sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Primavera no Chile


“Poderão cortar todas as flores, mas não poderão deter a primavera”

Pablo Neruda

                               Nesta semana, o povo chileno comemorou o resultado de um plesbicito onde decidiu, por margem de quase 80% , por uma nova Constituinte , com eleitores escolhidos diretamente pela população. Enterraram, assim, definitivamente, uma das mais violentas ditaduras das Américas: a de Augusto Pinochet, responsável pela última constituição e que redundou numa fábrica de aposentados suicidas, simplesmente por lhe terem sido sonegadas as mínimas condições de sobrevivência. Não tardou para vozes que pareciam soprar dos porões dos Doi-Codis  no ouvido do ministro Ricardo Barros, lembrarem a necessidade também, aqui, de uma nova Constituinte, sob  pretexto de que a Constituição de 1988 teria “direitos demais”. O ministro , certamente, deve ter esquecido que a nossa Constituição , ao contrário da chilena, nasceu no processo de redemocratização e que o corte de direitos foi justamente o que desencadeou um imenso movimento popular no Chile que por pouco não levou à deposição do presidente Piñera.

                        Fácil entender as razões do atual governo brasileiro em acreditar que a Constituição de 1988 é apinhada de Direitos excessivos. Na realidade, opõe-se, constantemente, ao Regime Democrático e sonha com o retorno dos Anos de Chumbo, com censura ampla, prisão de desafetos sem processos legais, extermínio de muitos, fechamento do Congresso e do STF, como , inclusive, vem incentivando o seu gado a reivindicar publicamente. Pretendem arrancar direitos fundamentais como o da Educação, da Proteção Ambiental,  Liberdade de Expressão, Escolha dos seus governantes,  igualdade perante a Lei e o direito Universal à Saúde como obrigação precípua do Estado.  

                        Recentemente, o governo federal emitiu uma Portaria que abria a possibilidade de privatização das Unidades Básicas de Saúde do Brasil, uma maneira maquiavélica de encetar um processo de privatização do nosso Sistema Único de Saúde. Recuaram, como costumam fazer, frente à pressão da sociedade, mas o ovo da serpente continua na incubadora.

                        O SUS, a despeito de todas críticas cabíveis algumas e levianas muitas, conseguiu mudar totalmente o perfil da saúde brasileira. Antes dele, pasmem vocês, 20% das crianças nascidas morriam até os 5 anos de idade, por completa incúria estatal. As pessoas dividiam-se entre indigentes, segurados do INSS, particulares.  O estabelecimento de um Programa Nacional de Vacinação fez com que esta realidade mudasse drasticamente. Doenças como coqueluche, difteria, sarampo, catapora, paralisia infantil simplesmente sumiram do mapa. Tanto foi o sucesso do programa que hoje faz com que as pessoas, não vendo mais o aparecimento dessas moléstias, deixem de vacinar os seus filhos, achando que elas não mais existem. Todos os brasileiros dependem diretamente do SUS seja para os atendimentos de urgência, para os cuidados de vigilância sanitária e epidemiológica, acesso á água de qualidade, para as imunizações, medicamentos de alto custo, tratamentos de câncer, transplantes de órgãos. Mesmo os quarenta milhões que pagam os planos de saúde, muito frequentemente utilizam os serviços do SUS. Para mais de 70% da população,  o Sistema Único de Saúde é a única possibilidade para recuperação dos agravos. Com todos os problemas possíveis de subfinanciamento, de má gestão, de desvios, sem a infraestrutura do Sistema Único de Saúde, na pandemia atual da Covid-19, o país sofreria um genocídio inimaginável e nossas baixas se somariam à casa dos milhões de vidas. Os que pensam em privatizar o SUS são justamente aqueles que, no menor agravo, correm para o Sírio-Libanês ou para o Albert Einstein em São Paulo. Os Estados Unidos , a maior economia do planeta, sentiu na pele as terríveis dificuldades de combater as epidemias sem estrutura de Saúde Pública.

