sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Para além do vidro do aquário

 


Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre

as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Manoel de Barros

 

                                               Percebo que estes são tempos de pouca leveza. Tempos de arminhas, da ira hidrofóbica dos brucutus. A dialética foi substituída pelo monólogo imposto pelo Big Brother. Eu, perdoe-me o Ortega y Gasset, sou abrigado a ser apenas eu: que vão às favas quaisquer circunstâncias. Tomou de assalto o mundo um utilitarismo grotesto e enviesado: cristãos pregando o armai-vos uns aos outros; corruptos defendendo o fim da corrupção; desconhecidos capítulos bíblicos, até então, agora a  pregar o genocídio. Compreensível que ,nesse Admirável Mundo Novo,  a Arte seja perseguida e caçada como a raposa nas pradarias inglesas. Afinal, a Arte é libertária por excelência. Quebra amarras, folga nós górdios, derruba muros e cercas, abre horizontes.

                                   Oscar Wilde dizia que a Arte é perfeitamente inútil e Leminsky rebatia que a Ela não tem, felizmente, nenhuma utilidade prática. A Arte não saca dinheiro em caixa eletrônico; não facilita, como uma calçadeira, a calçar o sapato; não melhora artrite de velho. A grandeza da Arte está na sua inutilidade: de se postar acima das meras escalas mercantis de valores; de escapar dos códigos de barras e das planilhas do Excel; de não se deixar medir e metrificar por trenas, por balanças de precisão ou por réguas. Num mundo tão previsível e cartesiano , onde a Lei da Selva e o Código de Hamurabi ganham força de Constituição, qualquer peça que tenha na inutilidade a sua força, tem como destino imediato o lixão.

                                   O ouvinte me interrogará, de chofre: para que serve, afinal, uma coisa que não tem nenhuma utilidade prática ? E eu lhes retorno com uma outra pergunta: só as coisas utilitárias preenchem nossa vida ? Para que servem:  a brisa do mar, a graça do voo do colibri, a estonteante beleza da aurora boreal, o cheiro de alfazema da campina em flor ?  Pois a Arte tem esse propósito: o de mostrar que existe vida para lá do nosso quintal; que a parte visível e palpável ao alcance dos nossos sentidos é , tão-somente, uma das dimensões da grande complexidade da vida.

                                   A poesia, base de toda Arte, me permite enxergar para além da palavra seca do dicionário. A fotografia, o cinema  e a pintura me revelam ângulos e nuances  que me passavam totalmente desapercebidos. A literatura me traz histórias que enlevam nossos dias que, tantas e tantas vezes, despem-se da roupagem de ficção e apresentam-se nus como a mais clara realidade.  Ouvir Mozart ou Vivaldi é um teletransporte para aquele paraíso de onde um dia nossos ancestrais foram expulsos. A dança é a poesia em movimento, uma possibilidade de entender os fluxos ondulatórios e pendulares da vida.  A Arte nos permite observar a existência em toda sua amplitude e diversidade, com a imagem infinitesimal e  microscópica e a visão panorâmica de um drone.

                                   Claro, você pode apegar-se ao mundo visível que está à sua frente e engolir as  verdades pré-fabricadas que lhe vão servindo à mesa. O peixe no aquário também imagina que não há mundo para além do vidro. Se, no entanto, você quiser ir além do muro do seu quintal, desejar provar sensações  que ultrapassem os  sentidos; provar verdades outras além do caderninho de receitas que te ofertaram, você precisa de Arte. Ela lhe dará a chave, a senha  e a possibilidade de curtir o mundo com filtro e com caleidoscópio. Se não, que se pode fazer ? Apenas, depois, não venha dizer que a Arte é que é inútil.  Não será assim a  sua vidinha de paiço e xerém  na gaiola de ouro ?

