quinta-feira, 28 de março de 2019

Cabeça de Porco



“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!

 porque sois semelhantes aos sepulcros caiados,

que por fora realmente parecem formosos, mas por dentro

 estão cheios de ossos e de toda imundícia.
Assim também vós exteriormente pareceis

 justos aos homens, mas por dentro

estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.”

Mateus 23:27,28


                                               Era o dia 26 de janeiro de 1893, no Rio de Janeiro, há exatos cento e vinte e seis anos passados. Próximo à Rua Barão de São Felix, em pleno centro da Capital Federal, à época, estava instalado o mais importante Cortiço da cidade, chamado de “Cabeça de Porco”. Ali existiam centenas de casinhas e abrigou, no seu período áureo, mais de quatro mil pessoas, em geral trabalhadores do comércio, ambulantes, escravos forros ou fugidos. Naquele finalzinho dos Novecentos , calcula-se, deviam habitar, no “Cabeça de Porco”, dois milhares de almas. De há muito os governos vinham pressionando os proprietários para desocuparem o local, desejavam ampliar e modernizar e o centro do Rio , tornando-o uma espécie de Paris Tropical. Justificavam a necessidade da desocupação em nome do higienismo: aquele antro, diziam,  era uma verdadeira bomba armada com risco contínuo de fazer explodirem epidemias como Febre Amarela e Cólera. Claro que por trás do discurso médico e sanitário existiam razões econômicas atreladas à especulação imobiliária. O prefeito de plantão naquele 1893, Barata Ribeiro, em conluio com o déspota presidente Floriano Peixoto,  ordenou a invasão  da polícia, e ali esteve presente, com uma chusma de autoridades, observando atentamente a operação policial daquilo que eles chamavam de “velhacouto de desordeiros”. A horda de policiais caiu por sobre os casebres, fazendo com que os pobres moradores corressem desesperados, carregando trapos e filhos. Alguns ainda tentaram resistir mas tiveram que escapar antes que a demolição e as chamas os exterminassem.  Os trabalhos se arrastaram por toda a noite e, ao amanhecer, já não mais existia o “Cabeça de Porco”. Que fizeram os moradores esfarrapados, desvalidos, expulsos do pouco paraíso que lhes havia sobrado ? Subiram o morro mais próximo e lá, no alto, passaram a olhar a cidade de cima. Em 1897, os soldados egressos da Campanha de Canudos ( onde miseráveis chacinaram seus iguais) ali se estabeleceram com a autorização do governo e passou a ser chamado ( em alusão a um pico idêntico existente em Canudos) de “Morro da Favela”. A imprensa novecentista louvou a ação como de um feito épico o estado foi apresentado como Perseu e o Cabeça de Porco como a Medusa. Este episódio é típico da modalidade de gestão pública que se repetiu durante toda nossa história, sempre de olhos fechados para as diferenças sociais urbanas.