                        O SUS é um patrimônio da população brasileira. Foi arrancado a fórceps dos dentes do capital. Por ele pessoas foram presas, torturadas e mortas.  Os que governam o país juraram cumprir a Constituição que estabelece que é direito do brasileiro ter uma saúde integral e de qualidade e que cabe ao governo, como obrigação , proporcioná-la a todo cidadão do país. O governante que se opuser ao que jurou deve pedir demissão pois está no país errado. Pode ir aprender  no Chile !  

Crato, 30/10/2020  

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Atirando com pólvora alheia


Ninguém , de sã consciência, nem os mais emperdernidos radicais, seria capaz de defenestrar escritores como Dostoievsky e Tolstoi  dos mais altos pedestais da literatura universal. E somam-se outros russos de envergadura inigualável com Gogol, Tchecov, Maiakovsky que, de há muito, estenderam suas fronteiras e já não carregam consigo a pecha de russos: sua obra é um tributo à Arte universal. Nas artes plásticas temos toda uma vanguarda russa , dentre eles Chagall que criou uma obra onírica e desbravadora e já não cabe em meras fronteiras geográficas. A Tabela Periódica, desenvolvida pelo russo Mendelleev mudou, completamente, os rumos da Química mundial e passou a fazer parte, imediatamente, do acervo de conquistas da Ciência. E são incontáveis cientistas daquelas terras que enriqueceram a história da humanidade: Pavlov na Psicologia;
Zworykin, criador da televisão moderna; Prokhorov , inventor do Raio Laser; Shakarov, que desenvolveu a Bomba H; Tupolev que desenvolveu o primeiro avião supersônico; só para lembrar alguns. Todas essas importantes descobertas passaram a fazer parte, imediatamente, do acervo tecnológico da humanidade. A rigor, se na mente tacanha de alguns governantes mundiais, o preconceito e o racismo vivem uma nova onda, a Arte e a Ciência sempre entenderam que as conquistas são coletivas e servem para beneficiar pessoas e países independentemente de suas cores políticas, sociais, econômicas.

                                   Nestes dias , o governo brasileiro estabeleceu uma polêmica das tantas em que se tem metido na atual gestão. Pôs-se contrário à compra da Vacina contra a Covid-19, chamada de Coronavac que vem sendo desenvolvida pelo Instituto Butantã em parceria com laboratórios chineses. Segundo o nosso mandatário maior, a Vacina seria comunista. Para complicar tudo, em Santa Catarina vem sendo desenvolvida uma outra de um laboratório russo e que, certamente, deve ser alijada já que corre o risco de inocular o perigoso germe do comunismo em brasileiros desatentos. Essa loucura acontece quando a Europa convive já com uma segunda onda e o Brasil, que foi um dos piores exemplos mundiais no combate à pandemia, já conta com mais de cinco milhões de infectados e quase 160.000 mortes. Não bastasse isso, embora o próprio governo tenha assinado anteriormente, uma lei que torna a vacinação obrigatória, o presidente, desdizendo como sempre o que tinha dito, informou em alto e bom tom que só vai se vacinar quem quiser.

                            O governo governa para seus terraplanistas . Em verdade, ninguém pode ser obrigado a tomar a vacina se não quiser. É preciso, no entanto, lembrar que essa decisão não é apenas pessoal, ela vai impactar a vida de muitas outras pessoas que podem ser contaminadas por conta do seu gesto. É justo, pois, que paguem civil e penalmente por sua decisão. O presidente, pessoalmente, pode pensar e agir como melhor lhe aprouver. A posição, no entanto, do chefe da nação, é importantíssima como exemplo e ele tem que entender que quando se posiciona o faz sempre como chefe do executivo.  E o que o governo tem feito, sem usar máscara, sem manter distanciamento, prescrevendo cloroquina,  se pondo contra a vacinação e negando a compra de uma medicação salvadora por simples infuca política , a meu ver, é uma questão que, em um país minimamente sério, levaria os loucos à camisa de força.  A China é o maior parceiro comercial do Brasil, vamos deixar de comprar tudo que de lá importamos, pela simples razão de ser um país comunista ? Há poucos beijávamos seu pés em busca de respiradores. E se eles entenderem que não mais interessa comprar ao Brasil por ser capitalista ? Tá valendo ?

