sexta-feira, 21 de maio de 2021

Mata-Borrão

 


J. Flávio Vieira

 

                                               O crime tinha abalado toda Matozinho. E não era pra menos! Na vila, o delegado Carlúcio Peralva  corria o risco de morrer de depressão. Tirante briga de vizinho, enrusga de marido e mulher, arruaça de pinguço, um ou outro aquieta-arreda, nada de novo por ali acontecia. As dobradiças das  celas da prisão tinham enferrujado e , na tentativa de abri-las, rangiam mais que galamarte alimentado com carvão. Aquele tinha sido o grande homicídio da cidade em mais de cinquenta anos! Guardadas as proporções, uma espécie de Jacarezinho daquelas brenhas.

                                    Tudo tinha acontecido --nestes dias, informaram-me diretamente de Matozinho -- há uns seis meses. Defronte do Bar de Giba. Era já noite alta, num meio de semana. Cravildo Jurubeba era proprietário de um pequeno armarinho na vila. Negociava itens vários que iam de utensílios domésticos e agrícolas, confecções, legumes e mantimentos. A Crajuru, a loja dele, era um protótipo dos atuais mercantis. Pois bem, na malfadada noite, Cravildo bebericava e batia papo com dois outros amantes do copo, quando a tragédia aconteceu. De repente, sabe-se lá como, adentrou o ambiente um temido pistoleiro da região, conhecido e temido pelo nome de “Sprito de Poico”. Aproximou-se, como um gato, de um Cravildo já meio grogue e de costas e lhe disparou, a queima roupa, dois tiros, com um revólver velho de dois canos. Foi cortar a espoleta e o homem estender-se no piso,  estrebuchando nos últimos estertores. Nem houve tempo para vela e nem extrema-unção. Terminado o serviço, “Sprito” escapuliu como uma alma, no caso, apenada. Não antes de avisar , numa franca ameaça, às testemunhas:

                                    --- Aqui, ninguém viu nada ! Se alguém der notícia, não esqueça de se despedir, antes, da família !

                                    O caso, como era de se imaginar, teve um repercussão enorme em Matozinho. Primeiro pelo insólito e pelo incomum e depois, pela curiosidade de todos, quanto ao autor do delito. E só havia três testemunhas oculares do fato, naquelas altas horas da madrugada. Giba, o barman; Jojó Fubuia, o mais doutorado pinguço da Vila e Pedro Caldo de Bila, um magarefe da cidade, sujeitinho tido como fraco e medroso, como o próprio sobrenome estava a apontar. Perguntados insistentemente sobre a autoria, ninguém tinha visto nada, estavam bêbados, alguém tinha ido ao banheiro, outro estava sem os óculos.

                                    Levado o pobre Cravildo para a terra dos pés juntos, o delegado Carlúcio Peralva intimou os três testemunhas para uma audiência hoje na Delegacia. Comentava-se que até a própria autoridade, não afeita a emoções tão fortes, resolvera protelar o máximo possível a oitiva. Sabia da autoria do crime, de antemão e, também, não queria se envolver demasiadamente na pendenga.

                                       O primeiro a ser ouvido foi dono do Bar: Giba. Resolveu, rápido, a questão. Disse que nada tinha presenciado, uma vez que na hora do ocorrido, fora  à cozinha, pegar uns tira-gostos e ao voltar o fato já estava consumado e o homicida já havia se escafedido. O próximo a ser inquirido , Pedro Caldo de Bila, trêmulo como um parkinsoniano na Sibéria, disse : nada presenciara. Peralva, de cenho franzido, perguntou-lhe:  como , se na hora exata ele estava bebendo  na mesa com a vítim?  Pedro afirmou que, quando o assassino entrou de fininho, ele estava de cabeça baixa tentando pescar do prato, uma arribançã, como tira-gosto.

                                    --- E quando o tiro ecoou, seu Pedro ? Você não levantou a cabeça , não ?