                                   No último sábado, 23 de março, a chamada Favela do Cimento, na Zona Leste de  São Paulo, foi destruída por um incêndio criminoso. Estava prestes a sofrer um despejo numa ação de reintegração de posse. Humildes, velhos, crianças, desempregados e famintos se viram, de repente, no olho da rua. Houve casos de morte.  O que mais chamou a atenção, no entanto, foi o buzinaço de felicidade das pessoas que passavam nos carros , nas proximidades, chamando os agora refavelados de “vagabundos”. Em 2017, o então prefeito João Dória, resolveu numa operação policialesca inócua, acabar com a Cracolândia, transformando um seríssimo problema de Saúde Pública, numa mera questão criminal. À medida que as cidades brasileiras se foram desenvolvendo, passaram a tanger para distante, com asco, suas mazelas, num processo de higienização que se repete nos séculos. Comodamente, preferimos, sempre, esconder nossas moléstias sociais, a enfrentar suas dolorosas causas, até porque , do outro lado espelho, com certeza, a elite brasileira, temente do mea culpa,  encontra refletida a própria face.
                                   Nada mudou nesses cento e vinte e seis anos. O Brasil cresceu, desenvolveu-se economicamente, mas nunca tivemos uma ideia clara de Nação. Parece-nos normalíssimo a madama fazer dieta no Spa chic e a criança morrer de fome nos semáforos das ruas. O “Cabeça de Porco” de ontem é a mesma “Favela do Cimento” de hoje, mais de cem anos passados. Os que morrem e são expulsos do paraíso são sempre os mesmos e os que riem e comemoram nas arquibancadas do país faz parte de um mesmo público: mudam os atores mas o script é o mesmo. O país, que se orgulha como o mais cristão do mundo, tem uma elite que escolhe os preceitos sagrados que deseja esquecer.  Nos domingos, contritos, vão às missas e aos cultos,  ajoelham-se nos confessionários e sabem de cor capítulos e versículos bíblicos. Andam nas ruas, nas suas cabines duplas blindadas,  hermeticamente afastados do planeta real. Seus templos são os shoppings, as academias e os spas.   Nada lhes toca o coração: a miséria alheia, a fome, a doença do próximo, a morte do outro. Tudo isso se resolve com polícia, arma e cassetete. Afinal, a fúria dos deuses para ser aplacada precisa de sacrifícios humanos, não é mesmo ? O sangue dos seus semelhantes agora corre nas platibandas da miséria, como antes encharcavam as pirâmides Incas.  A pretensa burguesia brasileira loteou o céu, fez um condomínio fechado,  e tem cada um a sua mansão garantida. Quando morrerem acreditam que seus sepulcros de mármore ainda assim lhes farão a diferença, quem sabe ,  o pó em que se tornarão será bem mais reluzente.  Cada um dos hipócritas e fariseus tem seu Deus particular, entendem que podem suborná-los como o fazem nas suas relações terrestres ( assim na terra como no céu!) , basta entupi-los de óbolos, de ofertas  e de dízimos. Dormem tranquilos e sonham com um país colossalmente próspero, um mundo sem mendigos  e desafortunados, jardins com rosas sem espinhos e frutos sem caroços, tudo brotando em solo hipócrita e iníquo.