                            Temos um canastrão na mesa do poker, sem fichas na mesa e imaginando que ganhará todas as partidas no blefe. Não faltam perus a lhe incentivar, também descapitalizados e certos que no grito vencerão o Royal Straight Flush dos adversários.   O diabo é que com fichas alheias, a conta virá para todos nós, é só esperar.

Crato, 23/10/2020

 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Janelas

 

“Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma”

                                                     Alberto Caeiro

 

                                                                                                                        

 


                                               Quando a Comissão Científica de Exploração passou no Cariri , no finalzinho de 1859, o médico Francisco Freire Alemão, presidente da Comissão, observou, no seu Relatório, a grande quantidade de cegos na região: “Há casas que têm dois ou três pessoas cegas”, frisou ele. Freire Alemão atribuía a causa da calamidade às oftalmias e a falta de cuidados higiênicos da população. George Gardner, que estivera conosco uns vinte anos antes,  já alertara que em nenhum local do Brasil tinha visto tantos cegos.  Descobriu-se no início do Século XX que a razão de tanta cegueira devia-se , o mais das vezes, a uma doença infectocontagiosa chamada de Tracoma. No Sul Cearense, por razões ainda desconhecidas, a doença era endêmica e atingiu amplamente, nossos colonizadores, desde o início do Século XVIII. O Cariri terminou por se tornar o polo disseminador  da moléstia, para todo o Brasil, impulsionado, principalmente pelas ondas migratórias tão frequentes entre os nordestinos. No início dos Novecentos , o oftalmogista José Furtado Filho, de Crato, estimava em 80% o número de seus pacientes tracomatosos e, a seu ver,   quase a metade dos cegos devia-se à Tracoma.

                                   Em 1956 o Departamento Nacional de Endemias Rurais , em levantamento, mostrava entre 80 a 90% a contaminação por Tracoma em Crato, Juazeiro e Barbalha. Essa situação levou a que o Ministro da Saúde, Mário Pinotti, nos governos de Getúlio Vargas e, depois, Juscelino Kubitscheck, empreende-se um grande combate a esta praga aqui no Cariri, preocupado não com o nosso problema específico, mas com a certeza de que seria impossível resolver o problema em nível nacional, sem enfrentar seu principal foco disseminador.

                                   Em 1959 viria ao Crato o Dr. Hermínio Conde enviado pelo Ministério da Saúde  para  pugnar contra a terrível mazela. Arregimentou , aqui, uma plêiade de médicos de renome: Leão Sampaio, Mauro Malzoni, Possidônio Bem, José Ulisses Peixoto,  Eldon Cariri , Fábio Esmeraldo, Maurício Teles, Pio Sampaio, Lyrio Callou , Romão Sampaio, só para citar alguns. O QG foi instalado no Hospital São Francisco em Crato e esta data marca, historicamente, o declínio da terrível fábrica de cegos centenariamente montada no Cariri.

                                   Este preâmbulo fez-se necessário para lembrar um dos nossos mais heroicos combatentes do Tracoma : Dr. Ebert Fernandes Teles. Oftalmologista de formação, formado em 1952, radicado em Crato, ele fez-se um dos mais renhidos guerreiros da Saúde Ocular do estado, sob a égide do Dr. Hermínio Conde. Dr. Ebert exerceu a profissão, missionariamente, por mais de sessenta anos e, nesta semana, por fim, o tempo ofertou-lhe o merecido descanso de guerreiro.

                                    Em época tão fluida, onde a memória fixa-se , ilusoriamente, em meses e dias, os muitos que hoje receberam o prêmio de curtir a vida e a natureza com toda sua variedade de nuances e cores, no ofertório de suas orações, precisam levar flores ao Dr. Ebert Fernandes Teles que abriu janelas e frestas para que pudessem ver a vida e, depois, deterem-se nos enigmas inexpugnáveis  da Filosofia.

 

Crato, 16/10/2020