacelado, tentamos recompor o amálgama dos dias e das horas. Restou-nos o ranço final do caju sorvido , esse travo que  lutamos para não obscurecer o dulcíssimo sabor da polpa que o antecedeu. Afinal, a vida talvez seja exatamente isso : a capacidade de se ir reconstruindo nosso mundo a cada dilúvio prenunciado, catando e depositando na Arca os nossos despojos de guerra.
                                                               Fecho os olhos e tento te imaginar nonagenário, como serias hoje. O tempo te teria sugado todas as forças ? Manterias o vigor mínimo para apreciar os milagres da existência ? A inexorabilidade dos dias te levaria a um estágio no reino vegetal antes da mineralidade extrema, destino de todos nós ? Serias um velhinho lépido, com um mínimo de dignidade, ou apenas mais um objeto de decoração da casa ? Fecharias o ciclo da vida, retornando à outra extremidade da infância, ou obterias o privilégio da lucidez, do bom humor e da resignação que sempre te foram fortes aditivos  existenciais ? Desfrutarias de  uma vida ou apenas de  sobrevida ?

                                                               Estas perguntas ferem-nos como um punhal, talvez porque carreguem consigo a impossibilidade de resposta. Pesa-nos a certeza da imponderabilidade de tudo, do amálgama perecível dos segundos, da finitude líquida e fluida dos casos , ocasos e acasos. Nossos sentimentos assentam seus  sonhos de perenidade  na  amorfa e gelatinosa  nuvem da impermanência. Resta-nos, tão-somente, curtir cada vidrinho do cristal despedaçado , onde vemos refletido o divino acaso que nos pôs juntos na mesma viagem. Ali o caquinho do teu perene bom humor e que terminou contagiando toda a família. Acolá o fragmento do teu despojamento, pronto a enfrentar as vicissitudes sem a seriedade que elas pretendem nos exigir. Adiante o estilhaço da tua complacência ante o sofrimento e a perspectiva do abismo. Ao lado o pedacinho da tua inteligência que ainda reluz como se permanecesse imantada. Aos poucos refazemos o cristal que um dia embelezou esse mundo com seu brilho e sua transparência. Até parece que um dia não se esfacelou ante os arroubos do tempo. Ganha até um certo ar de perenidade, sempiternos fragmentos ungidos pela cola da Saudade. 