Crato, 26/03/19     
                                  

sexta-feira, 15 de março de 2019

Milícias


               
Em meio ao cataclismo, montado no olho do furacão, sempre é difícil perceber claramente o que acontece à nossa volta. Nestes dias , dois adolescentes tomaram de assalto uma escola em Suzano, São Paulo e assassinaram friamente sete pessoas e depois, um deles fuzilou o companheiro de proeza e, em seguida,  se suicidou. Tudo fez parte de um pacto sinistro projetado por pelo menos um ano e meio.  A tragédia não é inédita no Brasil e, nos Estados Unidos, só em 2018, aconteceram dezoito massacres similares . É importante que reflitamos, um pouco, neste final de semana, como se , contritamente, tomássemos para nós alguns minutos de silêncio, sobre o ato triste em si e seus arredores.
                                   Não menos aterrorizante do que a tragédia em si, foram os esquetes que aconteceram fora do palco principal. Um filho do presidente foi ao oráculo da família -- a Rede Social -- e postou que o acontecido demonstrava a necessidade inequívoca de armar a população. Um senador, Major Olímpio, sacou, de pronto, a solução definitiva para o problema : colocar armas nas mãos de todos os professores. Comunidades na internet passaram a elogiar os assassinos como verdadeiros heróis. O governo brasileiro, de plantão na nossa frenocracia , apenas seis horas depois do massacre, deu-se ao trabalho de colocar algumas palavras de conforto, no Twitter, para as famílias abaladas pela catástrofe.
                                   Como sempre, somos afeitos às soluções simplistas que não mergulham nas profundezas abissais dos enigmas. Com a casa desmoronando optamos por envernizá-la, pensando em deixá-la com um melhor aspecto, mais esburnida. A disseminação das armas se não é o estopim disso tudo, com certeza  incrementará as ações dos loucos de plantão. Não se apaga incêndio, ao que se sabe, lançando jatos de gasolina nas chamas.  Colocar armas nas mãos de professores é , simplesmente, desviar as funções para as quais eles foram formados e tirar do estado a obrigação de dar segurança aos cidadãos , terceirizando essa atividade. O atraso governamental em trazer palavras de amparo às famílias enlutadas deve-se justamente à essa certeza: a explosão da violência urbana se intensificará com o plano de governo de armar a população. É como se, de repente, tivessem sido pegos em fragrante delito.
                                   Interessa-nos,  sempre, para combater nossas agruras mais prementes, saber, claramente, quem manipula os cordéis dos marionetes. Foram presos os executores de Marielle Franco, um dos pistoleiros, vizinho de condomínio do presidente, recebeu 100.000,00 pelo serviço. Quem encomendou a execução ?  Vimos alguns sacripantas chupando laranjas escondidinho.  Quem é o dono do laranjal do Queiroz ?  Vídeos mostraram malas e malas de dinheiro do Geddel, do Paulo Preto, do Loures. Eles são muito mais pornográficos do que o Golden Shower veiculado , com estardalhaço, pela presidência.  As taxas insuportáveis de feminicídios no Brasil  são atribuídas ao machismo reinante, quais as estratégias para aplacar os crimes passionais, como minorar o sentimento de posse ?
                                   O que tem feito com que  se multipliquem as chacinas civis no Brasil ? Claro que não existem respostas únicas para perguntas  complexas. Talvez um somatório de fatores: o estabelecimento de uma sociedade extremamente competitiva, com muitos perdedores e poucos vencedores; a baixa espiritualidade da população que nada tem a ver com religiosidade; a desestruturação da célula familiar; o culto doentio aos serial killers tão presentes e disseminados pela mídia global: os super-heróis e os super-vilões; a banalização da violência nos videogames; o distanciamento físico  das pessoas pela tecnologia;  o recrudescimento do nazi-fascismo mundialmente; o estabelecimento governamental de uma política do ódio e de extermínio dos diferentes.
                                   Queremos minorar o feminicídio ? Pretendemos acabar com as chacinas de civis ? Precisamos nos debruçar sobre todas estas questões. Quebrar paradigmas culturais centenários , sedimentados na escravidão, nas distorções sociais, na exploração do homem pelo homem. Caminhos serão longos e, certamente, difíceis de trilhar. Mas poderíamos começar no combate à política do ódio; substituindo, como arma, o revólver pelo livro; trabalhando o exercício mínimo da justiça social; entender que somos companheiros de viagem e não soldados de facções contrárias e antagônicas. Desarmemos os homens e os espíritos, aderindo todos a uma mesma Milícia : a da paz.  

terça-feira, 12 de março de 2019


SAUDAÇÃO A HUBERTO CABRAL



Parece que tudo passa para que recomece
desde o princípio, como se fosse novo, ou se observe
sem levar em conta algo que já existiu
e tampouco aquilo que virá, infindável.
Uma grande destruição, como se tudo se apagasse atrás de nós
a história, as lembranças, os valores existentes
e as imagens que nos governavam.
Alguém nos confidencia: rápido o passado se afasta de nós,
você vê como ele se transmuda, depois põe-se além do horizonte
e talvez nem mais exista, renuncia a tudo que é inútil,
se ainda recordações você preserva.
Mas, se a história passa
(ela própria é narrativa sobre a transitoriedade), algo permanece:
de cada conceito antigo uma ou outra raiz
e os rituais do culto de outrora límpidos em nós,
o diálogo entre nós e os filosofemas anteriores é possível.
No meio da charada contemporânea emerge o algarismo original.
.............................................................................................
Seremos capazes de devolver ao espírito cada centelha,
se agora testemunharmos que “tudo vive”:
o passado dentro do futuro, a sabedoria na loucura,
o conhecimento nas trevas,
e que tudo aquilo que na vida é rubro, vermelho escuro,
branco raiado de paixão, jamais se acinzente.