Crato, 29/01/21

                                    

                                    

                                    

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

JACARÉ

 



                                   O recado veio  pela mocinha que trabalha no Posto de Saúde lá do Cipó dos Tomás. Arionildo recebeu-o meio desconfiado: era esmola grande demais para cuia do cego. Devia comparecer no posto, no dia seguinte, para tomar a vacina da moléstia da gripe que já tinha matado, sem fôlego , meio mundo de gente ali no Cipó e arredores. E a mocinha ainda alertou: botasse sebo nas canelas e fosse que ele , já beirando os oitenta, já estava mais pra lá do que pra cá e se pegasse o defluxo é certo que iria comer capim pela raiz. Sabia que velho é o bicho mais arriscoso que existe, uma espécie de azougue  para tudo quanto é de  coisa ruim. E ainda tinha um agravante: trata-se, em seu caso, de velho pobre: se caísse doente sempre faltaria alguma coisa: ou médico, ou hospital, ou UTI,  ou oxigênio, ou coveiro, ou cova.

                                   Acordou cedinho, com a barra ainda quebrando. Saiu pela estrada amanhecente, com o cheiro de marmeleiro escorrendo pelas veredas e o canto buliçoso dos passarinhos saudando a aurora. Começou a discutir com seus botões: valia a pena tomar a danada da vacina ? Coisa de graça, mandada pelo governo, parecia um chamado oficial para o cheirinho do queijo. Não seria uma maneira de se livrar da velharia e botar a mão nos aposentos da turma do cipó mole ? Viu-se, enquanto engolia a estrada poeirenta, entre a cruz e a peixeira. Se ficasse,  a gripe vinha; se corresse o governo pegava. Decidiu, constrangido, pelo apelo da agente de saúde: entre a morte agoniada , sem fôlego, da Covid era melhor a outra, também programada por Brasília, ao menos esta vinha a prestação: em módicas incúrias mensais.

                                   Tomada a decisão,  bateu-lhe outro desassossego. O presidente tinha dito que quem tem tomasse o danado do imunizante viraria jacaré. Que seria dele, naquelas brenhas, investido, agora, das sutilezas e necessidades de um lagarto ?  Não existia água, nem lagoas por ali, açudes ou barreiros   na maior parte do ano. Sentiu-se como  um crocodilo no Pantanal incendiado. Se ao menos pudesse optar por outro réptil: um calango, uma lagartixa, um bico doce... Ou até um teju, mais fácil de se adaptar naquelas terras ressequidas  na maior parte do ano e com alimento farto saltitando em locas de pedras. Além de tudo, com uma vantagem a mais: cego,  como alguns eleitores diante das urnas.

                                   Em meio ao temor, uma série de pressentimentos, rápido apareceu. Pareciam avisos anunciatórios da tragédia por vir. Romildo, seu irmão, ganhou no jogo do bicho na semana anterior com a dezena 57: Jacaré. Ontem mesmo encontrara na feira com um dos mais antigos casais da região Cremilda e Ioneda e Arionildo ainda era daquele tempo antigo que achava que mulher com mulher dava sempre jacaré.

                                   Tremendo, aflito, recebeu a picada no braço esquerdo, no postinho do Cipó dos Tomás. Voltou para casa com uma sensação esquisita. Uma vontade estranha de comer peixe e dar uma rabanada nos cobradores. Ao transpor a parede do açude de Coronel Sinfrônio Teixeira, Arionildo   não resistiu.  Pulou dentro e nadou livremente: como se nas águas da vida não existissem predadores, como se o mar , diferentes das ondas da existência,  sempre estivesse pra peixe.

 

Crato, 22/01/21

                                         

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

ZYKLON B

 


