sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O Violino e o Reco-Reco

                                                                                 J. Flávio Vieira




                               No  último dia 27 de setembro ,  a pedido do Conselho Federal de Medicina, o juiz federal Renato Borelli expediu liminar impedindo os enfermeiros, em todo o país , de prescrever remédios, solicitar exames e realizar consultas. A medida levantou grande polêmica, principalmente por conta do impacto que causou no atendimento do SUS no Brasil e da incontinenti  desestruturação do Outubro Rosa. Só para se ter um exemplo, a Casa de Parto David Capistrano, no Rio de Janeiro , tocada por enfermeiras obstétricas, especializada em parto humanizado, simplesmente teve que sustar suas atividades. O Conselho Federal de Medicina ( CFM) e o COFEN , Conselho Federal dos Enfermeiros, imediatamente impeliram-se numa batalha judicial que, diga-se de passagem, já se arrastava por muitos anos. De lado a lado, as artilharias passaram a disparar seus projéteis. Um médico de Toledo, no Paraná, emitiu, em rede social, um comentário extremamente grosseiro e deselegante: “Estudei 12 anos, em tempo integral, para fazer isso e jamais vai ter uma enfermeira que fez um curso de bosta de meio período, me dando ordem ! Vai limpar bosta de bunda suja, sim !”. Enfermeiros queixaram-se da atitude extremamente corporativista do CFM e este rebateu lembrando a expansão tentacular dos enfermeiros em atividades, antes, embutidas do Ato Médico.
                                               Há quarenta anos na estrada,  tenho acompanhado todo o script desta tragicomédia. Permito-me, assim, mesmo sem ter o distanciamento necessário, meter minha colher nesta sopa de letrinhas. Primeiramente, acredito que as entidades médicas e de enfermagem não podem ser criticadas por estarem apenas executando o papel que delas se espera. Destas corporações  cobra-se , justamente, que lutem pelo espaço dos seus associados no mercado de trabalho, a cada dia menos definido e delimitado com a expansão das especialidades médicas e paramédicas.  As entidades também devem impedir a conflagração de brigas pessoais e rixas individuais, elevando os embates para  as sociedades classistas.
                                               Sempre é bom lembrar como encetou esse acúmulo de atribuições, antes eminentemente médicas,  que os enfermeiros terminaram por ter que assumir. Com a criação do Sistema Único de Saúde, após a Constituição de 1988, retomou-se , por fim, o curso da Medicina Preventiva no Brasil. Com todas as deformidades possíveis, com subfinanciamento, falhas no atendimento, a mudança no modelo de assistência conseguiu, em quase trinta anos, um impacto fenomenal nos nossos indicadores de Saúde como : Mortalidade Infantil , Mortalidade Materna, Universalização, quase que abolição das doenças de controle vacinal. O grande problema é que a classe médica que aos poucos se foi diplomando, desde então, formou-se dentro de um modelo totalmente  de viés curativo e hospitalocêntrico. Esta realidade tornou-se ainda mais forte e preponderante com a expansão desenfreada das novas Escolas Médicas , muitas privadas e caríssimas. Profissionais médicos formam-se para a especialização e a superespecialização e para tratar quem pode pagar pelo atendimento. Sempre utilizaram o SUS e os Programas de Saúde da Família como mero bico: ou quando estão em fins de carreira ou aposentados ou quando recém-formados pretendem fazer um pé-de-meia, enquanto aguardam a Residência Médica. É frequente a grande volubilidade de médicos no SUS, impedindo um trabalho mais contínuo e persistente. E a questão vai bem mais além do salário que muitas vezes é bem acima do mercado, mas passa por questões de estabilidade trabalhista e muito pela própria filosofia que norteia seus sonhos e aspirações. Este vácuo fez com que os enfermeiros precisassem assumir muitas das atribuições que  antes não lhes pertenciam, todas legalizadas por Resoluções do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde: receitar dentro dos programas; acompanhar os pré-natais; solicitar exames; prescrever hemoterapia; realizar partos. Além de tudo,  os enfermeiros viram-se impelidos a assumir a maior parte das gerências de Unidades de Saúde e das Gestões Municipais de Saúde.  São os enfermeiros, na realidade, os mais importantes protagonistas do atendimento público na assistência primária, no Brasil. As entidades médicas permaneceram algo silentes, durante todo esse processo. Revoltaram-se, mais por questões ideológicas, com a vinda dos médicos estrangeiros no “Mais Médicos” e, agora, por fim, vendo a proliferação de escolas e de formandos, acordaram para a necessidade de garantir sua fatia nesse mercado.
                                               Discordo totalmente do colega paranaense, não só pela grosseria e baixeza de seus comentários, mas principalmente pela obtusidade. A Medicina moderna faz-se, necessariamente, de maneira multidisciplinar. Como cirurgião, posso até me arvorar de, em determinadas situações, ser o protagonista principal do tratamento . Mas sei, perfeitamente, que o sucesso de tudo depende de um trabalho de equipe que envolve muitos e muitos personagens: enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticos, etc. Não adianta me orgulhar como primeiro violino na orquestra,  se o virtuosismo do Concerto pode vir de água abaixo  se atravessar, lá atrás, o aparentemente insignificante reco-reco. Ademais, muitas e muitas vezes, o médico tem um papel secundário no atendimento global , como nos tratamentos paliativos, em pacientes terminais, quando o psicólogo , a enfermagem  alternam-se nos cuidados mais importantes. Por outro lado, o doutor paranaense não estudou só doze anos , como ele enfatiza na sua desastrosa citação: saúde exige formação continuada .
                                               Percebo, claramente, que há bem mais torresmo no meio dessa paçoca. Por que , depois de tantos e tantos anos, exatamente agora, sai a liminar que limita as atividades da enfermagem? O SUS, desde o seu nascedouro, luta contra um inimigo feroz que é a Ideologia Neoliberal. Para todos efeitos, nesta perspectiva de Estado Mínimo, num país eminentemente capitalista e hoje neofascista, o SUS encontra-se na contramão da história. A liminar permanecendo válida e confirmando-se, em instâncias superiores, determinará, a médio prazo, o sepultamento de SUS,   que já vive combalido e anêmico por financiamento e administração inadequados. Sem enfermagem, no modelo atual, não existe Sistema Único de Saúde. O sonho de que profissionais médicos venham a assumir as atividades que lhes competem, numa Medicina Preventiva, com foco na Atenção Básica e distribuição equânime em todas as bibocas do país ,  é filosoficamente ilusória. Nem salários à semelhança do judiciário, nem segurança trabalhística, os arrancarão das maiores cidades, nem os farão generalistas. Talvez uma carreira pública específica, bem remunerada, com dedicação exclusiva e possibilidade de ascensão profissional , do interior para beira-mar, influenciasse de alguma maneira a procura pela Saúde Pública. Seria, no entanto, um projeto de custo elevado e de efeito a longo prazo, num país em que o pobre é visto como um preguiçoso, um fracassado, um mero estorvo. Restarão, no cardápio,  aos mais desprivilegiados socialmente:  o Trabalho Escravo, a Aposentadoria post-mortem, as delícias da Ração do Dória e, para completar o kit, podem se livrar disto tudo, morrendo precocemente , à míngua, acometidos de doenças gravíssimas típicas do Século que voltamos a viver: o Dezenove.