Miodrag Pávlovitch (1928-2014)
Tradução: Aleksandar Jovanovié


                                                               Eis-nos todos , neste dia festivo, tepidamente  abrigados pelos umbrais da Universidade Regional do Cariri , no doce mister de ungir, com o dignificante Título de Doutor, uma das mentes mais privilegiadas nascidas ao sopé da Chapada do Araripe. A honraria parece emergir em mão dupla, quando percebemos, com clareza, que a Academia , desde o seu nascedouro, pôs-se a imantar todo o sul cearense de ciência e sabedoria, mas, principalmente, trouxe consigo a possibilidade única e redentora de  ampliar os horizontes humanos, dando instrumentos a pobres e desafortunados, apontando o único Shangrilá possível para o Brasil : A Educação. Um país ainda embebido nas distorções do Colonialismo e que , estranhamente, volta a sonhar  com pesadelos que se tinham por superados:  a Escravidão, a perseguição de movimentos libertários e sociais, a chacina de minorias,  a censura, a justiça com exoftalmia, o ar rarefeito e plúmbeo. A Universidade, antídoto de tantos desses males, o reverso desta moeda, sofre o garrotilho vil e previsível. Professores são achincalhados, patrulhados, submetidos a salários aviltantes, impelidos a dar ordens unidas ao invés de aulas.  O Conhecimento será sempre revolucionário, a Academia faz-se   o inimigo natural dos déspotas. E aqui estará ela sempre a apontar, alheia aos sátrapas, aos tiranos e aprendizes de verdugos que a Educação é, sim, o verdadeiro Golden Shower de que a Nação necessita.
                            Tocou-me o coração, nestes dias, o poema do sérvio Miodrag Pavlovicht, quando a URCA, sem relutância e talvez temerariamente, me pôs nas mãos a difícil missão de saudar o nosso agraciado, nesta solenidade. Pus-me a refletir sobre a postura derradeira de alguns personagens da história. O que teria levado o Soldado de Pompéia a manter seu posto, inflexivelmente, mesmo percebendo a chegada inevitável da lava do Vesúvio ?  Que força teria levado tranquilidade  ao último índio Cariri, quando enxotado das suas terras para o litoral,  e percebeu a chamada de Tupã e o fim inevitável da sua raça ? Talvez ambos tenham sentido que era preciso que tudo terminasse para que logo depois tivesse seu recomeço. Ali testemunhavam a vitalidade a cercá-los e  a extinção como simples  continuação do mesmo ciclo, uma mera mudança vital de estação.  O pêndulo da história transita entre memória e esquecimento. Vezes os pinos de luz incidem em detalhes de um cenário, vezes em outro, ao bel prazer dos iluminadores de plantão, mas a história tem seus próprios ciclos periódicos, seus movimentos de rotação-translação. Há, no entanto, visionários, pessoas que entendem a importância inequívoca destes ciclos e fazem-se testemunhas e repórteres desta gangorra vital. Têm como profissão de fé  o manter acesa esta centelha, cientes de que tudo vive, mas que é preciso, cuidadosamente -- como um lírio que se asperge toda manhã -- como disse nosso Miodrag: não deixar que se acinzente  tudo que é rubro, vermelho escuro, branco raiado de paixão.

Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.

Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.