As imagens que vimos ontem em Manaus pareciam fotografias remasterizadas dos campos de extermínios nazistas. Lá milhares de almas sufocadas pelo Zyklon B, no Amazonas centenas exterminadas , friamente, pelo simples corte do oxigênio que lhes livrava da asfixia. I Can´t Breathe ! Nas duas situações, um massacre programado pelo estado. Na Europa , nazistas , como política nacional, em tempos de guerra, resolveram numa chacina em massa, livrar-se daquilo que consideravam um estorvo: os judeus. Aqui, programadamente também, em tempos sombrios de batalha sanitária,  numa eutanásia passiva, o governo brasileiro, simplesmente, negou-se  a amparar os necessitados, planejar uma assistência firme, para uma tragédia mais que anunciada. Virou as costas em atitude criminosa e negacionista: nomeou incapazes para tocar ministérios; prescreveu, como um charlatão de ponta de esquina, meizinhas sem qualquer comprovação científica; não moveu uma palha para conseguir vacinas salvadoras e os insumos imprescindíveis à sua aplicação; pôs-se, contra todas as evidências dos cientistas e organizações mundiais de saúde, a incentivar com atos e palavras: as aglomerações, o relaxamento no uso de medidas preventivas, a abertura do comércio e das escolas. Afinal, o problema era apenas uma gripezinha que já estava no finalzinho e só quem se protegeria eram os fracotes e maricas, afinal um dia todo mundo vai morrer... Sendo assim, porque não apressar um pouco, não é mesmo ?

                        Em quarenta e quatro anos no exercício da Medicina, fui testemunha de tragédias inimagináveis. A morte e o sofrimento sempre me pareceram irmãos siameses das nossas chagas sociais. Vi crianças morrerem de doenças totalmente evitáveis como fome, desnutrição, violência e miséria. A cura delas, percebi cedo, estava bem além do alcance do meu estetoscópio e bisturi. Eu prescrevia um comprimido para ser tomado depois do almoço e da janta, sem desconfiar que muitos não tinham sequer o café da manhã garantido. Minha função inglória  era uma espécie de enxugador de gelo ou a da criança que cava o buraco na areia da praia e , com uma canequinha, tenta transferir a água do oceano para o seu açudinho particular. A grande moléstia do país, descobri logo, era a desigualdade social, a força motriz de todos os outros grandes achaques do povo, a foice que a morte usa para estraçalhar suas vítimas. O SUS , nascido de um grande movimento cívico de Reforma Sanitária, trouxe novo alento. Com todas dificuldades , perseguições e boicotes que sofre, conseguiu erradicar nossas terríveis doenças de controle vacinal, impactou tremendamente as Mortalidades Infantil  e Materna, minorou nossas taxas vergonhosas de desnutrição e criou um banco de dados estatísticos que pudesse basear futuros planejamentos na área da Saúde.

                        Qualquer médico da minha geração carrega consigo uma mala de lembranças benfazejas e gratificantes: a memória de tantos e tantos que conseguimos salvar com nossa Arte, apesar de todas as adversidades. Do outro lado da carga, no entanto, vai-nos junto, na viagem, um caçuá  dos nossos insucessos, aqueles pacientes que , infelizmente, não tivemos a capacidade de beneficiar, seja por falha nossa, por desconhecimento ou porque o desafio estava acima dos poderes da nossa Ciência. O burrinho da nossa vida, que nos leva no topo da sela, carrega do lado estas duas malas e, frequentemente, pomo-nos a olhar para elas, talvez para se certificar para que lado a carga pende.

                        Confesso , porém, que as imagens que presenciei ontem jamais as tinha visto durante toda minha vida profissional. Pacientes morrendo aos borbotões em UTI´s e enfermarias abarrotadas,  sufocados por falta de oxigênio. Familiares abraçados chorando, médicos, enfermeiras desolados e inconsoláveis. Um dia de juízo final. Imediatamente pus-me no lugar de incontáveis colegas: estafados, cansados, sobrecarregados e , de repente, se sentindo um simples funcionário  de um forno de Auschwitz Birkenau.  Era o Dia D que o ministro da saúde havia previsto: D de desolação, D de desastre, D de demolição, D de desgraça, D  de  destruição.

                        Depois da II Guerra, os responsáveis pelo Holocausto foram levados ao Tribunal de Nuremberg e sentenciados. Aqui, passada a batalha sanitária, os culpados nem vão precisar de advogados, já estão julgados e condenados: os que morreram! Quem mandou terem pouco  fôlego !

 

Crato, 15/01/2020