29/09/14

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Farol

Eram os gloriosos Anos 60, aqui em Crato. Vivíamos a época de ouro do futebol na nossa cidade. Campos se multiplicavam pelos subúrbios. Toda uma geração de garotos  se imantava na conquista das Copas do Mundo de 1958 e 1962. Times de Futebol Association como o “Sport”, o “Satélite”, o “Rebelde” e craques como Anduiá, Charuto, Chico Curto, Antonio e Luiz Pé de Pato, Fruta-Pão , Netinho, Pinto, Enoque levavam a torcida a superlotar o precário Campo do Sport. Paralelamente, os nossos times de Futebol de Salão ganharam renome em todo estado pela combatividade e efetividade do seu jogo. Ainda menino, encantava-me com as disputas gloriosas e acirradas entre o Votoran, o Volkswagen, a AABB e o Crato Tênis Clube e com as jogadas de craques como Gledson, Reginaldo, Dote, Luciano, Pernambuco, Zé Vicente, Paulo Cézar, Gilton. Desses times, periodicamente, se convocava a aguerrida Seleção Cratense de Futebol.
                                   Com tantos embates empedernidos e fabulosos, surgiu a necessidade imperiosa do seu registro midiático e foi justamente neste período que floresceu o jornalismo esportivo da região, em Crato polarizado entre as duas Rádios : a pioneira Araripe e a jovem e recém-inaugurada Educadora. Foi neste cenário e com alguns célebres personagens que aconteceu, nessa época, o mais monumental acontecimento da história radiofônica caririense.
                                   A Seleção Cratense de Futebol de Salão , multivitoriosa, viajou para um embate duríssimo com a Seleção de Iguatu que jogava em casa. A transmissão naqueles tempos áureos era dificílima. Iguatu encontrava-se numa zona silenciosa de radiodifusão e só existiam duas maneiras de executar a tarefa. Conectar a rede diretamente no fio do telégrafo ou na linha do trem, captando, depois, por fios, diretamente aqui, os sons possíveis e múltiplos que viessem. A qualidade era péssima, cheia de ruídos e sons adventícios, principalmente quando se utilizava a modalidade linha do trem. E mais, sem possibilidade de comunicação direta com a Rádio local, nunca se sabia se a transmissão estava sendo possível. Era  sempre um tiro no escuro. Pois bem, a Rádio Educadora adiantou-se e, em ofício, solicitou a linha aos “Correios e Telégrafos”. A Araripe ficou no olha-e-veja, tarde despertou para o fato de ter sido sobrepassada pela concorrência . Restava-lhe, tão somente, optar pelo péssimo recurso da linha do trem e a incerteza da possibilidade de retransmissão ou a certeza de perder a audiência para a Educadora por conta da baixa qualidade sonora. Um jovem locutor esportivo, então, teve uma ideia inusitada. Ouvir no estúdio da Araripe em Crato, a transmissão da concorrente e , através dela, fazer a própria veiculação da partida, como se lá estivessem. O comentarista esportivo, mais tarimbado, temeu pela dificuldade quase intransponível do feito, mas, sem opção, acedeu. A equipe cedo se trancou no estúdio da Araripe, para que todos pensassem que haviam viajado para Iguatu e, de lá, sorrateiramente, ouvindo a emissão defeituosa e cheia de ruídos da Educadora, retransmitiram, como se lá estivessem, todo o jogo. Até mesmo o segundo gol do time do Crato , gritaram antes . Como foi possível ? O jovem locutor, atento, em meio a propaganda da Araripe, percebeu quando a torcida do Crato berrou : Gol de Gledson ! E, antes da adversária, sapecou : -- Gollll da Seleção Cratense ! Gledson ! O comentarista, anos depois, contava que o mais terrível era ter que comentar os lances sem ver e, mais, no intervalo do jogo, ver-se na imperiosa necessidade de fazer considerações minuciosas por mais de quinze minutos sobre a partida. Nem é preciso dizer que todo Cariri optou pela transmissão da Rádio Araripe, limpíssima e sem quaisquer barulhos estranhos. Quando a Educadora descobriu o blefe , estabeleceu-se uma celeuma danada, protestos e mais protestos, editoriais no noticiário. Nem sequer perceberam que haviam presenciado a mais extraordinária façanha do Rádio caririense em todos os tempos, protagonizada por um jovem locutor esportivo, ainda pouco conhecido, chamado Heron Aquino e um comentarista já mais taludo e que se tornaria, depois, um dos nomes mais queridos do jornalismo cearense : Elói Teles.
                                   Pois bem, amigos, rápido, cinquenta anos se foram desfolhando, como por encanto, na Folinha da parede. O nosso querido comentarista já hoje flutua nas ondas celestiais. Neste  dez de setembro, o Dia da Imprensa , o Cariri emudece um pouco mais, quando seu companheiro,  o jovem locutor de outrora, resolveu dependurar o microfone.
          Neste interlúdio de meio século, Heron Aquino se tornou o mais completo nome do Rádio Caririense. Locutor, Narrador Esportivo, Noticiarista, Disk-Jóquei, Cerimonialista, Assessor de Imprensa, Produtor, Publicitário, Diretor de Emissoras de Rádio, Redator e Repórter, desempenhou as mais variadas e díspares funções com galhardia, competência e simplicidade. Trabalhou ainda em Fortaleza,  na Ceará Rádio Clube e na TV Ceará e poderia ter tido uma fulgurante e próspera carreira nas terras alencarinas se  a saudade do pé-da-serra não tivesse vencido aos doces prazeres da beira-mar.  Aqui retornou e fez sua voz brilhante e característica se transformar na voz oficial da nossa cidade. Ético,  nunca fez da sua atividade um balcão de tramoias e negociatas, não precisou por qualidades em quem não tem, nem pespegar virtudes em salafrários. Equilibrado sempre propagou a notícia como um mote para que o ouvinte , do outro lado, desenvolvesse sua própria glosa.
            Sem Heron, o Rádio perde uma voz importante e isenta e um técnico de uma completude  quase que insubstituível.     Ele     seguiu, intuitivamente,  os preceitos de Pulitzer do bom jornalismo : foi sempre breve para que fosse ouvido; claro para que lhe apreciassem; original para que nunca o esquecessem e , acima de tudo, preciso para que , como um farol, muitos viessem a ser guiados por sua luz.

Crato, 10/10/14

                                     

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Desculpe, Marina, mas eu tô de mal...

       