Crato, 20 de Outubro de 2017   

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Os filhos do filhós


A cultura não se herda, conquista-se.
                                                                                   André Malraux

                               Há alguns dias, um escritor cratense ,radicado em Recife,  queixou-se ter trazido um amigo para visitar a cidade e perambulou por tudo quanto foi de restaurante em busca de nosso prato mais típico: “Baião de Dois com Pequi” e, simplesmente,  não encontrou. Observando direitinho, vemos a cidade apinhada das mais versáteis  culinárias : Sushis, Pizzas e Massas , Comida chinesa, o minimalismo francês, os fast-food americanalhados. Cafés chiques e barracas sofisticadas, de diversas franquias,  têm invadido o espaço público. As novas gerações adquiriram novos hábitos alimentares, já sob a influência de um mundo globalizado e sem cancelas. Há, claro, ainda focos de resistência mantidos, principalmente, pelos mais velhos, mas nossa culinária caririense tradicional, botou o rabinho entre as pernas , adquiriu características quase que marginalescas e reside, agora, em guetos. Onde degustar , na cidade, nas casas mais sofisticadas, um “porco na rola”, uma panelada, uma galinha à cabidela, o aluá, uma buchada, o nosso baião de dois com pequi ? E as sobremesas nossas mais queridas : rapadura, queijo com mel de engenho, doce de leite à Isabel Virgínia, alfenim, batida, o quebra-queixo, o passa-raiva, o sequilho, a peta,  onde encontra-los ? São algumas vezes vendidos, quase que clandestinamente, como se tratassem de drogas perigosas e ilícitas.
                                   Quando reitora, Violeta Arraes esperava equipe vinda da Europa para visitar a Urca. A turma de cerimonial estava prestes a preparar um jantar com frutos do mar para recepcionar os estrangeiros. D. Violeta mandou suspender a sofisticação litorânea , para o espanto de todos,  e ordenou preparassem galinha caipira e baião-de-dois para o opíparo regabofe. De camarão eles viviam fartos! O interessante era, sim, provar a doce iguaria regional.
                                   Carregamos conosco este complexo de cachorro com rabugem. Toda nossa cultura é vista, imediatamente, como atrasada, cafona: coisa para ser cultuada pela gentalha.  Submetemo-nos a um eterno processo colonizador que vem desde Cabral e que continua, agora, não mais com as caravelas, mas pelas asas céleres da TV, da Internet, das Redes Sociais. Ao mercado interessa a uniformização de desejos e preferências para empurrar seus produtos de goela abaixo. O mundo , para o capital, não tem pessoas , indivíduos : possui apenas consumidores. Estes nem percebem  que nos tornamos apenas um taxi,  aguardando a uberização inexorável do mundo à nossa volta. Sem individualidade, uniformizados pela Mídia, somos uma mera garrafa PET , sem possibilidade alguma de reciclagem.
                                   Resta-me algum fiapo de esperança quando testemunho as últimas  escaramuças desta cultura de resistência. Empresa de carros móveis, na cidade, vendendo , todo santo dia : milho cozido, pamonha, canjica. Doceiras, na praça da Sé, negociando nossos doces caseiros mais desejados. Filas para a compra de Filhós,  na barraca São José. Bicicleta oferecendo, de porta em porta, garapa de cana. Por um momento pressinto que, em meio à devastação, flores  ainda teimam em brolhar.
                                   E vem-me  , de repente, uma ideia que me parece mais que oportuna. Com tantos cursos de Gastronomia , na região, com TCC´s , dissertações de mestrado e teses sendo produzidas, por que esquecer nossa Culinária Regional ? Vamos cadastrar, enquanto é tempo, as receitas dos nossos botecos, das nossas cozinheiras e avós, dos nossos bares, das comidas dos mercados, dos cabarés, das feiras, das quitandas. Pode parecer o desvario inconsequente de uma criança buscando prender o sorvete que se dissolve entre os dedos, mas quem sabe não restará um pouquinho do doce, entre as já enjambradas falanges,  para o lambe-lambe de futuras gerações ?

 05/10/17