                                    --- Levantei, mas vi só o homem estendido no chão. O cabra que atirou já tinha escapulido.

                                    Peralva, chateado , mas no fundo aliviado, mandou chamar a última testemunha: Jojó Fubuia. Imaginou que, eternamente com língua trôpega, sob o efeito da mendraca, ele terminaria por elucidar a autoria do bárbaro assassinato. Sentado na frente do delgado, Fubuia , àquelas horas, já parecia ter espantado todos os anjos da corte celestial.

                                    --- Seu Fubuia, onde você estava quando o primeiro tiro ecoou, atingindo , de morte, o Sr. Cravildo Jurubeba ?

                                    --- Seu Delega, eu tava de costas pro assassino, a um metro de distância de Cravildo !

                                    --- E quando pipocou o segundo tiro, seu Fubuia, onde você estava ? Você viu o pistoleiro ?

                                    --- Quando pipocou o segundo tiro, seu Delegado, eu já estava em cima da Serra da Jurumenha, a umas três léguas daqui !

                                        O escrivão Juscelino Mata-borrão, fitando as três testemunhas,  comentou entre dentes:

                                    --- Se mal pregunto : Vocês serviram o Exército ? Aprenderam  com o Pazzuelo, foi ?!

 

Crato, 21/05/2021

sexta-feira, 14 de maio de 2021

A mão de Dr. Lyrio


J. FLÁVIO VIEIRA

 

                               Nestes dias, enquanto preparava uma aula para novos estudantes de Medicina da UFCA, caiu em minhas mãos a mais aristocrática cidade do Cariri : Barbalha. E foi como se as águas do Rio Salamanca me tivessem trazido de volta dois personagens míticos da Terra dos Canaviais. É que os movimentos da memória vêm em ondas como o mar. Marcos de uma época, seus destinos se cruzaram e foi como se do atrito entre dois seixos tivesse saltado a centelha que , anos depois, me veio iluminar aquele momento.

                        Antonio Lyrio Callou nasceu em 1902, no doce balanço dos canaviais de sua terra. Estudou em Barbalha e Crato, formando-se no Rio de Janeiro , em Medicina,  em 1930. Voltou ao Cariri trazendo sua arte para oferecer à sua tribo. Fez-se um dos mais empedernidos combatentes de uma das nossas mais terríveis endemias: o Tracoma. Querido e amado pelo seu povo, viu-se na necessidade de enveredar pela política, com quem teve que partilhar suas atenções por mais de meio século. Fez-se prefeito da sua cidade por dez anos ininterruptos e vereador por cinco legislaturas. Conheci-o quando iniciei minha vida profissional no Cariri. Ele já octogenário, mas vívido e ainda atuante. Fisicamente pareceu-me lépido, alegre, conversador. Queridíssimo de toda a população que o acolhia quase que como uma divindade e nem se dava conta que algumas das peças do quebra-cabeças do seu intelecto já não se encaixavam tão bem. Dr. Lyrio era uma das últimas gerações de médicos que poderiam ser designados como “Da Família”. Era um membro universal de incontáveis famílias caririenses que o recebiam no seu seio como a um irmão ou um primo estimado e que se valiam dele não apenas para o tratamento médico convencional, mas como conselheiro, mentor,  como amigo, banco, como orientador e ombro amigo  em todas as necessidades vitais. Quando, aos 92 anos,  ele completou sua trajetória pelo Cariri, deixou um rastro de saudade e desapontamento impossível de se quantificar e levou, também, consigo uma parte expressiva da história da Medicina caririense, aquela com profundas raízes humanísticas, quando o manto de Hipócrates ainda não tinha sido substituído pelo paletó de almofadinha  e pela gravata vermelha.