Ricardo Reis, in "Odes" 


                                   Hoje,   a  Academia, em festa, abre portas e janelas para reverenciar uma destas figuras icônicas, um verdadeiro totem da Memória caririense. Huberto Cabral dedicou  a maior parte dos seus pródigos oitenta e dois anos a acompanhar, registrar e catalogar as histórias oficial e   privada do sul cearense. Poderia, simplesmente, ter aceitado, candidamente, o cair das folhas do outono da existência. Refestelar-se-ia   na cadeira de balanço , envergando o pijama de bolinha como farda, ao chegar àquela idade tão bem definida por Mário Quintana:

“Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”

Tomou para si , no entanto, os anseios de um outro poeta visionário, o irlandês William Buttler Yeats, no “Velejando para Bizâncio”:

“’Um velho é apenas coisa irrelevante.
Trapos sobre um bastão ele é na essência,
A menos que a alma aplauda e alegre e cante
Acima dos farrapos da existência”

Simplesmente, Cabral buscou o galho mais alto da árvore da vida e pôs-se a entoar seu canto, enquanto o palácio ia ruindo à sua volta.   E fê-lo  como  uma epifania, sem esperar qualquer reconhecimento ou vantagem quer política, quer financeira. Prestou constante assessoria à maior parte das instituições públicas e privadas  da cidade do Crato, nos últimos sessenta anos. Negou-se, peremptoriamente, a receber cargos e comissões. Manteve-se presidente vitalício do seu próprio partido político: PCG - Partido do Crato Grande. Cônscio da história gloriosa da Vila de Frei Carlos, continua lutando diuturnamente para que o nosso passado heroico tenha a força de iluminar e colorir  o presente meio dégradé e opaco.

A casa era por aqui…
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida… nos desenganos…)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa…
– Mas o menino ainda existe.
                                        Manoel Bandeira

                            Cabral foi figura onipresente em todos grandes acontecimentos do Crato, nos últimos sessenta anos. Fez-se cerimonialista eterno dos nossos maiores eventos : Todas as Exposições Agropecuárias; a inauguração da Amplificadora Cratense; a fundação da Maternidade Dr. Teles e das Rádios Educadora e Araripe;  a abertura do Jornal “A Ação”; a instalação do Aeroporto Nossa Senhora de Fátima e do Cine Educadora; a chegada da imagem peregrina de Nossa Senhora da Penha; a alternância dos bispos diocesanos,  o advento do  Museu Vicente Leite. Fez-se ainda um combatente no front da guerra pela implantação da Universidade Regional do Cariri, junto com as irmãs Sara e Irene . Nos incontáveis episódios de sabotagem política contra o município, esteve eternamente vigilante e pronto a pôr os tanques de guerra em campo pela defesa dos nossos pleitos. Como jornalista, tornou-se o repórter mais importante da história do Cariri e também o mais longevo, acompanhando o desenvolvimento do Futebol cratense, dos nossos carnavais mais tradicionais, das nossas festividades  mais populares. Entrevistou os ex-presidentes Castello Branco, Juscelino Kubitschek, Geisel e Sarney; o Papa João Paulo II; a escritora Rachel de Queiroz; inúmeros artistas como Sérvulo Esmeraldo, Bruno Pedrosa, Orlando Silva, Gilberto Alves, Nélson Gonçalves, Gilberto Milfont, Vanderley Cardoso,  Luiz Gonzaga; além de incontáveis ministros e praticamente todos os governadores cearenses nas últimas seis décadas.   Deu assessoria e consultoria  por mais de um quartel de século, de forma sempre voluntária, inclusive negando-se, terminantemente, a receber quaisquer tipos  de subsídios,  a nossas mais importantes instituições: Instituto Cultural do Cariri, Sociedade de Cultura Artística do Crato, Diocese do Crato, Câmara Legislativa, Clube de Diretores Lojistas, Crato Tênis Clube, Clubes de Serviços , Associação Comercial de Crato, Tiro de Guerra, Colégios Pequeno Príncipe e Diocesano , CEJA/Crato, CREDE 18, Rádio Educadora, Jornal “A Ação”, Rádio Araripe.
                            Huberto, dizem os amigos, tem o HD do Crato, meticulosamente registra uma agenda infindável das nossas datas comemorativas. Se o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares, o Crato também tem o seu descobridor, coincidentemente também um outro Cabral. Se devemos a Irineu Nogueira Pinheiro o registro de  nossas Efemérides até 1954, o ano da sua partida para o voo celestial, a partir daí as Efemérides Cratenses estão escritas na memória prodigiosa do nosso mais importante jornalista que sequer deu-se ao trabalho de firmá-las em livro. 