                                               Tinha-me prometido, nestes tempos eleitoreiros, em que todos os ânimos ficam exacerbados ao extremo,  não meter minha colher de pau nesta papa fervente. Até mesmo porque todos sabem, de cor e salteado, minhas posições políticas e sempre parecerá que, catapultado por elas, não terei o equilíbrio suficiente para discernir o milho da pipoca e acabarei puxando a brasa para meu piau. Como sei  que sempre, seja quem for, partirá de suas próprias convicções , para tentar entender e interpretar os cenários que se vão configurando, não tenho pruridos e resolvi entrar no jogo. Resistir quem há-de?
                                               Nas últimas semanas, então, com o prematuro desaparecimento do Eduardo Campos e a entrada de Marina Silva, numa partida até então morna e sem maiores atrações, a Maratona ganhou múltiplos atrativos. As pesquisas têm mostrado um aumento significativo nas intenções de votos da candidata do PSB  que tem ameaçado a reeleição da presidente Dilma e praticamente aniquilou a escalada titubeante de Aécio Neves , demonstrando a curva em descendente do outrora fogoso PSDB, hoje uma espécie em vias de extinção. O clima no país, com mudanças tão rápidas no tabuleiro de xadrez, é de perplexidade. A Direitona ,que apostava as cartas todas em Aécio, de repente, descobriu que tudo era um blefe e, rápido, lançou os trunfos  na canastra de Marina, atitude que já vem sendo tomada, inclusive,  por vários membros do próprio PSDB. O grande problema é que , relutantes, não acreditam nos posicionamentos também relutantes e mais filosóficos que pragmáticos de Marina. Sabem da sua história, da sua militância sempre mais à  esquerda, inclusive como Ministra de Lula e andam mais desconfiados que cachorros em Noite de São João. Mas que opções outras teriam ? Os Petistas, por outro lado, andam tontos com a súbita mudança de cenário. De repente, a avalanche há apenas quarenta dias do primeiro turno e os necessários correções e ajustes que precisarão ser feitos de forma emergencial no curso da campanha.
                                               Por que Marina parece tão palatável para a população ? Primeiro é importante lembrar que ela encarna, um pouco, aquela saga de Lula : uma pobre, da pobre região Norte, alfabetizada apenas aos 12 anos, crescida dentro das Lutas Sociais e que sonha em um dia ser a maior mandatária do país e corrigir todas as distorções e deformidades que tão bem conhece pois viveu-as toda na própria pele. Depois, Marina surge como uma alternativa viável à alternância de poder, à polarização de mais de vinte anos, com os desgastes esperados,  PT-PSDB. Além de tudo, Marina Silva transparece além de simplicidade, honradez: sua história política tem poucas máculas até mesmo porque não exerceu muitos cargos executivos. Além de humilde, despojada, transpira dignidade, eu compraria, de olhos fechados um carro dela e ficaria feliz se fosse minha vizinha.
                                               A Candidatura do PSB, no entanto, carrega consigo dubiedades sérias , arestas difíceis de se apararem. O Programa de Governo, por exemplo, prega a Disseminação dos Conselhos Sociais, alternativa já em franco desenvolvimento na Saúde, na Educação, na Cultura, na Justiça, desde a Constituição de 1989. A Direita, no entanto, torce o nariz, acreditando que é uma tentativa  de venezuelizar ou cubanizar o Brasil. Por outro lado, reza bônus salariais para professores e funcionários públicos por desempenho, uma iniciativa francamente neoliberal, chamada de Meritocracia e que dá engulhos na Esquerda. Deseja ainda priorizar o Agronegócio, com preservação do Meio Ambiente algo parecido com fazer o omelete sem quebrar os ovos. Pretende por sua vez reduzir o consumo de combustíveis fósseis e incrementar a Energia Solar e a produção do Álcool,  sem dizer claramente o que fará com a Petrobrás e com a Energia Hidroelétrica. Propõe ainda uma Reforma Tributária, necessária mas dificílima de se articular por conta dos díspares interesses da União, dos Estados e Municípios. Quer ainda aumentar em R$ 40 bilhões as verbas destinadas à Saúde, atitude louvável, mas sem muito lastro : de onde virão os recursos ? Por outro lado,  titubeia em questões já superadas pela Sociedade, que nos remete à idade das trevas,  por mero viés religioso,  como o Casamento Gay já resolvido pela justiça e pela jurisprudência e a pesquisa com células tronco-embrionárias. Marina Silva , como cidadã, tem todo o direito de escolher e exercer a religião que lhe aprouver, o presidente do Brasil, no entanto, tem que ser necessariamente laico como determina a nossa Constituição.
                                               O mais sério, no entanto, é que se eleita, com a pequena bancada que possui o PSB, haverá a imperiosa necessidade de arrematar apoio nos partidos do Congresso. Sem suporte amplo, não se governa, lembrem de Jânio e de Collor. Apoio, significa, necessariamente, cargos que serão rateados pelos muitos partidos da base de sustentação. O governo, assim, não será do PSB, mas  de coalizão. As velhas raposas de sempre voltarão famintas ao galinheiro. O leitor me dirá, qual o problema ? Os outros não fizeram igual : O PSDB e o PT ? Claro, isso , inclusive faz parte do jogo democrático, pode ser até uma deformidade da Democracia, mas está nas regras estabelecidas. A grande questão é que o discurso de Marina fala numa “Nova Política” que vem para sepultar a “ Velha Política”. Essa “Nova Política” é indefinível, ninguém até hoje soube de que se trata, quais as novas regras e os novos instrumentos.  Que diabos de “Nova Política “ é  essa que utiliza os mesmos métodos arcaicos da anterior?
                                               Boas intenções, infelizmente, não bastam. Os bordéis, os cemitérios, as câmaras estão cheinhas de bem intencionados. Marina carrega consigo aquela carinha messiânica de beata, de irmã de caridade e promete milagres e curas miraculosas como tantos de seus pares. A mim, não basta. Já cansei de pseudo-Messias e bezerros de ouro. Sua ambiguidade crônica, tergiversando, sempre, nas questões mais importantes, me remetem àquele soldado americano da Guerra da Secessão. Temendo ser atingido,  resolveu vestir-se com a camisa do exército confederado do Sul  e a calça do exército do Norte. Imaginava que assim estaria salvo no conflito. Na batalha o que aconteceu foi que os soldados do Norte atiraram na parte de cima   e os recrutas do Sul na parte de baixo . Virar tábua de pirulito é o destino político dos hesitantes. O campo de batalha está pronto e os soldados a postos.


Crato, 03/09/14