                        Um outro barbalhense da gema, Huygens Garcia, pai de um dos maiores cirurgiões cearenses que leva o seu nome, um dia me contou essa história. Seu Huygens foi agricultor e pecuarista, mas poderia ter tido a profissão que quisesse. Inteligentíssimo, letrado, estudioso, amante da leitura, faltou-lhe , talvez, o apoio necessário para alçar voo. Mas terminou realizando sua vocação numa plêiade de filhos: todos formados, desarnados como ele, inteligentes, éticos e trabalhadores. Ele tinha uma verdadeira adoração por Dr. Lyrio e gostava de contar a causa. No início dos anos 30, aos 08 anos,  jogando bola com os colegas, na rua, caiu e fraturou o braço. Uma dor intensa invadiu-lhe a alma , um pouco pela quebradura, mas principalmente pelo medo. Seu pai era extremamente rígido, mantinha em casa uma educação   quase militar. Tinha certeza que, voltando à casa, ferido como estava, antes de ser levado para o atendimento, seria contemplado com o corretivo de praxe: uma surra monumental. Angustiado, correu, teve a ideia de procurar, por conta própria, o consultório do Dr. Lyrio, ali pertinho. O médico, numa Barbalha ainda pequena e provinciana, conhecia toda a população. Chorando, sentou na sala de espera, enquanto aguardava, aflito, a chegada do salvador. A sala estava repleta de clientes, todos com seus achaques e suas esperanças. Um pouco depois, ao entrar, Dr.Lyrio  deu , rapidamente, notícia dele e perguntou com voz mansa, enquanto já o examinava ali mesmo na saleta: O que foi, Huiginho ?  Quando o menino explicou, soluçando, que tinha caído, ele colocou  a mão na cabeça do guri e o encaminhou ao consultório, onde , cuidadosamente, colocou a tala gessada e imobilizou a fratura. Terminado o trabalho, Dr. Lyrio, o abraçou e o levou até a casa da criança , mesmo sabendo da quantidade de consultas que ainda o aguardavam,  na volta. Em lá chegando, acompanhado de tamanho pistolão, o menino pareceu mais tranquilo. O médico explicou ao pai que tinha sido uma queda e que thavia quebrado a cana, mas já estava resolvido. E, sabendo, perfeitamente, de quem se tratava, da fera dono da casa, ao sair , olhou para o pai e deu a ordem que soava mais como um dos 10 mandamentos:

                                   ---- Tá tudo certo ! E, Batista , nada de tocar no menino ! Tá ouvindo ?

                                   Seu Huygens me contou que diante daquele Habeas Corpus , ninguém se atreveu nem a resmungar. E ele dizia, com imensa gratidão, mais de setenta anos depois, que Barbalha não devia ser chamada de Santo Antonio , mas de Dr. Lyrio. Ainda hoje, dizia ele,  sinto o calor da mão dele, na minha cabeça, quando entramos no consultório!

                                   Foi essa história que contei aos novos alunos de Medicina. Lembrei-lhes que a nossa Arte, nos últimos dois séculos, avançou , tecnicamente, mais que  nos dois e meio milênios anteriores. Descobrimos os antibióticos, a assepsia, a anestesia, a origem das infecções, a genética, a farmacologia. Mas perdemos, por outro lado, as profundas raízes humanísticas que são o alicerce, básico, da nossa atividade. Escapou-nos a magia, o encanto, o feitiço que herdamos dos nossos ancestrais e que ainda são profundamente terapêuticos. Precisamos recuperar, perdido em algum canto, a calidez da mão de Dr. Lyrio, aquela chama que permaneceu  luzente por mais de sete décadas...

 

Crato, 14/05/21   

                                    

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Por Vossa Mercê, ardo de amores

 

J. Flávio Vieira

 

                               A carta foi descoberta em uma greta, na parede de uma casa antiga de Toledo na Espanha. O proprietário atual da velha mansão se dispusera a fazer uma reforma. Por trás de uma das vigas,  deu-se com o tesouro , envolto em um canudinho e atado com um já puído barbante.  Junto uma espiga de milho que deve ter ajudado a introduzir o canudo nas profundidades do muro. Havia sido ali colocada, cuidadosamente, como uma relíquia que se quer preservada. Como se a descoberta  inoportuna pusesse em desequilíbrio a estabilidade de dinastias e estados. A restauração careceu de cuidados arqueológicos. O documento ameaçava desintegrar-se ao simples toque das mãos. Para surpresa de todos,  a cartinha não carregava consigo segredos de estado, estratégias militares, conspirações palacianas. Tratava-se de  uma carta de amor.