No galpão guardamos as enxadas enferrujadas.
 E lá elas esperam a morte, como os velhos nos asilos.

Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.

Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.
                                                                          Ledo Ivo

                            As outorgas de títulos de Doutor Honoris Causa carregam consigo o risco potencial de polêmicas próprio das Academias, onde as opiniões estão sempre em efervescência e a colisão entre elas, no fundo, consubstancia a própria essência viva da Universidade. Este clima, no entanto, não contagia este momento único, o nosso homenageado, criador de quase todas as medalhas honoríficas do município, faz-se, renitentemente , avesso a quaisquer honrarias que ele sejam dirigidas. Ante  quaisquer iniciativas no sentido de laureá-lo, Cabral fecha-se  como Tatu-Bola, fica inacessível como pequi verde. Acredito, no entanto, que o dia de hoje carrega consigo o gosto do fruto de há muito desejado; paira nos cratenses uma sensação de Déjá-Vu, como se  todos nós,  professores, alunos, amigos, estivéssemos  presenciando o momento histórico de uma crônica de há muito anunciada. A revelação de uma profecia que pressentíamos  prestes a eclodir, como a pupa saltando do seu casulo. A Memória são os líquidos fios com que se tecem as frágeis paredes da fortaleza da história de um povo. O guardião deste templo , como uma criança na praia, constrói os castelos que em pouco serão lambidos pelas ondas do Tempo.

O palácio está em ruínas...
Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo...
Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele
              lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
              mais bela cortada...
............................................

Há tão pouca gente que ame as paisagens
              que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
    mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
             nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
             auréola negra...

Fernando Pessoa ( Mensagem)

                                   Este é o afã frustrante e  desapontador do memorialista: escrever com o giz no quadro negro, enquanto a mão do tempo usa o apagador à medida que as palavras se vão sucedendo.  Vale a pena o esforço aparentemente inútil e  desigual ?  Ah ! mas sobre a superfície do quadro ficarão rabiscos, como uma Pedra da Roseta, escritas rupestres que serão depois desvendadas pelas futuras gerações. Algumas poucas testemunhas, ainda, terão gravadas nos olhos as palavras esparsas da lousa, antes do trabalho esmaecedor  das horas. Jorge Luiz Borges definiu bem esta luta inglória, no seu poema “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo” :
“Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia...”
                            A Universidade Regional do Cariri, assim, hoje, não reverencia apenas o maior repórter da sua história, nosso mais importante memorialista, uma testemunha viva do Cariri nos últimos sessenta anos. Oficializa-se um grau de Doutor que já lhe tinha sido, por mérito, outorgado pelos  intelectuais e  pela população mais humilde deste Vale . Temos a sensação clara que o nosso Geopark Araripe acaba de descobrir  um fóssil raro de um pterossauro ( o Hubertossauro cabralis)   e, o mais incrível e surpreendente: ele está vivo e lépido, livre das suas pétreas amarras, pronto a alçar voo e contar a novas gerações e a outros povos a saga milenar da sua trajetória.

Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.
Ferreira Gullar


 A casa é a mesma, parece até  a   tapera da Rua das Flores que te acolheu nos primeiros bulícios ,muitos anos atrás. O menino não mudou muito,   é o  pirralho malino de outrora , o guri  de Dona Pia e seu Zé Leite,  com algumas cicatrizes e alguns espólios de guerra. Talvez, por isso mesmo, nem carece gritar “Ô de Casa !”  As portas e janelas defenestrem-se , sem estranheza,  para receber neste momento  o filho pródigo, “depois de um longo e tenebroso inverno” .   
“No meio da charada contemporânea emerge o algarismo original !”

Bem vindo  à sua casa,  
Dr. Francisco Huberto Esmeraldo Cabral !

                Crato, 08/03/2019
                                                                                                  J. Flávio Vieira