                               As linhas  haviam sido escritas, em letra artística,  com uma pluma de pássaro : nada mais adequado  para palavras de amor !  Fluidez, leveza, horizontes infinitos de passarinho. Nela, um apaixonado Dom Alfonso de Vargas y Montes  dirigia-se à sua querida Doña  Maria de Sierra,  com a aflição dos amantes, em frases como : “É por vossa mercê que me ardo de amores...” e “nasci para servir a vossa mercê e não para mandar”.   Agradecia por alguns favores recebidos  e demonstrava, claramente, que o amor se fazia correspondido,  pois  D. Alfonso elogiava, cortesmente, a letrinha da amada em correspondências anteriores.  Citava ainda duas outras pessoas que, certamente, deviam conhecer a relação  secreta: “ Pepita, quando te beijar, te dará dois beijos, um por mim e outro por Don Juan”. Terminava a missiva de forma esperançosa : “Por haver escrito com pressa, não explico melhor meu afetuoso amor por vossa mercê. Para manhã, sendo Deus servido, espero resposta”.  Datava D. Alfonso sua correspondência : “29 de Outubro de 1700”.

                               Tinham se passado mais de trezentos anos desde que o nosso apaixonado e fervoroso Vargas y Montes encaminhou  aquelas bem traçadas linhas à sua amada. Quem seriam D. Alfonso e D. Maria de Sierra ? Qual o fim dessa história ? Pesquisadores tentaram identificar o casal de enamorados , mas mostrou-se impossível o projeto. Na época, não havia registro nenhum de mulheres  e nem participação delas em  levantamentos censitários. Dom Vargas y Montes também não se localizou.  Descobriu-se, apenas, que a atual vivenda onde a relíquia foi descoberta  fazia parte de um antigo seminário e aventou-se a possibilidade de a amada de D. Afonso ser uma religiosa, talvez enclausurada com o único fito de ser afastada de um pretendente de origem plebeia ou  inadequado aos olhos da família Sierra.

                               O leitor pode até concluir, como Álvaro de Campos, que “Todas as cartas de amor são ridículas” , independentemente da cronologia de quando se as grafaram. Talvez, no entanto, mais grotescas e ridículas sejam as forças que se antepõem seguidamente ao exercício natural do amor em suas mais diversas formas. A paixão de D. Afonso e Doña Maria terminou corroída pela inexorabilidade  do tempo, como todas as coisas neste mundo,  sujeitas à ferrugem e ao cupim das horas.  Se os beijos  do nosso galante  escritor aconteceram apenas pela intersecção de Papita  ou um dia chegaram à esperada realidade, não se sabe. Apenas temos a certeza que duraram o infinitesimal momento em que aconteceram. Se o amor carrega consigo essa efemeridade inevitável, a cartinha de trezentos anos prova, por outro lado, que o sentimento que tangeu D. Afonso e D. Maria são eternos na sua essência. Hoje , com os celulares e os e-mails,  já não possuem a perenidade de registro que Vargas y Montes um dia imprimiu.  Mas, no íntimo, mantém aquela cola básica que se faz a força motriz da humanidade e que um dia redundou na degustação dos frutos da árvore do bem e do mal e na expulsão dos jardins do éden.

                                               O que faz a Terra girar desde sempre continua sendo   a esperança que imantou D. Vargas y Montes :  a de que, para amanhã, sendo Deus servido, uma resposta há de chegar.

 Recife, 03/05/13